Circula pelo facebook um artigo da jornalista, escritora e
documentarista, autora de vários livros, e articulista da revista Época, Eliane Brum, tratando sobre a violência
juvenil, redução da da maioridade penal e temas circundantes. O artigo está
disponível no link http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2013/04/pela-ampliacao-da-maioridade-moral.html?fb_action_ids=184794981670306&fb_action_types=og.likes&fb_source=other_multiline&action_object_map=%7B%22184794981670306%22%3A601370956541731%7D&action_type_map=%7B%22184794981670306%22%3A%22og.likes%22%7D&action_ref_map=%5B%5D,
em acervo digital da revista Época.
Leio o texto da jornalista Eliane Brum um dia depois de
debater com alunos o tema, que é recorrente, como se sabe, e no mesmo dia em
que li o artigo da escritora Lya Luft, publicado na revista Veja dessa semana.
Dizia aos alunos que o ‘retorno’ do tema diminuição da
maioridade penal, provocado pelas manifestações do governador do Estado de São Paulo
Geraldo Alckmin depois que um jovem, às vésperas de completar dezoito anos, matou
a tiros um outro jovem, de 19 anos, em São Paulo, serve, sim, para desviar o
foco do problema da (in)segurança pública, num tempo em que se reconhecem os
maiores índices de violência no Estado de São Paulo. E isso, às vésperas de eleição, não é nada
interessante.
Além do mais, é atitude simplista alterar a lei, para encarcerar
e punir por mais tempo, jogar os jovens ‘aos leões do sistema carcerário
brasileiro’, numa prova de que nossa legislação menorista, que tantos direitos
e garantias assegura, fracassa em relação a conquista de muitos desses
direitos, e desampara adolescentes e
crianças brasileiros, desatendidos que são em seus direitos mais básicos, e que se ressentem pela falta de educação, traduzida não só pelas faltas de vagas em escolas
da rede municipal e estadual, mas também
por sonegações de toda espécie, inclusive de integrar um núcleo familiar digno.
Ao mesmo tempo em que me regozijei com a jornalista Eliane, senti-me
desagradada com a escritora Lya Luft, logo ela, que sempre me pareceu tão
sensível para com a educação e o desenvolvimento sadio das crianças escrevendo,
inclusive, para estas.
Lamentável o texto da Lya Luft, mas um bálsamo o artigo da
jornalista Eliane, que abaixo transcrevo na íntegra, informando a respectiva
fonte:
E pelo aumento do nosso rigor ao exigir o cumprimento da lei de
governantes que querem aumentar o rigor da lei (e também dos que não querem)
Eu acredito na indignação. É dela e do espanto que vêm a
vontade de construir um mundo que faça mais sentido, um em que se possa viver
sem matar ou morrer. Por isso, diante de um assassinato consumado em São Paulo
por um adolescente a três dias de completar 18 anos, minha proposta é de nos
indignarmos bastante.
Não para aumentar o rigor da lei para adolescentes, mas para
aumentar nosso rigor ao exigir que a lei seja cumprida pelos governantes que
querem aumentar o rigor da lei. Se eu acreditasse por um segundo que aumentar
os anos de internação ou reduzir a maioridade penal diminuiria a violência,
estaria fazendo campanha neste momento.
Mas a realidade mostra que a violência alcança essa
proporção porque o Estado falha – e a sociedade se indigna pouco. Ou só se
indigna aos espasmos, quando um crime acontece. Se vivemos com essa violência é
porque convivemos com pouco espanto e ainda menos indignação com a violência
sistemática e cotidiana cometida contra crianças e adolescentes, no
descumprimento da Constituição em seus princípios mais básicos. Se tivessem
voz, os adolescentes que queremos encarcerar com ainda mais rigor e por mais
tempo exigiriam – de nós, como sociedade, e daqueles que nos governam pelo voto
– maioridade moral.
Se é de crime que se trata, vamos falar de crime. E para
isso vale a pena citar um documento da Fundação Abrinq bastante completo, que
reúne os estudos mais recentes sobre o tema.
Mais de 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no
Brasil em 2010, segundo o Mapa da Violência. Vou repetir: mais de 8.600. Esse
número coloca o Brasil na quarta posição entre os 99 países com as maiores
taxas de homicídio de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos. Em 2012, mais de
120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus tratos e agressões
segundo o relatório dos atendimentos no Disque 100.
