(*)Por Lenio Luiz
Streck
Respeito muito os estagiários. Esta coluna é uma homenagem a
eles e, especialmente, àqueles que trabalha(ra)m em meu gabinete nestes anos
todos. Valorosa classe. Inicio com uma citação:
“Embora a qualidade média das decisões judiciais possa não
ter diminuído em conseqüência da atribuição de redigi-las a estagiários, a
variação de qualidade diminuiu. Os estagiários de direito – que em sua maioria,
são indivíduos recém-formados em direito, com referências acadêmicas
extraordinárias, mas sem experiência em direito ou em qualquer outra profissão
– são mais homogêneos que os juízes. A tendência à uniformidade da produção,
também característica das petições redigidas pelos grandes escritórios de
advocacia, encontra equivalência na evolução em direção à fabricação em massa
de produtos...”.
Não se empolguem aqueles críticos que sempre acham que no
Brasil tudo é pior... A citação anterior é uma preocupação externada por um dos
corifeus da análise econômica do direito (AED), Richard Posner – portanto,
distante das minhas predileções teóricas - em relação à “estagiarização” que
está ocorrendo nos Estados Unidos.
1. Todo o poder aos estagiários.
Os estagiários ainda não assumiram o poder – falo agora de
terrae brasilis - porque não estão (ainda) bem organizados. Deveriam aderir à
CUT. Em alguns anos, chegariam lá. Dia desses veremos os muros pichados com a
frase “TODO O PODER AOS ESTAGIÁRIOS”. Afinal, eles dão sentenças, fazem
acórdãos, pareceres, elaboram contratos de licitação, revisam processos... Vão
ao banco. Sacam dinheiro. Possuem as senhas. Eles assinam eletronicamente
documentos públicos. Eles decidem. Têm poder. Eu os amo e os temo.
Sim, eu respeito profundamente os estagiários. Eles estão
difusos na República. Por vezes, invisíveis. Jamais saberemos quantos são. E
onde estão. Algum deles pode estar com você no elevador neste momento. Ou em uma
audiência (é bem provável até). Ou no Palácio do(s) Governo(s). Federal,
estadual e municipal. Sei de vários que lá estão. E participam de reunião de
gabinetes de Ministérios. Que bom. Com isso vão aprendendo. Afinal, é para isso
que servem os estagiários.
Eles fazem de tudo. Neste momento, um estagiário, ou vários
deles, podem estar controlando o seu voo. A Infraero tem muitos estagiários.
Torço para que eles sejam tão bons quanto os que estagiam no meu gabinete.
Estagiários de todo mundo: uni-vos. Nada tendes a perder senão vossos manuais
recheados de enunciados prêt à porter, prêt à parler, prêt à penser que os
professores vos mandam comprar. Estagiários de toda a nação: indignai-vos face
à exploração a que estão submetidos.
1. A tomada do poder.
Parênteses: como seria uma revolta dos estagiários?
Imaginemos uma aliança tipo “operário-camponesa”, quer dizer, uma aliança entre
estagiários e os bacharéis que não passaram no Exame de Ordem. Cercariam os
Fóruns e Tribunais. Juízes, Promotores, advogados e serventuários da justiça
(sim, estes, dos quais muitos maltratam os pobres estagiários nos balcões de
todo o Brasil) ficariam sitiados durante semanas. O armamento das forças
aliadas (estagiários e bacharéis sem carteira) seria simples, mas letal: enormes
catapultas, com as quais atirariam enormes manuais (aqueles que querem
simplificar o direito e que, por sua causa e baixa densidade científica, os
bacharéis não conseguiram passar no exame de ordem e nem nos concursos)...
Conheço alguns desses compêndios que provocariam enormes estragos nos tetos dos
Tribunais. Penso que nem o teto do STJ resistiria. Que, assim como os demais
fóruns, repartições e tribunais, teriam um problema a mais: não somente o
ataque vindo de fora, das catapultas das forças aliadas, como também de dentro.
Explico: provavelmente o ataque seria lançado durante o expediente. Alguns
representantes do MUNESBASC (Movimento Unido dos Estagiários e Bacharéis sem
Carteira) estão fazendo alianças com os bacharéis – mesmo os com carteira - que
não conseguem decifrar as questões armadilhescas dos concursos públicos (a
sigla do movimento, pelo seu tamanho, é impossível de publicar). Já se fala
abertamente em um putsch.
Eles formam verdadeiramente o Terceiro Estado. Lembrem-se:
antes de 1789, já se ouviam rumores... Diziam coisas, mas ninguém acreditava:
lá vinham eles em direção à Paris...! Hoje, os estagiários são aquele conjunto
de pessoas que formavam o terceiro Estado (camponeses, comerciantes, advogados,
enfim, todos os que não eram nobres ou clérigos...). E as fileiras vão
engrossando.
