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domingo, dezembro 2

Ayres Britto fala sobre mensalão: "Nunca se viu conjunto de crimes tão graves"

Foto: Robson Cesco / Especial

Ex-presidente do STF, que estreia neste domingo como articulista de ZH, expõe suas opiniões*

*Carolina Bahia e Klécio Santos (Leia entrevista completa em Zero Hora)


Carlos Augusto Ayres Britto de Freitas, 70 anos, ainda está longe de se aposentar. Na primeira insinuação de que a vida estaria mais tranquila afastado dos conflitos do Supremo Tribunal Federal, responde com a voz serena, mas marcada pelo forte sotaque sergipano:

— Continuo no batidão de sempre.

Uma semana depois de deixar a presidência da mais alta Corte do país, o magistrado vem atendendo a numerosos compromissos para conferências e homenagens em diferentes lugares do Brasil. Nada, porém, denota qualquer estresse no tom cordial de Ayres.

Parece se divertir depois de três meses de grande tensão à frente do rumoroso julgamento do mensalão. O local da entrevista foi uma escolha pessoal do ex-ministro, o Ernesto Cafés, um ambiente aconchegante que costuma frequentar aos domingos e conhece os funcionários pelo nome.

— Boa tarde, Aninha. Tudo bem com você? Um café com leite — pede o ministro à garçonete, que vez por outra ainda serve uma tapioca doce para o ilustre frequentador.
Entre máquinas de torrefação e cafés aromáticos, Ayres começa a filosofar na tarde nublada da última quarta-feira em Brasília, distante do Supremo, que naquele dia decidia as penas do delator Roberto Jefferson e do deputado João Paulo Cunha. Ao longo de quase duas horas de entrevista, cria neologismos como insimilar e cita desde gurus indianos como Jiddu Krishanamurti e Osho [Rajneesh] até o dramaturgo inglês William Shakespeare, fala de pequenos prazeres como tocar violão e dos preparativos para o lançamento de seu sétimo livro de poesia, DNAlma, projeto que havia abandonado por não achar conveniente lançá-lo em meio ao julgamento do mensalão por conta de liberdades que concede enquanto escreve.

- Escrevo como quem respira e a publicação naquele momento me traria problemas — reconhece.

Afinal, o livro contém poemas curtos, tipo haicai com pérolas como: "o que certos políticos sabem cerzir, são as meias verdades".

Ayres faz questão de frisar que um dos prefaciadores é o poeta gaúcho Carlos Nejar e que irá dedicar a obra a vários escritores, entre eles Fabrício Carpinejar, a quem lamenta não conhecer, mas admira a ponto de citar oxímoros de cor. Durante a conversa, Ayres carrega o entusiasmo do menino que um dia sonhou em ser jogador de futebol. Ele mesmo confessa que era um craque, fazia 400 embaixadinhas e dominava a bola com os dois pés. Mas o pai, um poeta e juiz observador, preconizou:

- O seu negócio é filosofia, meu filho. Você é um homem das letras!
No próximo domingo, Ayres estreia como articulista de Zero Hora e os leitores poderão desfrutar dessa vocação. A seguir, os principais trechos da entrevista:

ZH - Como é a vida sem a toga? A toga pela responsabilidade pesava?

Ayres - Não pesava. Eu sempre soube fazer do meu dever um prazer sem querer dourar a pílula. Sempre coloquei no que fiz, e continuo a colocar no que faço, alegria, empenho, responsabilidade, de modo a fazer do meu trabalho a minha própria cara.

Você termina se transfundindo, transferindo sua subjetividade para objetividade do seu trabalho.

ZH — Com a saída do STF, o senhor teria dito que vai se dedicar à reforma da casa e a terminar um livro de poesias. Quais os seus planos a curto prazo?

Ayres - Não sou de fazer planos, mas, a partir de uma análise daquilo que gosto de fazer tudo em mim é previsível. Continuarei voltado para leituras, conferências e criação artística na área da poesia e jurídica. E a reforma da casa estou envolvido até o pescoço.

O livro de poesias estava pronto, eu não publiquei porque não queria abrir flancos, dar ensejo a discussões certamente desgastantes no que tocam as licenças poéticas. O criador não se censura, ele não agrada ao politicamente correto. Quem escreve poesia muitas vezes não mede as palavras, não usa trena nem esquadro, é mais solto. Esse tipo de postura literária, concomitante à presidência do Supremo me traria problemas. Me tiraria do foco.

