Por Eudes Quintino de Oliveira Júnior,
advogado (OAB-SP nº 35.453) e reitor da Unorp
Recomenda a boa regra hermenêutica que toda interpretação de uma lei que vige há muito tempo deve levar em consideração a época de sua edição. Tal operação se faz necessária porque a motivação social tem como sustentáculo uma necessidade de momento e a lei sem o seu elemento histórico fica comprometida com sua finalidade.
Desta forma, como regulamentação pretérita, deve ser conhecida em sua essência para poder dimensioná-la e projetá-la futuramente. "O legislador - conforme acentua Maximiliano - é filho de seu tempo; fala a linguagem de seu século, e assim deve ser encarado e compreendido".
O Código Penal Brasileiro, instituído pelo Decreto-lei nº 2.848, de 7/12/1940 entrou em vigor em 1º/1/1942, durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, no período conhecido como Estado Novo, implantado após um golpe de estado. A economia brasileira era baseada na produção agrícola, com intensa atividade rurícola e com os primeiros passos visando alcançar a plataforma industrial.
A legislação trabalhista implantava novos direitos para os operários e a repressão penal, conforme salienta Mirabete, carregava "os postulados das escolas Clássica e Positiva, aproveitando-se, regra geral, o que de melhor havia nas legislações modernas de orientação liberal, em especial nos códigos italianos e suíços."
Foi nesse contexto que o legislador penal, após definir o furto simples no "caput" do artigo 155, traçou norma explicativa a respeito da conceituação da coisa alheia móvel, no parágrafo 3º, in verbis: "Equipara-se à coisa alheia móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico".
Daí que, com a implantação de novas tecnologias, muitas inovações foram se enquadrando na abrangência de "qualquer outra energia" e, por analogia, muitas condutas passaram a ser incriminadas.
E a Exposição de Motivos da Parte Especial do Código Penal, foi incisiva em determinar: "Para afastar qualquer dúvida, é expressamente equiparada à coisa móvel e, consequentemente, reconhecida como possível objeto de furto a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico. Toda energia economicamente utilizável e suscetível de incidir no poder de disposição material e exclusiva de um indivíduo (como, por exemplo, a eletricidade, a radioatividade, a energia genética dos reprodutores etc) pode ser incluída mesmo do ponto de vista técnico, entre as coisas móveis, a cuja regulamentação jurídica, portanto, deve ficar sujeita".
A jurisprudência, em reiteradas decisões, foi traçando caminhos que não tinham sido previstos pelo legislador. Assim é que a energia elétrica, dependendo da conduta do infrator, deixa de ser furto para configurar o crime de estelionato. Por tal conclusão, se o consumidor desviar a energia elétrica antes que ela seja apontada no registro, ocorre a subtração, pois o bem foi retirado da posse da empresa fornecedora. Se, porém, a conduta residir na alteração ou paralisação do medidor para acusar um gasto reduzido de energia mediante fraude, o crime é de estelionato.
Assim, de acordo com a sistematização adotada pelo Código Penal, por força da analogia instituída pelo legislador, toda subtração que envolver energia elétrica ou qualquer outra fonte que tenha valor econômico, será sim considerada furto ou estelionato. Até mesmo, conforme muitas decisões condenatórias a respeito, alcançar o furto de sinal de tevê a cabo, que, em sua essência, não pode ser considerado energia elétrica, embora tenha um valor econômico.
Em lúcida consideração, César Bitencourt afirma: "A locução ´qualquer coisa´ refere-se, por certo, a ´energia´ que, apenas por razões linguísticas, ficou implícita na redação do texto legal; mas, apesar de sua multiplicidade, energia solar, térmica, luminosa, sonora mecânica, atômica, genética, entre outras, inegavelmente ´sinal de tevê´não é e nem se equipara a ´energia´, seja de que natureza for. Na verdade, energia se consome, se esgota, diminui, e pode, inclusive, terminar, ao passo que ´sinal de televisão´não se gasta, não diminui; mesmo que metade do País acesse o sinal ao mesmo tempo, ele não diminui, ao passo que, se fosse a energia elétrica, entraria em colapso".
A adoção da interpretação extensiva para explicar a expressão "qualquer outra energia", acarretou todo o imbróglio jurídico. A analogia utilizada pelo legislador foi in malam partem, condenada pelo Direito Penal e que alcança todas as pessoas que praticarem atos de subtração de qualquer tipo de energia. "Somente com o recurso à analogia in malam partem - afiança Pierangeli do alto de sua experiência - recurso inaceitável no Direito Penal, possibilitaria uma punição para subtração de energia, se não houvesse uma solução legislativa".
A ligação clandestina de tevê a cabo passou por inúmeras peregrinações jurisprudenciais, algumas confirmando a ocorrência do ilícito, outras rejeitando. Até que a 2ª Turma do STF, em apreciação de habeas corpus que discutia a ocorrência de furto de ligação clandestina de televisão a cabo - caso oriundo do RS - que teve como relator o min. Joaquim Barbosa, assim decidiu:
"A 2ª Turma concedeu habeas corpus para declarar a atipicidade da conduta de condenado pela prática do crime descrito no art. 155, § 3º, do CP ("Art. 155 - Subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel: ... § 3º - Equipara-se à coisa móvel a energia elétrica ou qualquer outra que tenha valor econômico."), por efetuar ligação clandestina de sinal de TV a cabo. Reputou-se que o objeto do aludido crime não seria "energia" e ressaltou-se a inadmissibilidade da analogia in malam partem em Direito Penal, razão pela qual a conduta não poderia ser considerada penalmente típica". (HC nº 97261/RS, rel. Min. Joaquim Barbosa, 12.4.2011).
Parece que derradeira pá de cal derramada na questão resolve definitivamente a configuração da conduta ora discutida. Na realidade, diante da impossibilidade de se adequar penalmente em razão da atipicidade, resta somente o ilícito civil, que deverá ser perquirido pela via própria.
Fonte: Site Espaço Vital
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