Após 54 dias de investigações, a
Polícia Civil de Santa Maria vai entregar na tarde desta sexta-feira (22) à
Justiça o inquérito sobre o incêndio na boate Kiss. O ato é cercado de
expectativa: o documento vai apresentar o resultado das investigações e apontar
os possíveis responsáveis pela morte de 241 pessoas e de mais de uma centena de
feridos – dos quais nove permanecem internados. Uma entrevista coletiva será
realizada a partir das 14h30, com transmissão ao vivo do G1.
A entrega está marcada para as
14h, na 1ª Vara Criminal de Santa Maria. Classificado pelo chefe da Polícia
Civil gaúcha, delegado Ranolfo Vieira Júnior, como o “maior inquérito da
história” do estado, o documento ultrapassou a marca de 10 mil páginas. São 25
volumes na parte principal, que contém o depoimento de mais de 800 pessoas, e
24 volumes de anexos, com o resultado de perícias, fotos, vídeos e outras
provas colhidas.
Toda a papelada será resumida no
relatório final, elaborado e revisado no decorrer da semana pelos cinco
delegados responsáveis pelo caso. As cerca de 150 laudas desse documento devem
responder a algumas das perguntas que familiares das vítimas, imprensa e
sociedade em geral fazem desde o dia da tragédia, em 27 de janeiro: que fatores
ou circunstâncias contribuíram para o incêndio e quem são os principais
responsáveis?
Para tentar responder a essa e
outras questões, a polícia convocou uma entrevista coletiva para as 14h30, após
a entrega do inquérito. O local escolhido para a divulgação dos resultados das
investigações e do nome dos possíveis indiciados foi o auditório do Centro de
Ciências Rurais (CCR) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). A escolha
não foi por acaso. Lá, estudavam 65 alunos que morreram no incêndio.
Na quarta-feira (20), quando
anunciou a data da conclusão do inquérito, o delegado Ranolfo Vieira Júnior
evitou adiantar quantos indiciamentos serão feitos. Mas é praticamente certo
que pelo menos quatro pessoas devem ser denunciadas na esfera criminal: os dois
sócios da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann; e os integrantes da banda
Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos e Luciano Bonilha Leão.
MP terá força-tarefa para
analisar inquérito e oferecer denúncias
Após ser recebido pela Justiça, o
inquérito será encaminhado para vista do Ministério Público (MP). Os promotores
vão analisar o documento e escolher entre três opções possíveis: oferecer as
denúncias (mudando o enquadramento dos crimes, se necessário), solicitar
arquivamento ou pedir novas investigações. A primeira opção é a mais provável e
deve ser encaminhada dentro do prazo de cinco a 10 dias, de acordo com o
promotor criminal de Santa Maria, Joel Dutra.
Uma força-tarefa foi montada no
MP para receber o inquérito. Além de Dutra, trabalharão no caso o promotor de
Justiça Especializada de Santa Maria, Maurício Trevisan, e o coordenador do
Centro de Apoio Operacional Criminal do MP, o promotor David Medina, de Porto
Alegre. Outros dois assistentes foram deslocados para auxiliar nos trabalhos.
“Não é um caso qualquer, é muito complexo, mas queremos dar o máximo de celeridade
possível”, diz Dutra.
O promotor criminal de Santa
Maria acompanhou as investigações sobre o incêndio na Kiss desde os primeiros
passos. Ele diz que, nos últimos dias, não falou com os delegados que conduzem
o inquérito e que ainda não sabe quem serão todos os indiciados. Mas garante
que tanto a polícia quanto o MP colheram provas suficientes para denunciar os
quatro envolvidos presos peventivamente por homicídio doloso qualificado. O que
os levaria a júri popular.
Segundo apontam as investigações,
tanto os sócios-proprietários da Kiss quando os integrantes da banda Gurizada
Fandangueira assumiram o risco de provocar as mortes, mesmo sem intenção, ao
ignorarem normas básicas de segurança ou agirem com indiferença ou negligência.
“Como estamos dizendo desde o início, temos elementos suficientes para oferecer
essa denúncia em relação a esses quatro. Com certeza, isso ocorrerá. Com
relação a outras pessoas, vai depender do inquérito”, diz o promotor.