ZH - O senhor comentou durante o julgamento que condenar alguém deixa na boca um gosto de jiló.

Ayres - Eu gosto de tocar violão, hoje estava tocando uma música de Gonzaguinha: Primeiro você me azucrina, me entorna a cabeça e deixa na boca um gosto amargo de fel. Ai eu pensei: poxa, devia ter citado Gonzaguinha.

ZH — Esse gosto já passou?

Ayres - Sim. Um juiz criminal tem que julgar com o máximo de cuidado para não se sentir culpado ao culpar. Para ter que culpar o réu, você tem que ter a certeza de que não vai se culpar como julgador. No começo, ou até a metade do julgamento, o meu sono estava mais fatiado do que a metodologia usada por Joaquim Barbosa para o julgamento. E creio que isso acontecia com os demais ministros. Por isso falei sobre gosto de jiló, mandioca brava e berinjela crua. Você fica se questionando o tempo todo.

Quando o caso é de condenação, tem que condenar. Você condena contristadoramente, amargamente, principalmente se a condenação for para aplicar a pena privativa de liberdade.

ZH — Como o senhor vê alguns comentários de que há exagero nas penas?
Ayres — Primeiro, o Supremo fixou uma pena a partir do voto do relator, que na maioria das vezes preponderou sobre o voto do revisor. Se convencionou para segundo momento alguns ajustes, para que o princípio da proporcionalidade você observado ao máximo. Alguns ajustes ainda virão, sobretudo por efeito da distinção entre crime continuado e concurso material de crimes. Isso tudo ficou ajustado, é possível, portanto, que mais adiante haja uma pequena redução nas penas.

ZH - Como os senhor vê as manifestações de condenados com relação ao Supremo? É um amadurecimento da democracia ou uma afronta ao Supremo?

Ayres - Vejo a irresignação dos réus como uma reação natural de quem vê o processo pelo prisma do personalíssimo, que diz respeito aos interesses deles. Essa irresignação fica no princípio da liberdade de pensamento e expressão.

Nada a censurar. Agora, a minha convicção é de que o Supremo foi serviente do direito positivo brasileiro ao emitir os dois juízos centrais, o primeiro de condenação e o segundo de apenação, fazendo com transparência, responsabilidade, cuidado técnico e isenção, ingredientes que legitimam a decisão.

ZH - É difícil não ceder a pressão da opinião pública num julgamento como esse?
Ayres - Eu tenho para mim que o Supremo fez mais à opinião pública do que foi influenciado por ela. Não vamos inverter as coisas. A medida que o processo ia transcorrendo e os debates entre os ministros do Supremo se travando, a opinião pública foi se formando. Mas não é só: um ministro do Supremo é vacinado contra qualquer tipo de pressão.

ZH — Mas de certa forma, o julgamento surpreendeu o cidadão, que não esperava ver grandes políticos condenados. Fica um novo padrão para nossa política?

Ayres - Eu sou de formação holista, tendo a ver as coisas por um prisma esférico. Em uma circunferência estão todos os lados. Quando você vê a realidade, inclusive jurídica, esfericamente, você a vê por todos os ângulos. O que tem sucedido o Supremo na última década? É só você pensar: combate ao nepotismo, células-troncos, Lei Maria da Penha, liberdade de imprensa, homoafetividade, lei da Ficha Limpa, fidelidade partidária, Marcha da Maconha. O Supremo vem com histórico de decisões que influenciam o modo de agir e pensar dos brasileiros, está mudando a cultura brasileira para mais próxima da democracia, do não preconceito e do civismo.

ZH - O senhor tem religião, acredita em Deus?

Ayres - Acredito em Deus, sou deísta, sou criacionista. Agora sou de formação católica, mas eu me defino hoje como holista ou espiritualista. Transito em todas as religiões mas não fecho com nenhuma.

ZH - Como é transitar em todas as religiões?

Ayres - Religião significa pelo etmo da palavra religação. Que religação? Da criatura com o criador. As religiões fazem o meio-campo, a ponte entre o crente e a divindade. A minha opinião hoje é de que o ideal é uma linha direta do crente com a divindade, sem passar pela mediação das igrejas, das confissões. É como você olhar o brilho e a silhueta da lua através de um lago pela lâmina d'água. Não é melhor olhar direto?

