Polícia procura preso suspeito de ter sido assassinado
em albergue de Venâncio AiresFoto: Álvaro Pegoraro / Especial
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A administração precária dos presídios gaúchos tem
determinado a morte de detentos, seja por falta de atendimento de saúde ou em
guerras de facções. Uma das consequências dessa realidade é o aumento de ações
indenizatórias contra o Estado.
A deficiência do Estado em administrar presídios tem
decretado sentenças fatais a apenados gaúchos.
A cada três dias, um preso morre em cadeias do Rio Grande do
Sul fulminado pela precariedade no atendimento de saúde ou assassinado em
guerras de facções que dominam as prisões. Os óbitos têm gerado novos
dissabores: a redução de vagas nos presídios, em razão de interdições, e o
aumento de ações indenizatórias contra o Estado.
Somente entre 1º e 6 de outubro ocorreram três casos. Dois
por doença, em hospitais da Capital, e um sob suspeita de enforcamento na
Penitenciária de Arroio dos Ratos – a segunda vítima na cadeia que começou a
ser ocupada em agosto.
– Isso é um absurdo. Qualquer pessoa pode ser presa, seja
por acidente de trânsito, embriaguez, sonegação, e está sujeita a morrer,
doente ou assassinada – lamenta Ricardo Breier, presidente da Comissão de
Direitos Humanos da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Estado.
Levantamento da Vara de Execuções Criminais (VEC) da Capital
aponta que, desde 2009, apenas em prisões da Região Metropolitana morreram 255
detentos, 76% por causa de doenças respiratórias como broncopneumonia e
tuberculose. A estatística é resultado de minucioso monitoramento da VEC e do
Ministério Público.
O trabalho começou em 2005, exigindo a comunicação imediata
de mortes, acompanhadas de documentos de atendimento médico. A partir daí, o
problema veio à tona. Familiares de apenados têm obtido acesso aos documentos
e, aos poucos, o Estado vem sendo responsabilizado nos tribunais a pagar
indenizações pelas mortes.
– É ilógico o Estado não investir em melhorias nas prisões e
gastar indenizando aqueles que são vitimados pela omissão estatal. Ainda não compreendemos
que o tratamento dispensado ao preso identifica o grau de civilidade de uma
sociedade e tem relação direta com índices de criminalidade – lastima o
promotor Gilmar Bortolotto, da Promotoria de Fiscalização de Presídios.
Zero Hora teve acesso a 12 processos, julgados pelo Tribunal
de Justiça (TJ) a partir de 2010, nos quais o Estado foi condenado a
desembolsar R$ 821,9 mil em indenizações por danos morais a familiares de
presos mortos dentro das cadeias. O valor não considera correções monetárias e
o pagamento de pensões mensais a filhos de apenados, em geral, um terço do
salário mínimo, até eles completarem 25 anos.
Não existe um levantamento oficial do número de ações que
aportam ao Judiciário, mas o sentimento é de que elas só aumentam.
– Em anos anteriores eram muito eventuais, mas agora se
tornou uma constante – observa a desembargadora Marilene Bonzanini, presidente
da 9ª Câmara Cível do TJ.
Estimativas apontam que até quatro ações ingressam no TJ a
cada mês. Apenas a Defensoria Pública é autora de 34 processos.
– Não entramos com mais ações porque nem tudo chega até nós.
São 120 mortes por ano, imagina o quanto o Estado deveria pagar, deixando de
investir em outras áreas – adverte Miguel Seadi Junior, coordenador da Unidade
Central de Atendimento da Defensoria Pública Estadual.
A Procuradoria-geral do Estado contabiliza 52 processos e
garante que nenhum deles ainda tramitou em todas as instâncias judiciais e, por
isso, ainda não foram pagas indenizações.
A desembargadora Marilene comenta que o Supremo Tribunal
Federal entende que os Estados são responsáveis pela guarda e segurança de
detentos e, quando morrem, o dano tem de ser reparado.
– O Estado tem sido negligente. É como um hospital, tem o
dever de garantir bom atendimento aos pacientes. Não existem condições de
ressocialização nos presídios e estamos criando mais ônus para a sociedade –
lamenta.
Marilene lembra que o Estado tem sido punido até em casos de
morte de apenados por overdose, por permitir o ingresso de drogas nas cadeias.
Execuções e desaparecimentos de detentos deram a dois
albergues a fama de “cemitérios de presos”, obrigando a Vara de Execuções
Criminais (VEC) de Porto Alegre a interditá-los parcialmente. O caso mais
crítico é o do Instituto Penal de Charqueadas (antigo Ipep), cenário de quatro
execuções de apenados e uma tentativa de homicídio em pouco mais de um ano. Os
corpos dos mortos foram mutilados e enterrados, dentro do terreno do instituto
ou deixados nas proximidades.
