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domingo, março 20

As histórias de quem se afastou do crime (matéria de Zero Hora)


Mesmo diante da falta de uma política de reinserção, ex-presos contrariam tendência e escapam da reincidência.

Enquanto retira panos, macacões e luvas de uma gigantesca máquina de lavar roupas, Pedro Cristiano Barros de Medeiros revela seus planos:

– Tá vendo aquele cara de camiseta azul, junto com o chefe?

Trata-se do supervisor de produção de uma empresa de lavagem de produtos industriais, uns cinco metros adiante.

– Tô me preparando para chegar lá.

Missioneiro de São Luiz Gonzaga, Medeiros fez o mais difícil para quem passou 15 dos seus 38 anos atrás das grades: conseguiu emprego antes de deixar a cadeia, manteve a vaga no semiaberto e assegurou a função durante a prisão domiciliar.

Pelos cálculos da Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe), apenas um em cada três egressos consegue reorganizar a vida sem delitos após ingressar na cadeia. Medeiros é um deles. Dos 30.591 presos, 19.357 (63,2%) têm pelo menos duas passagens pela cadeia.

Os dados sugerem que o percentual de reincidência seja alto. Para se ter certeza, porém, seria necessário aferir quantos voltam a ser condenados após cumprirem suas penas ou conquistarem liberdade condicional – um levantamento que as autoridades não fazem. O que se sabe é que, diante da ausência de uma política de reinserção, o crime se torna a rota mais amigável para quem deixou a cadeia.

– Fora da prisão, muitas vezes essas pessoas acabam ingressando numa carreira criminal para pagar dívidas adquiridas quando estavam presas – interpreta o sociólogo Rodrigo Azevedo.

Julita Lemgruber, ex-diretora do Sistema Penitenciário do Rio, diz que a expressão “escola do crime” para as prisões é mais do que um enunciado de efeito:

– Pesquisas nos EUA indicam que quanto mais tempo presa, mais violenta a pessoa fica. E quando sai da prisão, ela acaba cometendo crimes mais graves.

Condenado a 35 anos e dois meses por latrocínio (roubo com morte), Medeiros começou a subverter a lógica prisão-rua-prisão quando virou evangélico e migrou para a galeria dos crentes, a mais organizada e respeitada da Penitenciária Estadual do Jacuí:

– A Bíblia me ajudou a achar uma luz.

Religião promove a ressocialização

Medeiros não é exceção. O ideal da ressocialização, que deveria ser promovido pelo Estado, é levado adiante pelos religiosos. Em dissertação de mestrado sobre evangélicos nas prisões, o sociólogo Jaime Luis Kronbauer percebeu que pentecostais, com seus valores e regras morais rígidas, estimulam a recomposição de laços afetivos e familiares, incentivam o trabalho e são intolerantes com o álcool:

– Se não respeitar esses valores, o indivíduo é convidado a sair do grupo. Como está preso, é vigiado 24 horas por dia.

Mas, como se sabe, reza, bom comportamento e determinação não pagam dívidas. Após decidir que deixaria o crime, um emprego se mostrava essencial para Medeiros. E ele apareceu em 2008.

Sem direito a sair do abrigo, exercia suas funções numa unidade que a Renova Lavanderia Industrial mantém no Instituto Penal Irmão Miguel Dario, na Capital. No ano seguinte, cumpria expediente na sede da empresa, em Cachoeirinha. Ao conquistar prisão domiciliar, assinaram-lhe a carteira por R$ 763 mensais. Ao salário no final do mês e aos direitos a férias, 13º salário e cesta básica, somavam-se uma avalancha de benefícios: crédito na praça, conta em bancos, financiamentos imobiliários. O que isso significa para um ex-preso?

– Dignidade – responde Medeiros.

Para os incautos da reabilitação, o ex-bandido expõe sua tese:

– Se você der chance para 50 e apenas 10 aproveitarem, serão mais 10 longe do crime. Acho que vale a pena.


 
Rodolfo se livrou do álcool

Embalado pela cachaça, Rodolfo Orlando da Silva, um jovem proprietário de uma mercearia, matou um desafeto. Alegou legítima defesa, mas o júri o condenou a seis anos e três meses. Confinado no Presídio de Lajeado, aos 22 anos, perdeu os primeiros anos da filha Veridiana, com três meses na época.