ZH - O senhor aprendeu isso com a meditação?
Ayres - A meditação é realmente uma fascinante escola de vida. Para você conhecer a sua personalidade, o mistério da vida, é preciso meditar. Tenho feito diariamente, medito há pelo menos 20 anos. Meditação budica ou oriental. Com o tempo, cada meditante se torna professor de si mesmo.

ZH - E a tensão entre relator e revisor existia nos bastidores?

Ayres - Em algumas poucas oportunidades, sim. Houve tensão nos bastidores. Mas a minha opinião final sobre os ministros é favorável. Acho que no limite, um ministro do Supremo, é plenamente consciente de que o senso de institucionalidade deve preponderar sobre o senso de vaidade, egocentrismo ou coisa que o valha.

ZH — São as vaidades que fazem com que os ministros briguem entre si?

Ayres - Eu não diria as vaidades, eu diria o pluralismo, a diversidade, que é própria da vida e do ser humano. Há um contraditório argumentativo entre os juízes de um mesmo colegiado. E mais do que saudável, é necessário para legitimar a decisão. Como presidente eu busquei criar o maior clima possível de liberdade para que a discussões aflorassem.

ZH - As transmissões do julgamento pela TV proporcionam um certo espetáculo?

Ayres - Sou favorável a visibilidade do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário. A exposição em excesso só influencia julgadores imaturos. Os julgadores amadurecidos nas lides forenses e judiciária tiram de letra. Eu mesmo nem percebo que estou sendo filmado, você se habitua.

ZH - Mas depois do mensalão o senhor acha que o Supremo pode recuar sobre a transmissão das sessões na TV?

Ayres - Acho que não. Vamos ter vantagens e desvantagens. Desvantagens: O ministro se sente, digamos, protagonista social mais do que judicial. Ele se sente alvo das atenções de todo o país, com o risco de propender ou resvalar para o estrelismo, o vedetismo, o marketing pessoal, a chance de sentir um pop star, reconhecido nas ruas, com foto nos jornais, imagem no noticiário. É o que de pior pode acontecer você se sentir uma estrela. Isso acontece se você for imaturo. E ali não tem ninguém imaturo. Dá para administrar a exposição sem se deixar afetar por ela.

ZH — E as vantagens?

Ayres - Você requinta o voto. Ninguém quer passar recibo de decadente, de leviano, de comparativamente fraco no contexto dos outros ministros. Ali todo mundo tem que transformar os pré-requisitos de investiduras em requisitos de desempenho. A tendência de um ministro do Supremo é dizer, "eu tenho uma obrigação". E para isso, tenho que ser preparado tecnicamente o tempo todo e castamente ético.

ZH - Ao mesmo tempo, o juiz deixou de ser inalcançável, a população se aproximou de vocês.

Ayres - É isso que eu estou dizendo, a vantagem. Sem firulas, sem floreios, sem rapapés para dizer o que o Joaquim Barbosa disse [na posse]. Você exercita ali, a vista de todos, a sua capacidade de diálogo, a sua humildade para ouvir o outro. Você tem de saber ouvir o outro, porque o voto não é uma decisão. É interessante, pois um juiz de primeiro grau pode mais do que um ministro do Supremo no seguinte aspecto: a sua sentença exprimi a vontade decisória do Estado. O voto do ministro do Supremo não é uma decisão, é uma proposta de decisão. Você não quer vencer, você quer convencer. Você tem de ser convincente.

ZH - O senhor falou que honrar a indicação é ser independente.

Ayres - O melhor modo de honrar o nomeante é você ser independente, honesto, corajoso. Do ângulo do juiz, essa cobertura da imprensa obriga você se comportar em público sem pagar mico. Isso é excelente, você toma cuidados para que suas virtudes aflorem e seus defeitos fiquem submersos. Agora, do ângulo do cidadão, ele começa a internalizar a ideia jurídica de que é direito dele saber como julgam os magistrados. É um direito do cidadão ver a decisão sendo formada passo a passo, momento a momento. E o cidadão vai se habituando a cobrar coerência do julgador. A maior de todas as coragens para o Judiciário e a coragem de assumir a sua independência.

