Por Lênio Streck(*)
Há muito tenho insistido na tese de que uma lei votada pelo
Parlamento só pode deixar de ser aplicada em seis hipóteses: a) se for
inconstitucional, b) se for possível uma interpretação conforme a Constituição,
c) se for o caso de nulidade parcial sem redução de texto, d) no caso de uma
inconstitucionalidade parcial com redução de texto, e) se se estiver em face de
resolução de antinomias e f) no caso do confronto entre regra e princípio (com as
ressalvas hermenêuticas no que tange ao pamprincipiologismo). Fora disso,
estar-se-á em face de ativismos, decisionismos ou coisa do gênero. Portanto, o
judiciário possui amplo espaço. Nada mais, nada menos do que seis maneiras. Mas
parece que, na cotidianidade, o judiciário prefere um atalho. Sim, um atalho
silipsístico.
Um dos dispositivos que simboliza isso é o artigo 212 do
Código de Processo Penal. Ali claramente está escrito que o juiz só pode fazer
perguntas complementares quando da oitiva das testemunhas. Ali está inscrito o
sistema acusatório. Juiz não faz prova. As partes é que fazem. Não é porque eu
quero que seja assim. Simplesmente “está na lei”. O legislador, ao votar a nova
redação do CPP, disse: não haverá mais inquisitivismo. Simples, pois.
O resultado, entretanto, é que o Judiciário, em sua maior
parte, respaldado por equivocadas leituras do STJ e do próprio STF e por uma
literatura jurídica conservadora e distante da Constituição, rasgou o texto
legal. E onde está escrito “apenas perguntas complementares”, passou-se a ler,
“continuemos a fazer audiências como era antes”. E a lei? Bem, a lei...
Um caso emblemático
Recentemente, o TJ-RS, examinou o seguinte caso: em uma
cidade do interior, o Promotor de Justiça não pôde comparecer à audiência e o
juiz fez toda a prova, inquirindo testemunhas e tudo o mais. E depois, condenou
o réu com base na prova que ele mesmo, juiz, produziu. O advogado fez uma
preliminar alegando nulidade. O juiz rechaçou, do mesmo modo que o TJ fez na
sequencia.
Na apelação, o desembargador relator votou pela nulidade, em
preliminar. Com esse voto, a defesa interpôs embargos infringentes, que foram
improvidos. Decidiu-se, assim, que o fato de o juiz ter de assumir a
exclusividade da inquirição das testemunhas devido à ausência do promotor na
audiência não-anula-o-processo-criminal. Afinal, segundo o Tribunal, os artigos
201 e 203 do CPP obrigam o julgador a ouvir vítimas e testemunhas para formar a
sua convicção. Já de pronto podemos jogar com a hermenêutica: de fato os
artigos 201 e 203 dizem isso... só que, logo depois, explicando como isso se
dará, há um dispositivo, novinho em folha, o 212, que estabelece que o juiz não
poderá inquirir as testemunhas, com exceção de perguntas complementares. Ah:
“complementares”, ao que sei, complementam e, portanto, vem depois de alguma
coisa, correto?
Mas o mais inusitado é que o juiz e o tribunal sustentaram
que “a defesa não apontou o efetivo dano causado pelo fato de o juiz ter
iniciado as perguntas.” Confesso que não entendi. Como assim? O sujeito foi
condenado a sete anos e meio de reclusão, com prova feita exclusivamente pelo
juiz e ainda assim necessita provar que houve prejuízo?
Outro ponto interessante é que a relatora dos embargos, no
grupo, sustentou que a nulidade prevista no artigo 564, inciso III, alínea ‘d’,
do CPP, é relativa e foi considerada sanada. E isto porque a irregularidade
(sic) não foi arguida em tempo oportuno, como prevê o artigo 572 do mesmo
diploma legal. Mas o que diz o artigo 564, III, “d”, do CPP? “A nulidade
ocorrerá nos seguintes casos: III — por falta das fórmulas ou dos termos
seguintes: d) a intervenção do Ministério Público em todos os termos da ação
por ele intentada e nos da intentada pela parte ofendida, quando se tratar de
crime de ação pública.”
Pronto. Isso não quer dizer nada? Se o MP não está na
audiência, não faz a prova, tal circunstância não se enquadra na hipótese desse
dispositivo? Mais: somando a clareza meridiana do artigo 212 com a do artigo
564, III, d, a pergunta é: poderia a audiência ser realizada? E, se sim, como
ultrapassar a nulidade decorrente da prova feita pelo juiz?
Ainda: onde está escrito que essa nulidade é relativa? E
onde está escrito que o advogado deve “protestar” em tempo hábil? Não seriam as
regras que estabelecem o sistema acusatório “regras procedimentais de direitos
fundamentais” e, por isso, a simples violação já não acarretaria nulidade
insanável? Aliás: diz-se, hoje, que todas as nulidades são relativas. Pois é. E
digo eu: se tudo é, nada é. Logo, todas não são relativas. Questão de lógica.
