O relator da Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) 54, ministro Marco Aurélio, votou, nesta terça-feira (11),
pela possibilidade legal de interromper gravidez de feto anencéfalo. O ministro
considerou procedente o pedido feito pela Confederação Nacional dos Trabalhadores
na Saúde (CNTS), para declarar inconstitucional a interpretação dada aos
artigos 124, 126 e 128 (incisos I e II) do Código Penal que criminaliza a
antecipação terapêutica de parto nos casos de anencefalia.
“A incolumidade física do feto anencéfalo, que, se
sobreviver ao parto, o será por poucas horas ou dias, não pode ser preservada a
qualquer custo, em detrimento dos direitos básicos da mulher”, afirmou o
ministro, ao sustentar a descriminalização da prática. Para ele, é inadmissível
que o direito à vida de um feto que não tem chances de sobreviver prevaleça em
detrimento das garantias à dignidade da pessoa humana, à liberdade no campo
sexual, à autonomia, à privacidade, à saúde e à integridade física, psicológica
e moral da mãe, todas previstas na Constituição.
Em voto longo e baseado nas informações colhidas durante
quatro dias de audiência pública realizada pelo STF para debater o tema, o
ministro Marco Aurélio concluiu que a imposição estatal da manutenção de
gravidez cujo resultado final será a morte do feto vai de encontro aos
princípios basilares do sistema constitucional. Para ele, obrigar a mulher a
manter esse tipo de gestação significa colocá-la em uma espécie de “cárcere
privado em seu próprio corpo”, deixando-a desprovida do mínimo essencial de
autodeterminação, o que se assemelha à tortura.
“Cabe à mulher, e não ao Estado, sopesar valores e
sentimentos de ordem estritamente privada, para deliberar pela interrupção, ou
não, da gravidez”, afirmou, acrescentando estar em jogo a privacidade, a
autonomia e a dignidade humana dessas mulheres, direitos fundamentais que devem
ser respeitados. Na interpretação do ministro, ao Estado cabe o dever de
informar e prestar apoio médico e psicológico à paciente antes e depois da
decisão, independente de qual seja ela, o que hoje é perfeitamente viável no
Brasil.
Direito à vida
Em seu voto, o ministro Marco Aurélio sustentou que na ADPF
54 não se discute a descriminalização do aborto, já que existe uma clara
distinção entre este e a antecipação de parto no caso de anencefalia. “Aborto é
crime contra a vida. Tutela-se a vida potencial. No caso do anencéfalo, repito,
não existe vida possível”, frisou. A anencefalia, que pressupõe a ausência
parcial ou total do cérebro, é doença congênita letal, para a qual não há cura
e tampouco possibilidade de desenvolvimento da massa encefálica em momento
posterior. “O anencéfalo jamais se tornará uma pessoa. Em síntese, não se cuida
de vida em potencial, mas de morte segura”, afirmou o ministro.
Nesse sentido, no entendimento do relator, não há que se
falar em direito à vida ou garantias do indivíduo quando se trata de um ser
natimorto, com possibilidade quase nula de sobreviver por mais de 24 horas,
principalmente quando do outro lado estão em jogo os direitos da mulher. Dados
apresentados na audiência pública demonstram que a manutenção da gravidez
nesses casos impõe graves riscos para a saúde da mãe, assim como consequências
psicológicas severas e irreparáveis para toda a família.
Código Penal
Em relação ao fato de não haver menção no Código Penal aos
casos de anencefalia como quesito autorizador de interrupção de gravidez, o
ministro Marco Aurélio argumentou que nas décadas de 30 e 40, quando foi
editado o Código Penal hoje vigente, a medicina não possuía os recursos
técnicos necessários para identificar previamente esse tipo de anomalia fetal.
“Mesmo à falta de previsão expressa no Código Penal de 1940, parece-me lógico
que o feto sem potencialidade de vida não pode ser tutelado pelo tipo penal que
protege a vida”, afirmou.
Além disso, ele lembrou que, naquela época, o legislador,
para proteger a honra mental e a saúde da mulher, estabeleceu que o aborto em
gestação oriunda do estupro não seria crime, situação em que o feto é
plenamente viável. “Se a proteção ao feto saudável é passível de ponderação com
direitos da mulher, com maior razão o é eventual proteção dada ao feto
anencéfalo”, ponderou.
Estado laico
Ao proferir seu voto, o ministro reforçou ainda o caráter
laico do Estado brasileiro, previsto desde a Carta Magna de 1891, quando da
transição do Império à República. “A questão posta nesse processo –
inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual configura crime a
interrupção de gravidez de feto anencéfalo - não pode ser examinada sob os
influxos de orientações morais religiosas”, frisou.
Assim como ocorreu no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 3510 - sobre possibilidade de realização das
pesquisas científicas com células-tronco embrionárias, em que o STF primou pela
laicidade do Estado - para o ministro, as concepções morais e religiosas não
podem guiar as decisões estatais, devendo ficar circunscritas à esfera privada.
“O Estado não é religioso, tampouco é ateu. O Estado é simplesmente neutro”,
concluiu.
Doação de órgãos
Ao sustentar seu entendimento, o ministro Marco Aurélio
também afastou a premissa utilizada em prol da defesa do anencéfalo de que os
seus órgãos poderiam ser doados. Segundo ele, além de ser vedada a manutenção
de uma gravidez somente para viabilizar a doação de órgãos, essa possibilidade
é praticamente impossível no caso de anencefalia, pois o feto terá outras
anomalias que inviabilizariam a prática. Obrigar a mulher a manter a gravidez
apenas com esse propósito, para o relator, seria tratá-la a partir de uma
perspectiva utilitarista, de instrumento de geração de órgãos para doação, o
que também fere o princípio da dignidade da pessoa humana.
Dados
Até o ano de 2005, os juízes e Tribunais de Justiça
formalizaram cerca de 3 mil autorizações para interromper gestações em
decorrência da impossibilidade de sobrevivência do feto, o que demonstra,
segundo constatou o ministro Marco Aurélio, a necessidade de o STF se
pronunciar sobre o tema. Conforme mencionou no início de seu voto, o Brasil é o
quarto país do mundo em casos de fetos anencéfalos, ficando atrás do Chile,
México e Paraguai. A incidência é de aproximadamente um em cada mil
nascimentos, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), obtidos entre
1993 e 1998 e citados pelo relator no voto.
Fonte: Site do STF
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