Deste total de casos,
68% sofreram negligência, 49,20% violência psicológica, 46,70% violência
física, 29,20% violência sexual e 8,60% exploração do trabalho infantil. Menos
de 3% dos suspeitos de terem cometido violência contra crianças e adolescentes
tinham entre 12 e 18 anos incompletos, conforme levantamento feito entre
janeiro e agosto de 2011. Quem comete violência contra crianças e adolescentes
são os adultos.
Será que o assassinato de mais de 8.600 crianças e
adolescentes e os maus tratos de mais de 120 mil não valem a nossa indignação?
Diante desse massacre persistente e cotidiano, talvez se
pudesse esperar um alto índice de violência por parte de crianças e
adolescentes. E a sensação da maioria da população, talvez os mesmos que clamam
por redução da maioridade penal, é que há muitos adolescentes assassinos entre
nós. É como se aquele que matou Victor Hugo Deppman na noite de 9 de abril
fosse legião. Não é. Do total de adolescentes em conflito com a lei em 2011 no
Brasil, 8,4% cometeram homicídios. A maioria dos delitos é roubo, seguido por
tráfico. Quase metade do total de adolescentes infratores realizaram o primeiro
ato infracional entre os 15 e os 17 anos, conforme uma pesquisa do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ). E, adivinhe: a maioria abandonou a escola (ou foi
abandonado por ela) aos 14 anos, entre a quinta e a sexta séries. E quase 90%
não completou o ensino fundamental.
Será que não há algo para pensar aí, uma relação explícita?
Não são a escola – como lugar concreto e simbólico – e a educação – como
garantia de acesso ao conhecimento, a um desejo que vá além do consumo e também
a formas não violentas de se relacionar com o outro – os principais espaços de
dignidade, desenvolvimento e inclusão na infância e na adolescência?
É demagogia fazer relação entre educação e violência, como
querem alguns? Mas será que é aí que está a demagogia? É sério mesmo que a
maioria da população de São Paulo acredita que tenha mais efeito reduzir a
maioridade penal em vez de pressionar o Estado – em todos os níveis – a cumprir
com sua obrigação constitucional de garantir educação de qualidade?
Não encontro argumentos que me convençam de que a redução da
maioridade penal vá reduzir a violência. E encontro muitos argumentos que me
convencem de que a violência está relacionada ao que acontece com a escola no
Brasil. A começar pelo recado que se dá a crianças e adolescentes quando os
professores são pagos com um salário indigno.
Aqueles que escolhem (e eles são cada vez menos) uma das profissões mais
importantes e estratégicas para o país se tornam, de imediato, desvalorizados
ensinando (ou não ensinando) outros desvalorizados. Será que essa violência –
brutal de várias maneiras – não tem nenhuma relação com a outra que tanto nos
indigna?
Teríamos mais esperança de mudança real se, diante de um
crime bárbaro, praticado por um adolescente a três dias de completar 18 anos, o
povo fosse às ruas exigir que crianças e jovens sejam educados – em vez de
bradar que sejam enjaulados mais cedo ou com mais rigor nas prisões que tão bem
conhecemos. Vale a pena pensar, e com bastante atenção: a quem isso serve?
É uma mentira dizer que os adolescentes não são
responsabilizados pelos atos que cometem. O tão atacado Estatuto da Criança e
do Adolescente (ECA) prevê a responsabilização, sim. Inclusive com privação de
liberdade, algo tremendo nessa faixa etária. Mas, de novo, o Estado não cumpre
a lei. Numa pesquisa realizada pelo CNJ, apenas em 5% de quase 15 mil processos
de adolescentes infratores havia informações sobre o Plano Individual de
Atendimento (PIA), que permitiria que a medida socioeducativa funcionasse como
possibilidade de mudança e desenvolvimento.
Alguém pensa em se indignar contra isso?
