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domingo, janeiro 23

20 vezes livre para agir

Se em alguns países, em determinados momentos, a ordem do dia é reprimir com rigor pequenos deslizes como quebrar uma vidraça, o Brasil de hoje parece tolerar que criminosos ajam reiterada vezes, quase sempre impunes.

O entra e sai da cadeia que se repete por anos, muitas vezes só costuma ter fim quando o bandido é morto ou ferido em confronto com forças policiais. É o caso de Fabrício Almeida de Azevedo, 21 anos, preso 20 vezes em um intervalo de cinco anos agindo na Capital.

Quantas vezes um ladrão precisa ser flagrado furtando objetos para receber uma punição mais rigorosa do que um “puxão de orelhas” na delegacia ou no fórum? A prática reiterada de um delito, mesmo que de menor potencial ofensivo, já não oferece prejuízo suficiente à sociedade para justificar seu encarceramento? A rotina de idas e vindas de delegacias não o impulsionaria a ações mais violentas? Especialistas e as autoridades divergem em suas opiniões.

Enquanto os mais liberais defendem que mesmo ladrões contumazes aguardem em liberdade o julgamento de seus processos, alas mais conservadoras sustentam a prisão provisória para bandidos que acumulam crimes nas ruas.

Ao ser preso 20 vezes, a mais recente delas no fim de semana passado, Azevedo se tornou o mais novo símbolo impune desse prende e solta do sistema penal brasileiro, onde a superlotação das cadeias tem influenciado as decisões de magistrados. Velado ou expresso nos despachos judiciais, é regra entre juízes o entendimento de que pessoas sem condenação (os chamados réus primários) devem ficar longe das celas. Juízo que garantiu ao ladrão contumaz se beneficiar por seis vezes da liberdade provisória. Em algumas das prisões, Azevedo sequer ficou um dia preso, mesmo sendo autuado em flagrante por estar com bens furtados.

– O problema da falta de vagas nos presídios é real, mas está sendo usado indevidamente para manter soltos criminosos que sabidamente praticam crimes nas ruas. No caso dele (Azevedo), fica evidente que deveria receber uma punição maior. Isso tudo gera uma sensação de impunidade. O criminoso acha que “não vai dar nada’’, enquanto a vítima deixa de acreditar na Justiça e policiais se sentem desestimulados – avalia o promotor Fabiano Dallazen, coordenador do Centro de Apoio Operacional Criminal do Ministério Público.

As críticas à magistratura são relativizadas pelo juiz-corregedor Marcelo Mairon Rodrigues. Sem entrar no caso de Azevedo, para evitar dissabores com colegas de toga, Mairon defende a ampliação das medidas alternativas, como prestação de serviços à comunidade, para punir os pequenos infratores. Na sua visão, isso reduziria a reincidência.

– Não adianta simplesmente colocá-los no presídio. As medidas alternativas garantiriam uma reaproximação com a sociedade. Lógico, isso tem de ser bem feito, bem fiscalizado. É claro que em algumas condutas, como a prática reiterada de crimes, isso pode ser revisto – pondera.

Para o professor de Direito Penal e Processual da Pontifícia Universidade Católica (PUCRS) Rafael Canterji, o questionamento sobre o prende e solta deveria ser outro:

– Em situações como a narrada, muitas vezes se ouve que a soltura foi equivocada, quando poderíamos refletir se a prisão foi acertada. Não tenho dúvidas de que a prisão é uma mola propulsora da criminalidade, devendo ocorrer somente em casos excepcionais.

Para o advogado criminalista, a concessão de liberdade provisória em casos de furtos é a medida correta, já que muitas vezes a pena imposta se inicia em um regime mais brando, como o semiaberto.

– É preciso ter proporcionalidade entre a medida cautelar, durante o processo, e a pena. Incoerente seria manter réu preso durante o processo se eventual pena a ser aplicada não fosse privativa de liberdade em regime fechado.

Difícil será explicar para as futuras vítimas de Azevedo que sua conduta faz jus à benevolência com que vem sendo tratado.