Em caso de condenação, a pena
prevista para homicídio é de seis a 20 anos de reclusão em regime fechado. Com
o agravante de pelo menos 234 das 241 vítimas do incêndio terem morrido por
asfixia (meio cruel), como atestam os exames de necropsia, essa pena subiria
para 12 a 30 anos. Os réus, no entanto, recebem apenas uma sentença, aumentada
em um sexto ou até a metade da pena, pela conduta que resultou em vários
crimes.
Familiares esperam
responsabilização também do poder público
Mobilizados desde os primeiros
dias da tragédia, os familiares das vítimas aguardam com expectativa o desfecho
das investigações. O presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e
Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), Adherbal Alves Ferreira, diz
que acompanhou o trabalho da polícia e confia em punição para os responsáveis.
“A expectativa é grande. Hoje (quinta-feira)
eu passei o dia inteiro nervoso. Tenho certeza que outros pais que perderam
filhos também. Confiamos muito no trabalho da polícia. Acompanhamos todo o
longo trabalho de investigação e, até agora, estamos satisfeitos. Não queremos
vingança, mas sim justiça”, diz Adherbal, que perdeu a filha Jennefer, de 22
anos, no incêndio na Kiss.
Segundo o presidente da associação
fundada oficialmente no dia 23 de fevereiro, os familiares têm esperança de que
o poder público também seja responsabilizado pela tragédia e não apenas os
quatro indivíduos que já estão presos. Eles questionam o fato da casa noturna
ter conseguido abrir mesmo com tantas irregularidades, como apontaram as
investigações policiais.
“Acreditamos que, com certeza,
haverá indiciamentos de pessoas ligadas à prefeitura, fiscais e bombeiros. Os
órgãos públicos é que permitiram a abertura da Kiss, que jamais poderia estar
funcionando naquelas condições. Eles contribuíram para essa tragédia e não
podem ficar impunes”, afirma Adherbal.
Questões sobre alvará e
fiscalização da boate permanecem obscuras
De fato, a possível parcela de
culpa do poder público sobre a tragédia é a grande questão a ser respondida
nesta sexta-feira (22). Conforme a polícia informou durante as investigações,
já se sabe que uma série de erros, omissões ou negligências somaram-se para que
o número de mortes no incêndio tenha sido tão elevado. Até o momento, no
entanto, nenhum servidor ou órgão público foi claramente apontado como
responsável.
Nos primeiros dias de
investigações, ficou comprovado que a Kiss funcionava com o alvará fornecido
pelo Corpo de Bombeiros vencido desde 10 de agosto de 2012. Tanto a corporação
quanto a prefeitura municipal alegaram, nos dias seguintes ao incêndio, que o
processo de renovação estava em andamento e que, por isso, a situação da casa
noturna não era ilegal.
Em pelo menos outras três
ocasiões, no entanto, a boate ficou à margem da lei. Há indícios de que a Kiss
recebeu o alvará dos bombeiros sem ter um Plano de Prevenção e Proteção contra
Incêndio (PPCI), documento obrigatório conforme prevê a legislação. O PPCI
apresentado pelos proprietários para obter o primeiro alvará seria um documento
genérico, feito por um software de computador, sem assinatura de um responsável
técnico.
Em depoimento à polícia, um major
do Corpo de Bombeiros (hoje tenente-coronel da reserva) que assinou o alvará da
Kiss em 2009, permitindo que a boate abrisse em julho do mesmo ano, disse que
todo o procedimento foi feito dentro da legalidade. A polícia e o Conselho
Regional de Engenharia e Agronomia (Crea-RS), no entanto, não encontraram o
responsável técnico pelo PPCI.
No final de fevereiro, uma
engenheira foi convocada a depor e admitiu ter elaborado o primeiro PPCI da
Kiss com base em uma planta da boate. Ela teria recomendado a adoção de várias
medidas de segurança, como a instalação de mais de uma porta de saída. Mas disse
que não acompanhou a execução das obras. Só após o incêndio, segundo o
depoimento, ela teria constatado que a planta da boate era diferente da que
havia analisado antes.