Se você se alinha àqueles que querem que os adolescentes
sejam encarcerados, torturados e sexualmente violados para pagar pelos seus
crimes, pode se alegrar. É o que acontece na prática numa parcela significativa
das instituições que deveriam dar exemplo de cumprimento da lei e oferecer as
condições para que esses adolescentes mudassem o curso da sua história, como
mostrou uma reportagem do Fantástico feita por Marcelo Canellas, Wálter Nunes e
Luiz Quilião. Segundo a pesquisa do CNJ já citada, em 34 instituições
brasileiras, pelo menos um adolescente foi abusado sexualmente nos últimos 12
meses, em 19 há registros de mortes de jovens sob a tutela do Estado, e 28% dos
entrevistados disseram ter sofrido agressões físicas dos funcionários. Sem
contar que, em 11 estados, as instituições operam acima da sua capacidade.
Será que a perpetuação da violência juvenil decorre da falta
de rigor da lei ou do fato de que parte das instituições de adolescentes
funciona na prática como um campo de concentração? Antes de tentar mudar a lei,
não seria mais racional cumpri-la?
É o que o bom senso parece apontar. Mas é previsível que,
num ano pré-eleitoral e com 93% dos paulistanos a favor da redução da
maioridade penal, segundo pesquisa do Datafolha, o governador Geraldo Alckmin
(PSDB) prefira enviar ao Congresso um projeto para alterar o ECA, passando o
período máximo de internação dos atuais 3 anos para 8 anos em casos de crimes
hediondos. Uma medida tida como enérgica e rápida, num momento em que o Estado
de São Paulo sofre com o que o próprio vice-governador, Afif Domingos (PSD),
definiu como “epidemia de insegurança” – situação que não tem colaborado para
aumentar a popularidade do atual governo.
Vale a pena registrar ainda que o número de crimes contra a
pessoa cometidos por adolescentes diminuiu – e não aumentou, como alguns querem
fazer parecer. Segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, entre
2002 e 2011 os casos de homicídio apresentaram uma redução de 14,9% para 8,4%;
os de latrocínio (roubo seguido de morte), de 5,5% para 1,9%; e os de estupro,
de 3,3% para 1%. Vale a pena também dar a dimensão real do problema: da
população total dos adolescentes brasileiros, apenas 0,09% cumprem medidas
socioeducativas como infratores. Vou repetir: 0,09%. E a maioria deles
cometeram crimes contra o patrimônio.
É claro que, se alguém acredita que os crimes cometidos
pelos adolescentes não têm nenhuma relação com as condições concretas em que
vivem esses adolescentes, assim como nenhuma relação com as condições concretas
em que cumprem as medidas socioeducativas, faz sentido acreditar que se trata
apenas de “vocação para o mal”. Entre os muitos problemas desse raciocínio que
parece afetar o senso comum está o fato de que a maioria dos adolescentes
infratores é formada por pretos, pardos e pobres. (São também os que mais
morrem e sofrem todo o tipo de violência no Brasil.)
Essa espécie de “marca da maldade” teria então cor e estrato
social? Nesse caso, em vez de melhorar a educação e as condições concretas de
vida, a única medida preventiva possível para quem defende tal crença seria
enjaular ao nascer – ou nem deixar nascer. Alguém se lembra de ter visto esse
tipo de tese em algum momento histórico? Percebe para onde isso leva?
Há que ter muito cuidado com o que se deseja – e com o que
se defende. Assim como muito cuidado em não permitir que manipulem nossa
indignação e nossa aspiração por um mundo em que se possa viver sem matar ou
morrer.
Se eu estivesse no lugar dos pais de Victor Hugo Deppman,
talvez, neste momento de dor impossível, eu defendesse o aumento do número de
anos de internação, assim como a redução da maioridade penal. Não há como
alcançar a dor de perder um filho – e de perdê-lo com tal brutalidade. Diante
de um crime bárbaro, qualquer crime bárbaro e não apenas o que motivou o atual
debate, os parentes da vítima podem até desejar vingança. É uma prerrogativa do
indivíduo, daqueles que sofrem o martírio e estão sob impacto dele. Mas o
Estado não tem essa prerrogativa.
O indivíduo pode desejar vingança em seu íntimo, o Estado
não pode ser vingativo em seus atos. Do Estado se espera que leve adiante o
processo civilizatório, as conquistas de direitos humanos tão duramente
conquistadas. E, como sociedade, nossa maturidade se mostra pelo conteúdo que
damos à nossa indignação. É nas horas críticas que mostramos se estamos ou não
à altura da nossa época – e de nossas melhores aspirações.
