Foto: Jefferson Botega / Agencia RBS |
Na instituição Pão dos Pobres,
ele começou a frequentar oficinas de dança de rua, percussão, capoeira e
atividades esportivas
Ele abre as mãos espalmando os cinco dedos. Na ponta de cada
unha, exibe uma camada de orgulho.
— Tira uma foto? — sugere, dentro do casebre construído com
tábuas recolhidas do lixo onde mora com a família na Vila do Esqueleto, nos
altos da Avenida Protásio Alves, em Porto Alegre.
Mostrar as mãos limpas virou uma questão de orgulho para
Felipe desde a publicação da reportagem Filho da Rua, que contou a sua
história. Analfabeto, o adolescente acompanhado desde março de 2009 por ZH não
pôde ler o caderno especial de 16 páginas que narrou sua peregrinação pelas
esquinas, publicado em 17 de junho. Mas Felipe sabe que cada linha daquele
texto grandão que viu nas páginas do jornal contava sua vida. Das fotos que
flagravam suas idas e vindas entre a casa e o asfalto, nenhuma o desafiou tanto
quanto a estampada na capa. Sua mão direita no portão da antiga casa de onde
fugia, impregnada com a sujeira das calçadas onde dormia, mostrada na imagem,
virou um símbolo de uma trajetória que ele agora tenta interromper.
A provocação veio do vizinho, quando exibia o jornal
orgulhoso de sua projeção.
— Essas são as tuas mãos? — riu o homem, em tom de deboche,
na mesma semana da publicação.
Envergonhado, Felipe baixou a cabeça e voltou para casa,
disposto a mudar o próprio retrato. Vem conseguindo. Surpreendendo a si mesmo e
aos outros, tem descoberto nestes quatro meses que ainda é possível trilhar um
caminho diferente, com ajuda de uma rede de assistência que passou a enxergá-lo
com olhos mais atentos desde a publicação de sua história. São conquistas
provisórias, entre passos hesitantes, mas que já permitem comemoração.
O cenário deste recomeço é a instituição Pão dos Pobres,
onde desde o fim de agosto começou a frequentar oficinas de dança de rua,
percussão, capoeira e atividades esportivas. Os dedos que antes apareciam
chamuscados pelo fumo de crack aos poucos aprendem a dedilhar um violão,
coreografar passos de hip hop, brincar ao lado de outras crianças e
adolescentes como um deles. Gestos singelos que conferem uma moldura de
esperança a um destino que parecia condenado à rua, depois de nove anos de
peregrinação pelas esquinas.
A história de como ele chegou até ali é sintomática desse
percurso de altos e baixos em que sua vida oscila. Antes de conhecer as quadras
de futebol e tênis do Pão dos Pobres, Felipe foi confrontado com um de seus
maiores fantasmas. Em 3 de julho deste ano, foi recolhido pela primeira vez à
Fundação de Assistência Socioeducativo (Fase), por furtos cometidos em 2010,
quando morava em Torres. Era inaugurado oficialmente assim o currículo de
infrator do adolescente que até hoje não aprendeu a ler e escrever. Ficou
apenas uma noite internado, o suficiente para que levasse um choque de
realidade. Quando foi liberado, voltou para casa decidido a mudar de vida. Em
10 de julho, disse a ZH que queria ir para uma fazenda terapêutica. E chorou,
abraçado na mãe, ao lembrar o quanto a tinha feito sofrer.
— A rua só traz mal, traz incomodação pras mãe. Quero largar
as droga. Sou um guri muito bonito, eu sei, minha mãe sofreu muito por causa de
mim — constatava.
Diante da repercussão do caso, o secretário da Justiça e dos
Direitos Humanos, Fabiano Pereira, empenhou-se pessoalmente em garantir vaga
para a internação de Felipe em uma fazenda terapêutica. Ganhava impulso ali um
trabalho mais integrado entre o Estado e a prefeitura de Porto Alegre, que já
vinha acompanhando o caso por meio do programa Ação Rua, vinculado à Fundação
de Assistência Social e Cidadania (Fasc), e incluído o menino em fila de espera
para tratamento. No fim de julho, com a ação em parceria, Felipe foi internado
em Novo Hamburgo, com a expectativa de ficar até nove meses. No dia da partida,
estava ansioso.
— Eu vou ficar lá, vai ser melhor pra mim, quero mudar de
vida — repetia, como se quisesse se convencer.
O ânimo durou pouco. Isolado na fazenda, cercado de regras
para obedecer, com abstinência da pedra que consumia diariamente, Felipe não
aguentou. Dez dias depois de chegar, pulou a cerca e fugiu. Dias depois,
telefonou a cobrar para a repórter, com o celular emprestado por uma vizinha da
Vila do Esqueleto, para onde retornou.
— Eu fugi. Não fica triste comigo.
Disse que não gostou do ambiente e preferia ficar em casa.
Uma recaída comum entre dependentes químicos. Em fazendas como essa, ninguém é
obrigado a ficar contra a vontade — e a abstinência cobra seu preço. A
diferença é que, desta vez, a fuga não passou despercebida. Educadores do
programa Ação Rua que atuam na sua região passaram a acompanhar Felipe de
perto. Desde julho, têm encontros semanais com a mãe e com o adolescente.
Numa segunda tentativa de resgate, a Secretaria Estadual da
Justiça e dos Direitos Humanos entrou em contato com o Pão dos Pobres e
assegurou a vaga para ele.
— É possível tirar uma criança da rua quando se criam
oportunidades — confia o gerente socioeducativo do Pão dos Pobres, João Rocha.
Na tarde de quarta-feira, dia 10, Felipe adormeceu em casa
enquanto assistia ao filme A Fuga das Galinhas pela TV. A mãe estava desde
segunda-feira em Torres, acompanhando a avó de Felipe, que está hospitalizada.
O menino ficou sozinho com o padrasto, que havia saído para catar latinhas, e
com o sobrinho criado pela mãe. Orgulhoso, mostrou de novo as mãos limpinhas, que
mexiam sem parar numa caixinha de som que disse ter comprado de uma vizinha por
R$ 35. No repertório, músicas do racionais MC que falam de crime, favela,
tráfico, com trechos como "a única saída que o pobre encontra na periferia
é o mundo do crime".
— Eu posso escutar essas músicas, mas eu não tenho maldade
na cabeça... sou o mesmo guri de sempre — apressou-se em explicar.
Disse que estava feliz com a nova rotina, que agora só
pensava pra frente, que tinha parado com as drogas:
— Tô ficando em casa direto, só da oficina pra casa, daqui
de casa pra oficina.
O problema é que ele também decidiu parar com os remédios
que controlam a fissura, dizendo que provocavam "muita bobeira" para
as atividades.
No dia seguinte, a convite de ZH, foi levado pela reportagem
até o Pão dos Pobres. Antes de sair de casa, esticou com esmero o lençol branco
da cama onde dorme, no alto do beliche comprado há três meses pela mãe. Saiu
com cabelo raspado, tênis "que aperta o pé", um abrigo rasgado no
bolso, um casaco de moletom emprestado pelo padrasto. Na instituição, pegou
raquete de tênis, jogou futebol, comeu carreteiro, ambrosia. Quando parecia
perfeitamente integrado ao ambiente, saiu correndo sem avisar ninguém. Disse
que precisava ir embora.
— Mas por quê? — perguntou a repórter, que o alcançou na
calçada.
— Ah, eu tenho que ir num lugar.
Fonte: Site Zero Hora
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