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domingo, outubro 14

Filho da Rua: Quatro meses após publicação de reportagem, Felipe aproveita chance de seguir um caminho diferente






Foto: Jefferson Botega / Agencia RBS


Na instituição Pão dos Pobres, ele começou a frequentar oficinas de dança de rua, percussão, capoeira e atividades esportivas

Ele abre as mãos espalmando os cinco dedos. Na ponta de cada unha, exibe uma camada de orgulho.

— Tira uma foto? — sugere, dentro do casebre construído com tábuas recolhidas do lixo onde mora com a família na Vila do Esqueleto, nos altos da Avenida Protásio Alves, em Porto Alegre.

Mostrar as mãos limpas virou uma questão de orgulho para Felipe desde a publicação da reportagem Filho da Rua, que contou a sua história. Analfabeto, o adolescente acompanhado desde março de 2009 por ZH não pôde ler o caderno especial de 16 páginas que narrou sua peregrinação pelas esquinas, publicado em 17 de junho. Mas Felipe sabe que cada linha daquele texto grandão que viu nas páginas do jornal contava sua vida. Das fotos que flagravam suas idas e vindas entre a casa e o asfalto, nenhuma o desafiou tanto quanto a estampada na capa. Sua mão direita no portão da antiga casa de onde fugia, impregnada com a sujeira das calçadas onde dormia, mostrada na imagem, virou um símbolo de uma trajetória que ele agora tenta interromper.

A provocação veio do vizinho, quando exibia o jornal orgulhoso de sua projeção.

— Essas são as tuas mãos? — riu o homem, em tom de deboche, na mesma semana da publicação.

Envergonhado, Felipe baixou a cabeça e voltou para casa, disposto a mudar o próprio retrato. Vem conseguindo. Surpreendendo a si mesmo e aos outros, tem descoberto nestes quatro meses que ainda é possível trilhar um caminho diferente, com ajuda de uma rede de assistência que passou a enxergá-lo com olhos mais atentos desde a publicação de sua história. São conquistas provisórias, entre passos hesitantes, mas que já permitem comemoração.

O cenário deste recomeço é a instituição Pão dos Pobres, onde desde o fim de agosto começou a frequentar oficinas de dança de rua, percussão, capoeira e atividades esportivas. Os dedos que antes apareciam chamuscados pelo fumo de crack aos poucos aprendem a dedilhar um violão, coreografar passos de hip hop, brincar ao lado de outras crianças e adolescentes como um deles. Gestos singelos que conferem uma moldura de esperança a um destino que parecia condenado à rua, depois de nove anos de peregrinação pelas esquinas.

A história de como ele chegou até ali é sintomática desse percurso de altos e baixos em que sua vida oscila. Antes de conhecer as quadras de futebol e tênis do Pão dos Pobres, Felipe foi confrontado com um de seus maiores fantasmas. Em 3 de julho deste ano, foi recolhido pela primeira vez à Fundação de Assistência Socioeducativo (Fase), por furtos cometidos em 2010, quando morava em Torres. Era inaugurado oficialmente assim o currículo de infrator do adolescente que até hoje não aprendeu a ler e escrever. Ficou apenas uma noite internado, o suficiente para que levasse um choque de realidade. Quando foi liberado, voltou para casa decidido a mudar de vida. Em 10 de julho, disse a ZH que queria ir para uma fazenda terapêutica. E chorou, abraçado na mãe, ao lembrar o quanto a tinha feito sofrer.

— A rua só traz mal, traz incomodação pras mãe. Quero largar as droga. Sou um guri muito bonito, eu sei, minha mãe sofreu muito por causa de mim — constatava.

Diante da repercussão do caso, o secretário da Justiça e dos Direitos Humanos, Fabiano Pereira, empenhou-se pessoalmente em garantir vaga para a internação de Felipe em uma fazenda terapêutica. Ganhava impulso ali um trabalho mais integrado entre o Estado e a prefeitura de Porto Alegre, que já vinha acompanhando o caso por meio do programa Ação Rua, vinculado à Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), e incluído o menino em fila de espera para tratamento. No fim de julho, com a ação em parceria, Felipe foi internado em Novo Hamburgo, com a expectativa de ficar até nove meses. No dia da partida, estava ansioso.

— Eu vou ficar lá, vai ser melhor pra mim, quero mudar de vida — repetia, como se quisesse se convencer.

O ânimo durou pouco. Isolado na fazenda, cercado de regras para obedecer, com abstinência da pedra que consumia diariamente, Felipe não aguentou. Dez dias depois de chegar, pulou a cerca e fugiu. Dias depois, telefonou a cobrar para a repórter, com o celular emprestado por uma vizinha da Vila do Esqueleto, para onde retornou.

— Eu fugi. Não fica triste comigo.

Disse que não gostou do ambiente e preferia ficar em casa. Uma recaída comum entre dependentes químicos. Em fazendas como essa, ninguém é obrigado a ficar contra a vontade — e a abstinência cobra seu preço. A diferença é que, desta vez, a fuga não passou despercebida. Educadores do programa Ação Rua que atuam na sua região passaram a acompanhar Felipe de perto. Desde julho, têm encontros semanais com a mãe e com o adolescente.

Numa segunda tentativa de resgate, a Secretaria Estadual da Justiça e dos Direitos Humanos entrou em contato com o Pão dos Pobres e assegurou a vaga para ele.

— É possível tirar uma criança da rua quando se criam oportunidades — confia o gerente socioeducativo do Pão dos Pobres, João Rocha.

Na tarde de quarta-feira, dia 10, Felipe adormeceu em casa enquanto assistia ao filme A Fuga das Galinhas pela TV. A mãe estava desde segunda-feira em Torres, acompanhando a avó de Felipe, que está hospitalizada. O menino ficou sozinho com o padrasto, que havia saído para catar latinhas, e com o sobrinho criado pela mãe. Orgulhoso, mostrou de novo as mãos limpinhas, que mexiam sem parar numa caixinha de som que disse ter comprado de uma vizinha por R$ 35. No repertório, músicas do racionais MC que falam de crime, favela, tráfico, com trechos como "a única saída que o pobre encontra na periferia é o mundo do crime".

— Eu posso escutar essas músicas, mas eu não tenho maldade na cabeça... sou o mesmo guri de sempre — apressou-se em explicar.

Disse que estava feliz com a nova rotina, que agora só pensava pra frente, que tinha parado com as drogas:

— Tô ficando em casa direto, só da oficina pra casa, daqui de casa pra oficina.

O problema é que ele também decidiu parar com os remédios que controlam a fissura, dizendo que provocavam "muita bobeira" para as atividades.

No dia seguinte, a convite de ZH, foi levado pela reportagem até o Pão dos Pobres. Antes de sair de casa, esticou com esmero o lençol branco da cama onde dorme, no alto do beliche comprado há três meses pela mãe. Saiu com cabelo raspado, tênis "que aperta o pé", um abrigo rasgado no bolso, um casaco de moletom emprestado pelo padrasto. Na instituição, pegou raquete de tênis, jogou futebol, comeu carreteiro, ambrosia. Quando parecia perfeitamente integrado ao ambiente, saiu correndo sem avisar ninguém. Disse que precisava ir embora.

— Mas por quê? — perguntou a repórter, que o alcançou na calçada.

— Ah, eu tenho que ir num lugar.

Fonte: Site Zero Hora 

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