Portanto, meu pedido inicial: estagiários de todo os fóruns,
repartições, palácios e tribunais em geral: quando chegardes ao poder,
poupai-me! Sou da “base aliada dos estagiários”. A diferença é que não fico exigindo,
como fazem os deputados da base aliada do governo, a liberação de emendas
parlamentares. Eu apoio a futura estagiariocracia sem chantagear! Outro detalhe
que me favorece: eu não peço para a “base aliada” colocar minha mãe no TCU
(lembram-se de um certo governador fazendo campanha para levar mamãe ao
Tribunal de Contas da União? Ele conseguiu!). Quem me contou isso foi um
estagiário que viu tudo...
Eles sabem de tudo. Outra vantagem minha: como sou da base
aliada dos estagiários, não mando a conta da arrumação dos meus dentes para o
Senado (portanto, é a patuléia quem paga), como fez, no ano passado, o agora
presidente da comissão de ética, senador Valadares. E nem uso o que resta das
minhas cotas de passagens aéreas para levar familiares (ou namoradas) para a
Disney ou para Paris. Nem quero o Ministério da Pesca. Eu também não sei
pescar, assim como o ministro Crivella. Só sei escrever. Um pouco.
2. Depois da revolução. Como seria o nouveau régime? O adeus
ao ancièn régime.
Eu apoio a futura estagiariocracia sem exigir cargos ou
favores. Já ofereço, desde já, a minha biblioteca para o nouveau régime. Ela
pode ser expropriada. Vamos melhorar o ensino jurídico brasileiro. Tenho uma
lista enorme de livros a indicar. Bons autores. Nenhum deles trará as lições de
autores como Dworkin, Habermas, Gadamer, Rui Barbosa, Pontes de Miranda, Heleno
Fragoso, Alexy, Kelsen, etc, de “orelha” (aqui, cada leitor pode fazer a sua
lista – não quero polemizar nessas simples referências). Nada de pequenos
resumos. Fora com as vulgatas. Vamos estudar de verdade. No novo regime, o
direito será encarado como um fenômeno complexo. Portanto, não haverá mais
espaço para “literatura piriguete” (quer algo mais fácil que “piriguete”?)
Também na pós-graduação (mestrados e doutorados) não mais serão feitas
dissertações ou teses sobre temas monográficos como “agravo de instrumento”, “o
papel do oficial de justiça”, “reflexões sobre os embargos infringentes”;
“(re)pensando o artigo 25 do Código do Consumidor – uma visão critica”; “um
olhar sistêmico sobre a progressão de regime” ou “execução de
pré-executividade: reflexões à margem”... (permitam-se as licenças poéticas).
Sim, tudo mudará. Os estudantes não mais serão enganados
pelo professor que só sabe dar aula usando Power Point e fica lendo o que está
nesse “pauerpoint” (observação: se o professor insistir, passará a remeter o
material via email para os alunos, que poderão ficar em casa lendo aquilo que,
até então, ele lia para eles no pauerpoint...). PS: antes que alguém se atravesse
(ou se irrite), registro: sim, eu valorizo bastante as novas tecnologias... Só
acho que não podem ser um fim em si mesmo. O instrumento não substitui o saber.
No nouveau régime, será proibido ao professor ficar lendo o
artigo do código para os alunos e, em seguida, “explicar” – fazendo caras e
bocas - o que “dizem as palavras da lei...”. Será proibido invocar coisas
metafísicas como “a vontade da norma” (como sabemos, “norma” só tem vontade se
for uma senhora que convidamos para jantar). Sugeri isso para a pauta da
Estagiariocracia porque essa discussão me é muito cara. De há muito.
Também não haverá mais a invocação do “espírito do
legislador” e não haverá mais perguntas “inteligentes” como “o que o legislador
quis dizer aqui”? (neste caso, sempre haverá um aluno – espião do regime – que
entregará um celular pré-pago ao professor sugerindo-lhe que ele mesmo, o
mestre, ligue para “o legislador” e pergunte...).