Convenhamos: o juiz fez a prova. Fez as perguntas às
testemunhas. De que modo? Ora, o inquisidor só faz perguntas que venham a
sustentar a decisão que ele já tomou. Esse é o cerne do inquisitivismo. O
resultado já está dado. Busca, então, a argumentação. Por isso, o prejuízo é
evidente. E é por isso que as provas devem ser feitas pela defesa e pelo MP.
Tentarei ser mais claro: o juiz que conduz a produção da
prova, por mais bem intencionado que seja, termina se contaminando pelo objeto
da busca, saindo do seu lugar de isenção. Vincula-se psicologicamente ao que
procura. E como diz o adágio, “quem procura, acha”. E por que procura? Diante
do princípio constitucional da presunção de inocência — que impõe à acusação o ônus
de buscar provas — qual a motivação de um juiz que se substitui ao acusador?
Será que alguém desinteressado, imparcial, procuraria? Indo mais a fundo, o que
motiva alguém que deve estar em um lugar imparcial a produzir provas? Essa
separação de funções no processo, em todos os seus atos e em todas as fases, é
uma garantia não só para o acusado, mas para a sociedade.
A justificativa mais comum para essa anomalia na atuação do
juiz se dá com base no falacioso princípio da “verdade real”. Vai-se no
guarda-roupas do voluntarismo, despe-se da toga e veste a beca da acusação. E
por que a da acusação? Porque o ônus de provar o alegado é do acusador. Ora, se
a função do acusador é comprovar a materialidade a e autoria dos fatos, o
magistrado que também investiga termina por usurpar a prerrogativa do
Ministério Público nesse ônus. Sai do seu lugar de fala imparcial. A cadeira do
juiz fica vazia. Onde isso ocorria? Na inquisição. A missão do juiz em uma
democracia tem que ser maior do que isso. Que deixe as partes atuarem e
cumprirem seus papéis. O trabalho do juiz é o de resgatar a historicidade dos
fatos. Atuar assim é elevar a função de juiz.
O furo é mais embaixo
O caso pode nem ser importante (a não ser, é claro, para o
réu, condenado a 7 anos e meio de reclusão, se me permitem a ironia). O mais
importante é o simbólico. O STJ, o STF e os tribunais em geral insistem em
descumprir a lei (pelo menos em parte considerável do território nacional). O
STF, em vários HCs, decidiu que a nulidade decorrente do descumprimento do
artigo 212 do CPP é relativa. Em um deles, disse que o advogado deveria
“protestar”, sob pena de a nulidade ser convalidada. Impressionante como os
limites semânticos valem tão pouco. E por que isso é assim? Porque continuamos
a desconfiar do Parlamento. Consideramos o Parlamento impuro. Por isso,
apostamos na virtuosidade — que seria sempre decorrente da técnica — do
Judiciário. A técnica seria inerente apenas ao Judiciário. Consequentemente,
como o Parlamento faz política, o faz sem técnica. Com isso, a política fica
relegada a uma a-tecnicidade. Assim, a técnica corrige a lei, porque é mal
feita, imprecisa, injusta.... E como fazemos isso? Com nossos juízos morais.
Sim, substituímos os juízos que são do legislador pelos nossos. E por que os
nossos seriam melhores do que daqueles que se elegem? Afinal, queremos uma
demo-cracia ou uma juristo-cracia?
Temos que nos livrar do “fantasma de Oskar Bülow”, isto é, a
aposta no protagonismo judicial que atravessou os séculos. É evidente que o
judiciário deve zelar pelo cumprimento da correta aplicação da legislação. Para
tanto, ele dispõe do controle de constitucionalidade difuso e concentrado, além
das técnicas de interpretação conforme, etc.. O que ele — o Judiciário — não
pode fazer é se substituir ao legislador. Se o legislador é ruim para mim, o é
também para todos. E se ele for bom, o é para todos. Esse é o mínimo de
previsibilidade que eu exijo, como cidadão.
Minha leitura lenta, lentíssima, do artigo 212 do CPP
Vejamos como se formou esse ovo da serpente. Guilherme
Nucci, logo que saiu a Lei, sustentou aquilo que o Poder Judiciário queria
ouvir (v.g. STJ - HC 121215/DF DJ 22/02/2010), isto é, que a “inovação [do
artigo 212 do CPP], não altera o sistema inicial de inquirição, vale dizer,
quem começa a ouvir a testemunha é o juiz, como de praxe e agindo como
presidente dos trabalhos e da colheita da prova. Nada se alterou nesse
sentido.”[1] No mesmo acórdão e no mesmo sentido, foi citada doutrina de Luís
Flávio Gomes, Rogério Sanches Cunha e Ronaldo Batista Pinto, que dizem: “A
leitura apressada deste dispositivo legal pode passar a impressão de que as
partes devem, inicialmente, formular as perguntas para que, somente a partir
daí, possa intervir o juiz, a fim de complementar a inquirição. Não parece se
exatamente assim. (...) Melhor que fiquemos com a fórmula tradicional,
arraigada na ‘praxis’ forense (...)”.[2]
Minha pergunta: uma leitura apressada, professor? Então eu
sou muito lento. Na verdade, alguém poderia me chamar de Esse-lentíssimo (se me
entendem a ironia). Vamos ler, juntos, de novo o dispositivo? Assim: “as
perguntas serão formuladas pelas partes, diretamente à testemunha, não
admitindo o juiz aquelas que puderem induzir a resposta, não tiverem relação
com a causa ou importarem na repetição de outra já respondida.” E no parágrafo
único fica claro que “sobre pontos não esclarecidos, é lícito ao magistrado complementar
a inquirição”. Veja-se: sobre pontos não esclarecidos. Somente sobre estes é
que é lícito ao magistrado complementar a inquirição. Bingo.
