Área isolada da penitenciária fica atrás do muro onde há apenas uma porta (Foto: Divulgação/Susepe) |
Eles ocupam três celas em uma área isolada dos demais presos
na Penitenciária Estadual de Santa Maria, segundo a Superintendência de
Serviços Penitenciários (Susepe) do Rio Grande do Sul.
Um dia após a tragédia, que vitimou 239 pessoas e deixou
mais de uma centena de feridos, os dois sócios-proprietários da boate e dois
integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que teriam acionado o artefato pirotécnico
que deu início ao fogo conforme apontam as investigações, foram presos
preventivamente.
Os empresários da noite Mauro Hoffmann e Elissandro, o Kiko,
encontram-se em uma cela individual, sozinhos. O vocalista da banda, Marcelo de
Jesus dos Santos, e o produtor do grupo musical, Luciano Augusto Bonilha Leão,
dividem outra. As celas não ficam lado a lado e não há contato visual entre
eles.
“Um dos empresários está na primeira cela à direita. Os
músicos estão na segunda à esquerda. Mais adiante fica a cela do outro
empresário”, explica o delegado penitenciário regional da Susepe, João Amaral.
A comida dos quatro presos é a mesma dos demais, mas feita
em outra cozinha. Como são os próprios detentos que preparam as refeições, a
administração da penitenciária teve receio de que pudesse haver uma tentativa
de envenenamento. Mas segundo Amaral, não há qualquer tipo de regalia. “Os
ingredientes são os mesmos, e a quantidade também. É a mesma comida dos
funcionários”, diz ele.
Na primeira noite em que chegou, no dia 5 de fevereiro, Kiko
ficou acompanhado de um senhor de idade, também detento. “Ele havia tentado
suicídio no hospital (em Cruz Alta, onde ficou internado sob custódia policial)
e ficamos com medo que ele fizesse alguma bobagem. Então este senhor se
prontificou a ficar junto. Mas no segundo dia ele já saiu de lá”, relata
Amaral.
A prisão temporária dos quatro suspeitos expira no próximo
domingo, dia 3 de março. Os delegados Sandro Meinerz e Marcelo Arigony, que
estão à frente da investigação sobre a tragédia, planejavam concluir o
inquérito nesta data, mas podem pedir a prorrogação do prazo. Solicitação que
não pode ser feita em relação à prisão dos envolvidos. A polícia, no entanto,
não descarta pedir a conversão da prisão temporária em preventiva.
Kiko perdeu oito quilos e tem pesadelos durante a noite
O advogado de Kiko, Jader Marques, diz que o seu cliente só
fica ao sol três vezes por semana, segundas, terças e sextas-feiras, por 20
minutos. Ele também teria perdido cerca de oito quilos desde que ingressou na
penitenciária. “Ele está extremamente magro, e com a pele muito branca, pálido.
O cotidiano dele é passar a maior parte do tempo deitado”, diz o advogado.
Quando dorme, prossegue o advogado, Kiko costuma ter
pesadelos com a tragédia na casa noturna que administrava. “Ele sonha muito com
o incêndio. Não há uma noite em que ele não tenha o sono agitado”, afirma Jader
Marques.
Nas tardes de quinta-feira e de domingo, o empresário recebe
as visitas da namorada Nathalia Doronche, da mãe e da irmã. A ausência durante
o período de gravidez de Nathalia incomoda o empresário, segundo Marques.
“Quando ela vai embora é a parte mais sofrida”.
Kiko esteve internado em Cruz Alta antes de ser levado ao presídio (Foto: Reprodução/TV Globo) |
Kiko toma remédios psiquiátricos, mas tem tido dificuldades
para ter atendimento devido ao horário de visitas. No entanto, ele é
acompanhado por um psicólogo da Susepe. Marques conta que ele pensa muito nas
vítimas que conhecia. “Todo o tempo ele pensa nos amigos dele que estavam lá.
Morreram pessoas com quem ele tinha amizade, frequentadores assíduos e
funcionários. Alguns eram muito próximos”, diz o advogado.
Mesmo em uma situação difícil, o advogado garante que o
empresário está ansioso para colaborar com a investigação, e disposto a ficar
mais 30 dias preso temporariamente (O Ministério Público se posicionou
contrário ao pedido de prorrogação de prisão do advogado). “Ele me pergunta
muito sobre como está a situação, e se frustra quando ouve as respostas. Ele
quer acarear e prestar um novo depoimento. Disseram que ele teria de ficar
preso em Santa Maria para isso, mas não o chamam”, reclama.