De pequenos furtos a tiroteio

A 20ª prisão de Fabrício Almeida de Azevedo, no fim de semana passado, não surpreendeu os policiais militares responsáveis pelo policiamento na zona leste da Capital.

A escalada criminosa que se iniciou com pequenos furtos e culminou com uma troca de tiros que deixou Azevedo gravemente ferido já era esperada pelos policiais acostumados a detê-lo com objetos furtados.

Com apenas 21 anos, Azevedo acumula 13 passagens pelo Presídio Central de Porto Alegre. Todas por furtos de objetos, como registros de água, fios de cobre, peças de inox, alumínio ou eletroeletrônicos. Nas primeiras três entradas na superlotada cadeia da Capital, entre os 18 e 19 anos, a permanência foi curta. Um ou dois dias. Por ser réu primário e suspeito de crimes considerados de pouca gravidade, ele voltava para casa mediante o benefício da liberdade provisória.

A prática delituosa reiterada, aos poucos, foi ampliando o tempo em que o jovem permanecia segregado a cada nova prisão em flagrante. Em março de 2009, ainda aos 19 anos, por exemplo, Azevedo ficou 85 dias na cadeia pelo furto de um computador e de um aspirador de pó. Em apenas três anos, ele passou por casas prisionais em Charqueadas e Mariante, onde esteve recolhido nas penitenciárias estaduais do Jacuí (PEJ) e de Charqueadas (PEC), além dos institutos penais Escola Profissionalizante (Ipep) e de Mariante (IPM).

De uma família de seis irmãos da Vila Bom Jesus, Azevedo se apresentou como servente de obras em cada uma das primeiras 19 abordagens policiais que culminaram em termos circunstanciados, inquéritos policiais e autos de prisão em flagrante. Não resistia à prisão. No máximo, corria dos PMs. Mas as coisas mudaram no mais recente episódio do roteiro de indas e vindas da cadeia. Ele reagiu.

Com um revólver calibre 38, enfrentou um PM do 11º Batalhão de Polícia Militar (11º BPM) e acabou baleado após tentar invadir uma garagem na noite de sábado, dia 15 de janeiro. Em estado grave, na sexta-feira ele permanecia internado no Hospital de Pronto Socorro (HPS) sob custódia de agentes da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe). Quando receber alta, Azevedo dará entrada pela 14ª vez no Casarão – como é conhecido o Presídio Central pelos criminosos.

Até enfrentar a polícia, a saga criminosa de Azevedo não surpreendia pela violência dos ataques ou pelo valor dos bens levados. Foi o número de vezes em que a Brigada Militar o flagrou com coisas que não eram suas que chamava a atenção. Ao invadir residências e estabelecimentos comerciais sempre em bairros vizinhos à vila onde morava, Azevedo acabou conhecido pelos PMs que atuam na Zona Leste. Daí foi um passo para assumir o topo da lista dos mais detidos pelo batalhão.

– Não é um retrabalho a prisão de suspeitos como o Fabrício. Apenas uma rotina policial. Meus policiais sabem quem age na região. Estão atentos à conduta desses criminosos e, por isso, eles acabam sendo presos com frequência – avalia o comandante do 11º BPM, tenente-coronel Toni Robilar Pacheco.

Se nas primeiras autuações em flagrante, o réu primário ganhava a liberdade provisória por decisão judicial, o benefício foi rareando à medida em que a conduta de Azevedo piorava dentro e fora da cadeia. As duas últimas saídas do sistema prisional, por exemplo, deram-se por fugas de institutos penais onde já cumpria pena em regime semiaberto.

– Acho que o caso dele é emblemático, pois passou muito tempo no fechado e, quando recebeu condenações, foram a um regime mais brando, o semiaberto. Acabou sendo mais punido durante a prisão provisória do que depois de condenado – afirma a defensora pública Helena Grillo, que atua em processos em que Azevedo é réu.


Fonte: Jornal Zero Hora

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