Desde a abertura até os oito
primeiros meses de funcionamento, a Kiss não tinha alvará de localização
fornecido pela prefeitura. Em vez de interditar o estabelecimento até que a
situação fosse regularizada, como manda a lei, os fiscais aplicaram quatro
multas. De agosto de 2010 a agosto de 2011, a boate também ficou aberta sem o
alvará dos bombeiros.
Mais ou menos no mesmo período, a
Kiss também não possuía licença ambiental. Esse fato teria sido levado ao
conhecimento do MP durante a tramitação de um expediente que resultou na
assinatura de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC). O compromisso foi
firmado para a realização de obras que visavam resolver problemas de poluição
sonora, motivo de queixa dos vizinhos da boate desde a abertura.
É possível que o inquérito
entregue nesta sexta aponte as pessoas que, direta ou indiretamente, contribuíram
para a falta de segurança na boate. Fiscais da prefeitura, ex-secretários,
bombeiros e até mesmo o prefeito Cezar Schirmer podem ser citados. Não
significa, contudo, que eles serão denunciados. Ao menos nesse primeiro
momento.
Isso porque polícia não decarta
abrir novos inquéritos para investigar mais a fundo a participação de
servidores municipais, profissionais técnicos que legalizaram a casa noturna e
bombeiros. Além da questão da emissão dos alvarás, a atuação dos militares no
socorro às vítimas está sendo questionada por, supostamente, terem colocado a
vida de civis em risco ao permitirem que participassem do resgate.
Perícias confirmaram problemas de
segurança, mortes por asfixia e superlotação
Se por um lado alguns pontos
ainda não estão totalmente esclarecidos, a polícia já chegou a várias
conclusões sobre as circustâncias do incêndio e causa das mortes. Com base em
depoimentos e provas periciais, ficou comprovado que o fogo começou no palco
principal da boate, durante um show pirotécnico. O vocalista da banda Gurizada
Fandangueira usou um artefato proibido para ambientes fechados, cujas faíscas
atingiram o teto.
Testemunhas relataram que, no
primeiro combate às chamas, um extintor de incêndio não funcionou. Os técnicos
do Instituto-Geral de Perícias (IGP) examinaram os equipamentos disponíveis na
boate e constataram que esse extintor falhou quando acionado porque não tinha
carga e pressão suficientes. Outro de um total de cinco extintores também
estava com a data de validade vencida.
A espuma de isolamento acústico
que revestia o teto e algumas paredes da Kiss foi apontada pela polícia, desde
os primeiros dias, como uma das protagonistas na tragédia. O material, feito de
poliuretano, liberou gases tóxicos durante a queima, como cianeto e monóxido de
carbono, comprovou a perícia. Esses elementos químicos foram os causadores da
morte por asfixia de pelo menos 234 das 241 vítimas, conforme os laudos da
necropsia.
Os sistemas de ar condicionado e
de exaustão também contribuíram para o grande número de mortes, ao propagarem
rapidamente a fumaça tóxica em vez de dissipá-la. De acordo com a perícia, os
dutos de ar da casa noturna operavam de forma ineficiente e ainda estavam
parcialmente obstruídos por janelas basculantes, impedindo que parte da fumaça
saísse para o ambiente externo do prédio.
A ausência de uma segunda porta
de emergência, como determinam as normas técnicas e leis anti-incêndio, e os
guarda-corpos posicionados próximos à saída para organizar a fila de pagamentos
das comandas também foram grandes vilões na tragédia. Os obstáculos impediram a
saída rápida das vítimas, enquanto que a porta, de largura menor do que a
recomendada, atrasou ainda mais a evacuação.
A perícia de engenharia do local
também constatou que faltavam itens de segurança como chuveiros automáticos
para o caso de incêndio (já que a boate não tinha janelas), e mais luzes de emergência
indicativas do local de saída. Sem enxergar em função da fumaça, o público
acabou se dirigindo para os banheiros, onde a maioria das vítimas foi
encontrada.
Outra conclusão da perícia
confirmou o que a polícia já suspeitava: a boate estava superlotada. A
capacidade do estabelecimento, segundo os laudos, era de, no máximo, cerca de
750 pessoas. Com base em depoimentos, provas e número de vítimas e feridos, os
delegados estimam que mais de mil pessoas estavam no interior da Kiss naquela
fatídica madrugada de domingo.
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