Advogado de Hoffmann nega envolvimento dele no incêndio (Foto: Emerson Souza/Agência RBS) |
Hoffmann acompanha notícias e fala com filhas por cartas
Enquanto espera por sua soltura, o empresário Mauro Hoffman
tem acesso a notícias sobre a tragédia via rádio e jornal. Segundo o seu
advogado, Mário Cipriani, o empresário está isolado, mas acompanha o que está
acontecendo fora dali enquanto prosseguem as investigações. Muito abalado, ele
também recebe atendimento médico e psicológico.
“O Mauro vem recebendo atendimento lá dentro. Ele segue
muito abalado e comovido e muito preocupado com as famílias das vítimas e
também com a dele. Ele consegue acompanhar o que vem acontecendo pela rádio e
por jornais, que não são do dia, mas que chegam lá. O que ele espera é que tudo
se esclareça o mais rápido possível”, conta o advogado.
O empresário recebe a visita de familiares uma vez por
semana, aos domingos. A esposa é quem aparenta estar mais abalada com a
situação. Os irmãos de Mauro e a mãe também vão visitá-lo. Desde que teve a
prisão temporária decretada, ele não viu mais as filhas. Para preservar as
adolescentes, pediu que elas não frequentassem o presídio. A comunicação é
feita por cartas.
Quem mais encontra com Mauro é o advogado. No parlatório,
conversam sobre o andamento das investigações e a estratégia de defesa. O
empresário admite ser sócio da boate, mas nega culpa pela tragédia. O que eles
esperam é que Hoffmann seja liberado assim que a prisão temporária expirar, no
dia 3 de março.
“A nossa ansiedade é pela conclusão do inquérito. Temos a
convicção que o Mauro não teve participação nos fatos. Ele está confiante no
trabalho da polícia. Queremos que este fato se torne jurídico. Por enquanto,
está sendo tudo menos isso, mas igualmente respeitamos”, conclui Cipriani.
Vocalista da banda não quer falar sobre o assunto
Quando o advogado Omar Obregon vai à penitenciária visitar
seu cliente, Marcelo dos Santos, ele evita falar sobre o incêndio e apenas
pergunta como o vocalista tem passado os dias na prisão. “Ele está totalmente
fora de si. Nem estou mais falando com ele sobre o assunto. Nas últimas visitas
que eu fiz, só perguntei para ele como ele estava”, diz.
O advogado afirma que passar por esta situação jamais esteve
nos planos do vocalista da banda Gurizada Fandangueira. “Ele era um sujeito que
sequer temperava a salada para não ser pego no bafômetro. Nunca teve um
processo contra ele. Aí foi trabalhar e voltou preso”, lamenta o advogado.
Santos toma sol meia hora por dia, nos dias em que pode
deixar a cela, conta Obregon. Nos horários de visita, ele recebe os pais. As
filhas, que são crianças pequenas, não vê desde que foi preso. A perda do
emprego de azulejista não incomoda mais do que o espera pela frente. “Ele
certamente será demitido, mas este é o menor dos problemas”, diz.
Ao contrário dos empresários, que estão isolados, Marcelo
tem alguém com quem conversar na cadeia, já que está preso na mesma cela de
Luciano Bonilha Leão, o produtor da banda. Os dois estão presos sob suspeita de
responsabilidade no incêndio: o primeiro teria feito uso do artefato
pirotécnico, acionado remotamente pelo produtor. Faíscas atingiram a espuma que
funcionava de isolante acústico no teto e deflagraram o fogo. “Neste ponto, isso
ajuda, porque são conhecidos”.
Preso, produtor da banda perdeu maior fonte de renda
Luciano Bonilha Leão perdeu sua maior fonte de renda. O
produtor da banda Gurizada Fandangueira trabalhava como motoboy em Santa Maria.
Na banda, Leão ajudava os amigos no transporte dos instrumentos e preparava o
palco para os shows. Segundo seu advogado, ele segue transtornado com todo o
corrido e aguarda pelo relaxamento da pena.