Apesar da interdição e de reiterados pedidos de providências
judiciais, uma revista nos alojamentos em 12 de setembro mostrou que o albergue
segue um barril de pólvora. Foram apreendidos quatro revólveres, uma pistola,
farta munição, armas artesanais, além de 77 celulares e drogas. Em um despacho,
o juiz Sidinei Brzuska, da VEC, definiu o albergue:
– O lugar parece mais um ponto de venda de drogas do que uma
unidade penitenciária que tem por finalidade, ou ao menos deveria ter, devolver
o condenado à sociedade em condições melhores.
Não menos preocupante é a situação na Colônia Penal Agrícola
de Venâncio Aires (antigo Instituto Penal de Mariante), interditada por falta
de segurança e degradação da estrutura física. Em um ano e meio, são três casos
de mortes e um de desaparecimento.
Cristiano Coronel Machado foi enforcado em abril, poucas
horas depois de chegar ao albergue, e o corpo, com pés e mãos amarrados,
deixado em um latão de lixo. Em setembro, Cezar Roberto Peres de Souza foi
abatido a tiros em uma estrada, um dia depois de ser transferido para Venâncio
Aires. Em maio, outro apenado desapareceu sob suspeita de assassinado. O corpo
estaria em um poço. A Polícia Civil fez buscas na região, mas nada encontrou. A
decadência do albergue pode ser percebida em uma cela, onde a grade foi serrada
e as barras de ferros, amarradas com panos.
Brzuska lamenta que, além da incapacidade de evitar os
assassinatos, os crimes não sejam investigados. O juiz tem uma lista com nomes
de 11 presos executados – nove em Charqueadas e dois em Venâncio Aires – nos
últimos dois anos. Segundo ele, nenhum caso foi esclarecido.
– Há casos em que é impossível impedir um preso de matar
outro, mas é inaceitável que o crime não seja apurado – critica.
O que diz a Susepe
- A Susepe tem reforçado a segurança nos presídios para
evitar conflitos entre detentos e mortes por assassinatos. Também está em
andamento o projeto de classificação de presos, que separa condenados de
provisórios. Em relação às mortes por doenças, é importante ressaltar que a maioria
já chega aos presídios com enfermidades como aids, tuberculose etc. A Susepe
faz atendimento e, nos casos mais graves, encaminha para hospitais. A maior
parte acaba morrendo nos hospitais pelo estado grave em que se encontrava. A
Susepe tem 22 equipes de saúde que atendem às maiores casas prisionais. As
equipes são compostas por médico, odontólogo, enfermeiro, psicólogo, assistente
social e auxiliar de gabinete odontológico.
Mesmo com o direito reconhecido pelo TJ, parentes de presos
mortos em presídios enfrentam uma longa espera por indenizações. O governo do
Estado contesta as decisões até a última instância, em Brasília, e, quando
derrotado, converte as dívidas mais elevadas (acima de 40 salários mínimos) em
precatórios. Uma das famílias que aguardam reparação é a do músico Diógenes
Gomes de Lima.
Vinte anos depois, as feridas ainda estão abertas. Os
parentes tentam colocar um ponto final no caso quando receberem o direito a uma
indenização calculada em R$ 120 mil. Confundido com um homem que teria abusado
de uma menina, Diógenes, 31 anos, tenente da reserva do Exército, foi preso na
noite de 16 de março de 1992 e levado ao Presídio Central.
Na cela, teria sofrido agressões e violência sexual, a ponto
de entrar em surto psicótico e depressão. Transferido para o Instituto
Psiquiátrico Forense, foi encontrado enforcado. Agentes penitenciários e
apenados foram condenados por estimular atentado violento ao pudor e instigar o
suicídio.
No mesmo compasso de espera vive a pensionista Argentina
Testolin dos Santos, 73 anos, mãe do apenado Jardel Francisco Testolin dos
Santos, morto aos 29 anos em setembro de 2004, na Penitenciária Estadual do
Jacuí. Segundo ela, o filho caçula foi agredido por policiais e ficou cuspindo
e urinando sangue durante dias.
– Até hoje vejo ele pedindo socorro – recorda a mãe, aos
prantos.
Em setembro de 2010, o TJ confirmou indenização de R$ 30 mil
para Argentina, porém não existe previsão de quando ela vai receber.
Fonte: Jornal Zero Hora
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