Com o tempo, os alunos, a partir desse novo programa
pedagógico, já poderão entender as anedotas e os sarcasmos que eu conto em
minhas palestras... Até as finas ironias (não só as minhas, é claro) serão
compreendidas. Já não agüento mais contar a estória dos rabinos que estudavam o
Talmude, o Livro Sagrado... Mas, é claro, não contarei aqui. Não mais
precisarei explicar que interpretar não depende de placar ou de maioria... E
que quando o Rabino Eliezer disse... Bem, deixemos assim. Na próxima
conferência, que será em Natal (Congresso em Homenagem ao Min. Gilmar Mendes),
prometo que contarei (de novo). Ainda: quando falo do sujeito solipsista, não
será mais preciso estroinar no final, desfazendo o silêncio com brincadeiras do
tipo “o Selbstsüchtiger (sim, é esse o nome do sujeito egoísta da modernidade,
esse do esquema sujeito-objeto) não é o volante do Bayern de Munique... O novo
regime será muito bom. Já estou antevendo isso. Alvíssaras.
Mas, tem mais: no nouveau régime — pelo menos até que ocorra
a restauração (sempre ocorre, pois não) do ancièn régime e nossas cabeças sejam
cortadas — mudaremos os atuais currículos dos cursos jurídicos. E os concursos
públicos não mais perguntarão sobre a vida e obra de gêmeos xifópagos e nem
sobre a transformação de homens em lagartos (nunca vou esquecer isso). As
questões não mais versarão sobre enfiteuse e nem serão armadilhas (pegadinhas
malandras que só divertem o nécio que a elaborou). Não mais será necessário
decorar a Constituição e os Códigos para fazer concurso; as perguntas, no novo
regime, buscarão detectar efetivamente o que os candidatos sabem; também o
Exame de Ordem não trará mais perguntas que somente o argüidor saiba ou
baseadas no único livro que o argüidor leu ou conhece.
Nessa nova era, as provas de concursos não serão mais feitas
para divertir os arguidores. Não. Nunca mais. E haverá fortes punições. Por
exemplo, quem fizer perguntas do estilo “pegadinhas” ou sobre coisas ridículas
(p.e.x., Caio e Tício que embarcam em uma tábua e depois se matam...), terá que
resolver as questões do mesmo concurso feitas pelos seus colegas de banca. E
essa prova será oral... na presença de todos os concurseiros (como na arena
romana). E cabeças rolarão!
No nouveau régime, extinguiremos (me coloco no meio porque
me considero, como já disse, da “base aliada dos estagiários”) os embargos
declaratórios e os juízes não mais farão sentenças obscuras, contraditórias ou
omissas. No novo regime, o art. 93, IX será cumprido na íntegra. E não será
mais necessário fazer agravo do agravo; e nem embargos do agravo e embargos do
agravo do agravo. Na nova ordem que será instaurada, o Supremo Tribunal Federal
declarará a inconstitucionalidade dos embargos declaratórios (ou os declarará
não recepcionados, antes que alguém me corrija e diga que, em sendo o art. 535
do CPC anterior a Constituição, não cabe ADI – embora caiba ADPF, pois não?).
No novo regime, não mais se decidirá conforme o que
cada-um-pensa-sobre-o- mundo-e-o-direito, mas, sim, a partir do que diz a
doutrina e a jurisprudência, com coerência e integridade. O direito terá um
DNA. As denuncias do Ministério Público somente serão deduzidas quando
efetivamente existirem indícios. Não bastará juntar reportagens de revistas,
por exemplo. E serão recebidas de forma amplamente fundamentadas.
Nesse novo tempo, não será mais permitido construir
princípios estapafúrdios. Até que saibamos, de fato, o que é um Princípio, sua
“fabricação” estará suspensa. Proibida! Vamos separar o joio do trigo. Como
Medida Provisória n. 1, já de pronto ficam revogados “princípios” como “da
ausência ocasional do plenário”, “da rotatividade”, “do fato consumado”, “da
confiança no juiz da causa”, “da delação impositiva”, “alteralidade”, da
“benignidade”, “do deduzido e do dedutível”, “da afetividade” e “da felicidade”
(embora todos queiramos ser felizes!).... Estão fora ab ovo. Ficará também vedado
o uso da ponderação de valores, a não ser que haja a comprovação de que o
utente tenha construído a regra adstrita... Portanto, nada de pegar um
princípio em cada mão e recitar o mantra da “ponderação”.
No nouveau régime que se instalará, o sistema acusatório
prevalecerá no processo penal. Inclusive o art. 212 do CPP será cumprido. O STJ
e o STF anularão todos os processos em que não for obedecido o novo modo de
inquirição das testemunhas. O descumprimento do art. 212 não será mais
“nulidade relativa”; será, sim, nulidade absoluta. Finalmente, a nova lei será
cumprida e os advogados e promotores deverão eles mesmos produzir as provas. O
juiz inquisidor terá seus dias contados.
Já no processo civil, não mais se falará em “escopos
processuais”. Finalmente, o instrumentalismo será sepultado. As cinzas de Oskar
von Büllow serão jogadas na costa brasileira e sua alma, juntamente com as de
Liebmann (e outros...), descansarão em paz. Tudo graças ao nouveau regime.
