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quinta-feira, janeiro 26

Meninos condenados: por que a Fase não recupera




A Febem foi extinta por ineficiência, a Fase nasceu, mas o tratamento dispensado a recuperar adolescentes infratores segue o mesmo receituário: estrutura física ultrapassada, excesso de medicação, castigos, superlotação e falta de monitores.

Juízes e promotores da área da Infância e da Juventude não se surpreendem com o resultado do levantamento feito por ZH com 162 adolescentes internados em uma das casas da instituição em 2002, no qual 48 morreram, 114 foram condenados e apenas dois não voltaram a ter registros policiais 10 anos depois.

A recuperação de adolescentes, com a estrutura atual e a crescente falta de investimento está fadada a seguir sendo uma exceção. A constatação de que a Febem segue existindo é compartilhada também pela presidente da hoje Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase), Joelza Mesquita.

Um dos exemplos dos vícios nefastos da antiga Febem que ainda permeiam as unidades é o excesso de medicação, conforme tem sido constatado por levantamentos mensais da Justiça.

– Tenho dados que me assustam, principalmente quando olho para o resto do país, onde não encontramos adolescentes tão medicados como em Porto Alegre. Existe uso abusivo de medicação como forma de controle de conduta – afirma a juíza Vera Lúcia Deboni, do 3º Juizado da Vara Regional da Infância e Juventude.

Em dezembro, foi detectado que 98% dos internos da Comunidade Socioeducativa (CSE) estavam sob medicação.

– Não temos resposta técnica que nos diga que essa medicação está correta. E a situação também não avança para além da medicação. Pois se tem questão psiquiátrica a ser tratada, que tipo de terapia está sendo oferecida? – questiona Vera.

A falta de um plano efetivo – ou de vontade – para construção de novas unidades e para realização de concurso é destacada como exemplo de promessas que se perdem.

– Todos os governos vão fazer tudo, mas todos não têm dinheiro suficiente para fazer. E as coisas podem ser adiadas e dependem de um governo que entra e leva não sei quanto tempo para tomar pé da situação, porque não são os filhos deles que estão lá internados – avalia o juiz João Batista Costa Saraiva, que atua junto ao Centro Integrado da Criança e do Adolescente.

Juíza diz que investir é opção ideológica

Quanto à eterna justificativa de “falta de recursos”, Saraiva relembra o debate travado no governo passado sobre a venda da área em que está a sede da Fase, na Avenida Padre Cacique:

– Não sei se era a solução adequada. Mas se há patrimônio que não está sendo útil, tem de dar destinação diferente e utilizar esse recurso. Do que adianta eu ter no meu cofre uma pedra preciosa, e meus filhos passando fome e sem poder estudar e eu dizendo: “essa pedra eu não vendo”. A roda não precisa ser inventada, tem de rodar.

Uma das unidades da Fase funciona em um prédio do século 19. A última casa construída data do final do governo Olívio Dutra (PT), sendo que, desde então, mesmo com a mudança do modelo de Febem para Fase, não foi feito concurso.

– Temos casas com modelo prisional, superlotadas e deficiência de pessoal. Isso passa por opção ideológica, ou seja, vão colocar dinheiro nisso ou não? – provoca a juíza Vera.

Coordenadora do Centro de Apoio à Infância e à Juventude do Ministério Público, a procuradora Maria Regina Fay de Azambuja aposta no investimento em educação, esporte e lazer como medida urgente para atender aos infratores privados de liberdade:

– O Estado devia oferecer o que deixou de oferecer antes, mas o faz (dentro da Fase) de forma muito aquém do que está previsto. Minha impressão é de que trabalhamos – inclusive nós, do MP – apenas remendando o que está insuportável. Se os filhos da classe média e rica chegassem à internação, talvez o investimento lá fosse outro.

Para a procuradora, o Estado deveria ter como regra a produção permanente de dados que pudessem avaliar a eficácia do trabalho dentro da Fase e orientar correção de rumos.


Leia  matéria completa sobre os Meninos Condenados no Jornal Zero Hora, clicando AQUI.

Abaixo leia a entrevista com Joelza Mesquita Andrade Pires, responsável pela Fase: “Quero acabar com a Febem de vez”, publicada no Jornal Zero Hora. 

Responsável pela Fundação de Atendimento Socioeducativo (Fase) desde janeiro de 2011, Joelza Mesquita Andrade Pires, 53 anos, levou pouco tempo para diagnosticar que a instituição que dirige repete os mesmos erros que sepultaram a antiga Febem: excesso de medicação aplicada aos internos, agressões, falta de acompanhamento individual, carência de pessoal e superlotação.