ZH — Qual a sua opinião sobre a perda automática do mandato dos parlamentares condenados?

Ayres — Talvez seja a única pergunta que eu vou deixar sem resposta. Por quê? Porque foi o único voto que eu não preparei.

ZH - Como o senhor vê essas críticas de que o José Dirceu foi condenado sem provas e de que a corte teria usado apenas indícios?

Ayres - É um direito de todo o réu porfiar, persistir na sua defesa. A Constituição assegura a todo o réu a intransigente defesa própria ou a não autoincriminação. Isso incorpora o direito de se insubmeter às decisões no plano argumentativo. Agora, quando dizem que o Supremo inovou ou produziu julgamento heterodoxo, eu digo que não, absolutamente não. Heterodoxa é a causa.

ZH — Por quê?

Ayres - Nunca se viu no ponto de largada de uma ação penal, 40 réus pertencentes as mais altas esferas da sociedades: governamental, política, empresarial, bancária. Nunca se viu um conjunto de crimes tão graves, tão numerosos e entrelaçados. Corrupção ativa, corrupção passiva, lavagem de dinheiro, evasão de divisas, gestão fraudulenta, você nunca viu isso. Então, insimilar é o caso com quase 60 mil páginas, 600 testemunhas. E o Supremo teria de tomar uma decisão afeiçoada a heterodoxia do caso, e o fez tecnicamente, com toda isenção e transparência.

ZH - O senhor foi filiado ao PT nos seus áureos tempos. Na sua opinião, o que fez com que o partido perdesse o que ele mais pregava?

Ayres - Eu faço uma distinção. Não é o PT que está sendo julgado, porque os réus são dirigentes altivos do PT. E o PT, mais até do qualquer outro partido, pratica um pluralismo de tendências, de visões internas, que me obriga a fazer essa distinção. No PT há quadros, personalidades que eu tenho como dignas de toda admiração, de todo respeito, a partir do governador do Rio Grande do Sul, o Tarso Genro. Agora, se você quiser uma opinião um pouco mais sociológica, eu diria que aconteceu com o PT o que aconteceu com o PSDB. Esses dois partidos encarnavam o espírito de resistência chegaram ao poder máximo. PSDB com Fernando Henrique, PT com Lula. Observou-se no governo do PSDB um certo recuo ideológico, uma espécie de arrefecimento ideologicamente falando. O ímpeto transformador dos nossos costumes políticos foi sensivelmente reduzido. E o mesmo fenômeno aconteceu com o PT. Do ponto de vista social, o Brasil melhorou, tanto no governo do PSDB quanto no do PT. Mas a qualidade da vida política do nosso país, não. Os dois falharam nisso.

ZH — Há um movimento na internet que defende Joaquim Barbosa para presidente da República. Qual a sua opinião?

Ayres - Faz parte da excitação cívica incomum em nosso país, ao perceber que um princípio fundamental de estruturação das sociedades civilizadas está sendo aplicado pelo Supremo. Que princípio? De que a lei é igual para todos, de que ninguém está acima da lei. Como o ministro Joaquim ganhou mais projeção pelo fato de ser o relator, ele, passa a ser visto como salvador da pátria. Mas é apenas um momento, uma euforia que logo refluirá, porque o ministro não tem a menor pretensão de ser presidente da República.

ZH - O senhor é a favor de que os ministros tenham mandatos, como políticos?

Ayres — Sim. Chega um tempo em que o cargo tem o direito de nos ver pelas costas. Eu acho que entre oito e 12 anos está bom tamanho para o exercício do cargo.

ZH — Para encerrar ministro, o desfecho do mensalão pode ajudar a mudar o jeito de fazer política do Brasil?

Ayres - Sinaliza mais do que uma mudança, uma transformação, na linha do que disse Shakespeare: Transformação é uma porta que se abre por dentro. Transformar é mais do que mudar, porque significa você se ver ejetado para o plano da consciência, o mais alto do ser. Transformação significa atuar na cultura de um povo, e quando você atua na cultura você deflagra comportamentos de massa muito mais conscientes e sem possibilidade de retorno precedente. Sinaliza uma transformação nos nossos costumes políticos para melhor. O que o Supremo está dizendo é o seguinte: há um modo de fazer política, há um modo de fazer coalizão e alianças política que o Direito brasileiro execra, excomunga, não aceita.


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