No cárcere, tornou-se alcoólatra e usuário de maconha. Sem dinheiro para o vício, colocava em prática nas ruas a teoria aprendida no prisão: cometia furtos nas saídas autorizadas no semiaberto.

A sorte começou a mudar em 1997. Após um porre, fugiu do albergue e buscou uma clínica. Ficou 37 dias em reabilitação.

Deixou o hospital de cara limpa e disposto a se reinventar. Cumpriu pena até ser liberado pelo indulto de Natal de 1998. Em liberdade, fez de tudo até especializar-se em jardinagem, há 11 anos.

Quem o contrata, sabe que o ex-presidiário errou. Mas também percebe o esforço que faz. E confiam nele.

– Algumas pessoas deixam a chave de suas casas comigo – diz Rodolfo.

O salário mensal de R$ 2,5 mil é suficiente para sustentar a mulher e os filhos Veridiana, hoje com 15 anos, Estéfane (na foto com o pai), seis anos, e Igor, três anos.

Distância da bebida

- Com maior ou menor veemência, especialistas ligados à área da violência são categóricos ao relacionar o consumo de álcool à prática de crimes contra a vida. Para um egresso das prisões, uma vitória contra o alcoolismo é considerada decisiva para um recomeço promissor longe da cadeia.

Klein comprou padaria

Os 1,8 mil cacetinhos, 30 bolos, mil salgadinhos, 60 pizzas diárias vendidos na Padaria e Confeitaria da Maria, no coração da Vila Cruzeiro, na Capital, garantem bem mais do que o sustento da família Klein.

– Aqui está a chance de uma nova vida – sintetiza Luiz Francisco Klein, 49 anos, condenado por tráfico.

Depois de passar por prisões como o Central e a Modulada de Osório, em junho do ano passado, viu-se diante de uma oportunidade ao tomar conhecimento que o proprietário de uma padaria iria se desfazer do negócio. Klein, que trabalhara como padeiro anos atrás, consultou a mulher, Maria de Fátima Motta, ouviu amigos e arriscou:

– Vendi um Monza 89, pedi para o meu ex-patrão me demitir (Klein não havia perdido o emprego ao ser preso), consegui dinheiro emprestado, assumi uma pequena dívida e comprei o ponto.

Desde que confirmou o negócio, trabalha das 5h às 21h. Em outubro, obteve o direito à liberdade condicional. Antes de se despedir da reportagem, a mulher dele faz um pedido:

– Não deixa de dizer que, sem uma oportunidade, sem uma chance, ninguém sai de dentro de um presídio.

Oportunidade

- Consultor em Segurança Pública e Direitos Humanos, Marcos Rolim destaca que o fato de alguém ter cumprido uma pena de prisão é motivo para que esta pessoa nunca mais alcance uma posição no mercado formal de trabalho – o que equivale a dizer que os “excluídos” serão impulsionados na direção do crime.

Cassio descobriu a religião

Jovem de classe média, Cassio Rodrigues Machado roubou, sequestrou e matou. A fatura, aos poucos, chegava pelas mãos de oficiais de Justiça, que o comunicavam de sucessivas condenações. No total, elas alcançaram quase oito décadas. Sem perspectivas, amparou-se no que havia de mais sólido na prisão:

– Virei evangélico.

Agarrado à Bíblia, o irmão Cassio, como colegas o chamam, voltou a estudar. Concluiu o Ensino Médio e, graças ao trabalho e aos elogios na ficha, progrediu de regime. Há quase quatro anos, está no semiaberto. Sua rotina limita-se ao expediente na TVE, onde recebe R$ 600 líquidos, a um curso profissionalizante e ao retorno ao albergue. Para quem pergunta como conseguiu mudar de vida, ele responde com sua fala mansa:

– A família ajudou, a Justiça fez a sua parte, mas foi a fé quem me libertou.


- O sociólogo Jaime Luis Kronbauer diz que a religião é um dos poucos fenômenos que tem promovido a ressocialização. O estímulo ao trabalho e à recomposição de laços afetivos e familiares é fundamental para ex-presos.
Fonte: Jornal Zero Hora

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