“Estamos aguardando as investigações. O Luciano é um cara
normal, é estranho para ele ir parar em um presídio. Não estava preparado. Eles
faziam os shows seguidamente, era uma coisa cotidiana, foi algo inesperado, não
tinha como imaginar isso”, conta o advogado Gilberto Carlos Weber.
O defensor visita seu cliente com frequência na prisão.
Luciano está em uma ala separada da Penitenciária Estadual de Santa Maria. Fora
da vida normal, não pode exercer a profissão de motoboy, maior fonte de renda para
ele. “Trabalhava como motoboy em uma empresa de prestação de serviços. Era
autônomo. Tem situações mais importantes para ver agora, depois ele vai ter que
ver como vai ficar a profissão dele”, diz o advogado.
Baterista passou a tocar em igreja e trabalha como taxista
Tocar bateria, um dos maiores hobbies de Eliel de Lima,
virou praticamente coisa do passado. O músico, que frequentemente era convidado
para tocar com a banda Gurizada Fandangueira, perdeu o seu instrumento no
incêndio da boate Kiss. Além do prejuízo financeiro, a tragédia também o afetou
emocionalmente. Ele revela que não voltou mais a tocar em festas. A velha
companheira só o acompanha nos cultos da igreja evangélica.
“Nunca mais toquei na noite, até pretendo voltar a tocar,
mas tenho que recuperar minhas coisas. Perdi minha bateria, custava uns R$ 4
mil. Agora só tenho toco na igreja, sou evangélico e toco lá”, conta ele.
Mesmo sendo um trabalho esporádico, a banda era uma fonte de
renda para Eliel. Não a principal, mas ajudava a “pagar umas contas”. Com o fim
da Gurizada Fandangueira, ele ficou apenas com o táxi. Eliel é motorista na
cidade de Rosário do Sul, distante cerca de 155 quilômetros de Santa Maria, e
cumpre uma jornada de aproximadamente 10 horas de trabalho por dia.
“Estou me virando, sou taxista. A banda era a ocupação no
fim de semana. Eu não ganhava muito, mas dava para pagar algumas contas. O táxi
sempre foi minha maior fonte de renda”, revela.
Eliel nota que a tragédia o fez mais conhecido na cidade. Os
passageiros rapidamente o conhecem e querem saber sobre o ocorrido na boate. O
taxista diz ter a consciência tranquila e cita que recebe o apoio das pessoas.
O assunto é inevitável, embora tenha lhe tirado algumas noites de sono e tenha
o levado ao médico.
“Muita gente reconhece, puxa assunto, nas primeiras semanas
perguntavam muito, queriam saber. Todo mundo me apoia, sou bem conhecido, o
pessoal me apoia por ter nascido de novo. Em casa, procuro nem pensar, já
sonhei bastante com isso. Não quis ficar em casa, procurei me ocupar, para não
pensar muito. Dias depois do incêndio cheguei a ir no médico, pois estava com
forte dor muscular, mas foi só isso”.
Apesar de considerar os companheiros de banda como amigos,
Eliel não voltou a fazer contato com os outros músicos. Em uma única vez ligou
para saber como estavam de saúde. Com Marcelo, vocalista da Gurizada, que segue
preso, nunca mais falou. O incêndio na boate matou o gaiteiro da banda: em meio
à confusão, Danilo Jaques não conseguiu sair da boate e foi uma das vítimas.
Entenda
O incêndio na boate Kiss, em Santa Maria, região central do
Rio Grande do Sul, deixou 239 mortos na madrugada de domingo, dia 27 de
janeiro. O fogo teve início durante a apresentação da banda Gurizada
Fandangueira, que fez uso de artefatos pirotécnicos no palco. De acordo com
relatos de sobreviventes e testemunhas, e das informações divulgadas até o
momento por investigadores:
- O vocalista segurou um artefato pirotécnico aceso.
- Era comum a utilização de fogos pelo grupo.
- A banda comprou um sinalizador proibido.
- O extintor de incêndio não funcionou.
- Havia mais público do que a capacidade.
- A boate tinha apenas um acesso para a rua.
- O alvará fornecido pelos Bombeiros estava vencido.
- Mais de 180 corpos foram retirados dos banheiros.
- 90% das vítimas fatais tiveram asfixia mecânica.
- Equipamentos de gravação estavam no conserto.
Fonte: Site G1 RS
Nenhum comentário:
Postar um comentário