De minha parte, sempre me surpreendi não com a violência
cometida por adolescentes – mas que não seja maior do que é, dado o nível de
violência em que vive uma parcela da juventude brasileira, a parcela que morre
bem mais do que mata. E só testemunhei a sociedade brasileira olhar de verdade
– olhar para ver essa realidade – uma única vez: quando o Brasil assistiu, em
horário nobre do domingo, ao documentário Falcão - Meninos do tráfico. É um bom
momento para revê-lo.
Sabe por que a violência praticada por adolescentes não é
maior do que é? Por causa de seus pais – e especialmente de suas mães. A
maioria delas trabalha dura e honestamente, muitas como empregadas domésticas,
cuidando da casa e dos filhos das outras. Contra tudo e contra todos, numa luta
solitária e sem apoio, elas se viram do avesso para garantir um futuro para
seus filhos. O extraordinário é que, apesar de sua enorme solidão, sem amparo e
com falta de tudo, a maioria consegue. Àquelas que fracassam cabe a dor que não
tem nome, a mesma dor impossível que vive a mãe de Victor Hugo Deppman:
enterrar um filho.
Em 2006, espantada com uma geração de brasileiros, a maioria
negros e pobres, cuja expectativa de vida era 20 anos, andei pelo país atrás
dessas mulheres. Elas respiravam, mas não sei se estavam vivas. Lembro
especialmente uma, a lavadeira Enilda, de Fortaleza. Quando o primeiro filho
foi assassinado pela polícia, ela estava com as prestações do caixão atrasada.
O pai do menino tinha ganhado um dinheiro fazendo pão e, em meio à enormidade
da sua dor, eles correram para regularizar o pagamento. Quando conversei com
ela, Enilda pagava as prestações do caixão do segundo filho. O garoto ainda
estava vivo, mas em absoluta impotência, essa mãe tinha certeza de que o filho
morreria em breve. Diante da minha perplexidade, Enilda me explicou que se
precavia porque testemunhava muitas mães nas redondezas pedindo esmola para
enterrar os filhos – e ela não queria essa humilhação. Enilda dizia: “Meu filho
vai morrer honestamente”.
Nunca alcancei essa dor, que era não apenas de enterrar um
filho, mas também de comprar caixão para filho vivo, o único ato de potência de
uma mulher que perdera tudo. Enilda vivia numa situação de precariedade quase
absoluta, tentando trancar nas peças apertadas da casa os filhos que restavam,
num calor infernal, para que não fossem às ruas e se viciassem em crack. É
claro que perdia todas as suas batalhas. A certeza de ser honesta era, para
ela, toda a sanidade possível. (leia aqui).
O que podemos dizer a mulheres como Enilda? Que agora podem
ficar tranquilas porque o país voltou a discutir a redução da maioridade penal
e o aumento do período de internação? Que é por falta de cadeia logo cedo que
seus filhos vendiam e consumiam drogas, roubavam e foram assassinados? Que, ao
saber que podem ir presos aos 16 em vez dos 18 anos, seus filhos ainda vivos
aceitarão as péssimas condições de vida e levarão uma existência em que não
trafiquem, roubem nem sejam mortos? Que é disso que se trata? Quando o primeiro
filho de Enilda foi executado, ele tinha 20 anos – e já tinha passado por
instituições para adolescentes e pela prisão.
Antes de tornar-se algoz, a maioria das crianças e
adolescentes que infringiram a lei foi vítima. E ninguém responde por isso.
Não há educação sem responsabilização. É por compreender
isso que o ECA prevê medidas socioeducativas. Mas, quando a solução apresentada
é aumentar o rigor da lei – e/ou reduzir a maioridade penal –, pretende-se dar
a impressão à sociedade que os adolescentes não são responsabilizados ao
cometer um crime. Essa, me parece, é a falsa questão, que só empurra o problema
para a frente. A questão, de fato, é que nem o Estado, nem a sociedade, se
responsabilizam o suficiente pela nova geração de brasileiros.
Educa-se também pelo exemplo. Neste caso, governantes e
parlamentares poderiam demonstrar que têm maioridade moral cumprindo e fazendo
cumprir a lei cujo rigor (alguns) querem aumentar.
(*)Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda(Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).elianebrum@uol.com.br
Twitter: @brumelianebrum
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