Também o direito administrativo será levado a sério. Será
vedada a sua “descomplicação” (é um sarcasmo!). Você não será mais multado por
qualquer guarda de trânsito sem a possibilidade de defesa. Não mais bastará a
palavra dele. Ele não terá mais “fé pública”. A Constituição triunfará. Todos
dirão: viva, o direito administrativo não é mais só para fazer grandes
congressos... Ou para fazer dissertações de mestrado. Agora vai valer mesmo.
Inclusive os recursos que o advogado interpuser contra as multas serão lidos na
íntegra pelas juntas. As juntas, quando negarem os recursos, fundamentarão as
decisões. E já não se falará de outra coisa...
No direito penal, os tipos penais de perigo abstrato
sofrerão uma forte censura (filtragem) hermenêutico-constitucional. Cada caso
concreto será examinado à luz da presunção da inocência e, se necessário, será
aplicada a técnica da Teilnichtigerklärung ohne Normtextreduzierung. É verdade.
Finalmente, implementaremos o controle difuso para valer e este não mais
servirá apenas para ornamentar dissertações e teses.
Nos crimes de furto, o sistema fará uma escolha: ou aplicará
o critério da insignificância dos crimes de descaminho também para o furto ou
os crimes de contrabando ou descaminho também serão avaliados de acordo com as
balizadoras do furto. A isonomia será para valer. Inclusive na comparação entre
a devolução do valor furtado com o pagamento dos tributos nos casos de
sonegação. Fairness (equaninimidade), essa será a palavra mais usada. Isonomia.
Igualdade. Estes serão os critérios norteadores dos tribunais.
Também o art. 557 do CPC será usado com mais parcimônia
pelos tribunais. O nouveau régime dará cursos para evitar tantas decisões
monocráticas... O CNJ baixará recomendação para que sejam revitalizados os
juízos colegiados. Também os advogados, ao fazerem sustentações orais, serão
ouvidos. Ninguém ficará mexendo nos computadores enquanto o causídico se
esfalfela na Tribuna. Todos prestarão atenção.
No nouveau régime, uma portaria não valerá mais do que a
Constituição. Nunca mais. O Ministro da Fazenda não legislará mais por
resoluções. Nwem o da Previdência. A Comissão de Constituição e Justiça do
Congresso examinará os projetos previamente. As ONG’s serão fiscalizadas.
Muitos dos atuais dirigentes terão que trabalhar de verdade. Os atores da Globo
não mais usarão os benefícios da Lei Rouanet. Oas Estádios da Copa não serão
superfaturados. A fiscalização será implacável. E o crime de Fraude à Licitação
não será mais punido com “cesta básica”.
No nouveau régime os advogados não mais serão maltratados
e/ou humilhados. Eles não precisão mais implorar para serem recebidos pelos
juízes. E receberão cafezinho na antessala do magistrado. Aliás, isso estará no
novo Estatuto que o nouveau régime implantará. E, o que é melhor, o Estatuto
dos Advogados será cumprido. Ah, no novo regime...!
Pronto. Eis as bases do putsch. Mas não quero ser o
Robespierre desse regime. Pela simples razão de que este perdeu a cabeça.
Falando mais sério ainda: um pouco de utopia vai bem. Nestes tempos de atopia e
acronia, mirar um lugar inalcançável pode fazer bem ao nosso espírito. Um pouco
de desconstrução do sistema pode levar a boas reconstruções. Como diz meu poeta
favorito, Manoel de Barros, sempre compreendo o que faço depois que já fiz! Só
esta frase já daria para fazer uma tese. Pura fenomenologia. Mas, o que quer
dizer isto? No nouveau régime saberemos. Aliás, no novo regime os estudantes
lerão Manoel de Barros. E tantos outros bons livros. E o Google não mais
mentirá, porque será alimentado por jovens que refletem e não por aqueles que
apenas se informam!
Numa palavra final. Estamos no mundo pela metáfora. E
estamos nele porque simbolizamos. O texto acima também se pretende “metáfora”.
Mas não pode ser somente uma metáfora. Como disse Wittgenstein — e cito-o, de
cabeça, pela boca de Ruben Alves —, andaimes cercam a casa, mas não são a
própria casa; uma vez construída a casa, desmontam-se os andaimes. Pois é. As
metáforas talvez sejam isso. Nietschze talvez me ajude: tudo aquilo para que temos
palavras é porque já fomos além. E, assim, fica mais fácil entender a frase
acima de Manoel de Barros... Sim, sempre compreendo o que faço depois que já
fiz!
(*)Lenio Luiz Streck
é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito.
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