Com a experiência de 20 anos atuando em serviços de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência, a médica baiana, com formação em pediatria, quer instalar na Fase um centro de tratamento para drogadição. Mas a principal meta ela não cansa de repetir: “Quero acabar com a Febem de vez”. A seguir, trechos da entrevista a ZH:

Zero Hora – Por que a Fase falhou com este grupo de 162 ex-internos?

Joelza Mesquita – Tudo falhou. A maioria dos internos vem de famílias excluídas da sociedade, com pais desempregados, de baixa escolaridade, que deixam os filhos à mercê de todo o tipo de adversidade. Mas a responsabilidade é um tripé. É a família, o Estado e a escola, são as políticas públicas que faltam a essa família.

ZH – Onde a família e o Estado falharam?

Joelza – O que todos os governos dizem? Que nenhuma criança pode ficar fora da escola. Ouve-se isso há 20 anos. Mas o fluxo para evitar isso não funciona. Nesse tripé tem a parte da sociedade, que prefere dar dinheiro para o menino na sinaleira. Sabe qual o maior malabarismo? Inserir esses meninos na sociedade.

ZH – Por quê?

Joelza – Porque as pessoas não acreditam na recuperação deles, talvez porque ainda acreditem na escola de bandido que era a Febem. Quando a Febem virou Fase, tinha que ter sido (uma mudança) de dentro para fora.

ZH – Isso não aconteceu?

Joelza – Tem funcionários que acham que foi muito bom mudar (a filosofia de atendimento a infratores), mas alguns outros acham que tem de continuar como antes. Então, acho que a falha é nossa. Hoje, estamos investindo em educação, em profissionalização, ocupando ao máximo o menino. A recuperação vai ser muito maior.

ZH – O que é preciso mudar?

Joelza – Por exemplo, a porta de entrada do menino aqui é o Instituto Carlos Santos. Ele teria que estar adequado do ponto de vista estrutural. Para mim, como gestora promovendo a recuperação desses meninos, fica difícil engolir quatro meninos numa cela só e a existência do atendimento especial (celas isoladas em que os internos são colocados de castigo). Não sei como permitiram que fosse assim, sem iluminação, tirando os colchões.

ZH – É a velha Febem?

Joelza – Sim. Só que ninguém assumia, ia botando para baixo do tapete.

ZH – O que a Fase tem da Febem?

Joelza – A primeira coisa é o espaço físico. Eu gostaria que todas as nossas casas tivessem um quarto por menino, sala de esportes, sala de aula, sala de lazer. O que a gente tem hoje? Numa casa para 40, eu tenho 120. Outra coisa que eu vejo muito da Febem é o atendimento especial (isolamento).

ZH – O problema de excesso de medicação na fundação não é novo.

Joelza – Desde que comecei, o excesso de medicação vem diminuindo. Na primeira visita que fiz à Comunidade Socioeducativa, fiquei impressionada, porque todos os meninos estavam enrolando a língua. E a culpa não é de ninguém, pois o médico prescreveu “se necessário”. Medicados, ficam quietos. É mais fácil. Quero tirar o excesso de medicação, iluminar os espaços, dar acesso à leitura.

ZH – Há muitos focos da Febem?

Joelza – Sim. Quero que os psiquiatras deem um diagnóstico para o menino. Quero saber porque ele precisa tomar remédio. São coisas que ficaram da época da Febem.

ZH – A carência de pessoal interfere?

Joelza – A equipe técnica é para fazer o planejamento individual de atendimento do menino, com a questão da saúde, da educação, do lazer, da convivência com a família. Hoje, a equipe técnica passa mais tempo em audiências. Dizem que não dá tempo de atender individualmente.

ZH _ A Fase trata a drogadição?

Joelza – Não. Privo o menino de liberdade. Enquanto está preso aqui, ele está longe das drogas. Eu trato as sequelas das drogas, a abstinência. Ele fica agitado, agressivo, deprimido, e o tratamento é a medicação para segurar isso, mas não trato a droga.

ZH – Não devia ser tratado?

Joelza – Quero tratar a droga. Montar um centro de atendimento psicossocial aqui dentro para tratamento da droga, porque 90% do meu adolescente é usuário de drogas, e ele mata, ele rouba, ele furta por causa da droga.

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