Consequentemente, parece evidente que, respeitados os
limites semânticos do que quer dizer cada expressão jurídica posta pelo
legislador, houve uma alteração substancial no modo de produção da prova
testemunhal. Repito: isso até nem decorre somente do “texto em si”, mas de toda
a história institucional que o envolve, marcada pela opção do constituinte pelo
modelo acusatório. Por isso, é extremamente preocupante que setores da
comunidade jurídica de terrae brasilis, por vezes tão arraigados aos textos
legais, neste caso específico ignorem até mesmo a semanticidade (ou a sintaxe)
mínima que sustenta a alteração. Daí a minha indagação: em nome de que e com
base em que é possível ignorar ou “passar por cima” de uma inovação legislativa
aprovada democraticamente? É possível fazer isso sem lançar mão da jurisdição
constitucional?
E, permito-me insistir: por vezes, cumprir a “letra da lei”
é um avanço considerável. Lutamos tanto pela democracia e por leis mais
democráticas...! Quando elas são aprovadas, segui-las “à risca” é nosso dever.
Levemos o texto jurídico a sério, pois! Por isso, não é possível concordar com
as considerações de Nucci e Luiz Flávio sobre a “desconsideração” da alteração
introduzida pelo legislador democrático no artigo 212.
E, por favor, que não se venha com a velha história de que
“cumprir a letra ‘fria’ (sic) da lei” é assumir uma postura positivista...!
Aliás, o que seria essa “letra fria da lei”? E qual seria a letra “quente”? Na
verdade, confundem-se conceitos. As diversas formas de positivismo não podem
ser colocadas no mesmo patamar e tampouco podemos confundir uma delas (ou as
duas mais conhecidas) com a sua superação pelo e no interior do paradigma da
linguagem. Tudo isto já deixei explicitado em inúmeros textos. Apenas quero
relembrar que saltamos de um legalismo primitivo, que reduzia o elemento
central do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos
oitocentistas, base para o positivismo primitivo), ora a um conceito
abstrato-universalizante de norma (que se encontra plasmado na ideia de direito
presente no positivismo normativista), para uma concepção da legalidade que só
se constitui sob o manto da constitucionalidade. Afinal — e me recordo aqui de
Elias Dias —, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma
legalidade inconstitucional.
Portanto, não devemos confundir “alhos” com “bugalhos”. Obedecer
“à risca o texto da lei” democraticamente construído (já superada a questão da
distinção entre direito e moral) não tem nada a ver com a “exegese” à moda
antiga.
Portanto, deve haver um cuidado com o manejo da Teoria do
Direito e da hermenêutica jurídica. Olhando para a decisão do TJ-RS e para as
posições doutrinárias citadas, é de se pensar em que momento o direito
legislado deve ser obedecido e quais as razões pelas quais fica tão fácil
afastar até mesmo — quando interessa — a assim denominada “literalidade da
lei”[3].
Indago: juristas críticos (pós-positivistas?) seriam (são?)
aqueles que “buscam valores” que estariam “debaixo” da “letra da lei” (sendo,
assim, pós-exegéticos) ou aqueles que, baseados na Constituição, lançam mão da
“literalidade da lei” para preservar direitos fundamentais?
Numa palavra final: vale a pena insistir? Eis a Montanha do
Purgatório
A questão fulcral, aqui, não é discutir o caso ou os
milhares de casos em que as leis são descumpridas e mutiladas. O ponto do
estofo é saber o que queremos de nossas instituições. Já não estamos cansados
de tanto ativismo?
Qual é o sentido se, em uma democracia, uma vez construída a
legislação, no dia seguinte o judiciário decida simplesmente não cumpri-la. E o
Ministério Público se queda silente... E a OAB se queda silente... O próprio
Parlamento se queda silente...
E isso vai de seca à meca. Um dia é o STF determinando posse
de juiz em TRF em decisão flagrantemente contrária à “letra” da Constituição;
noutro, em nome de argumentos meta-jurídicos, a Suprema Corte cassa mandato
que, dias antes, dissera ser prerrogativa do Parlamento; o próprio STF
descumpre a Lei 9.868, ao emitir liminares e não as levar ao Plenário da Corte,
como por exemplo, a ADI 4.917 (dos Royalties), cuja liminar é de março de 2013,
além de outras sete ações desde 2009[4] que pendem de ir a Plenário; o STJ
emite súmulas contra-legem... Os tribunais descumprem o artigo 212 e o 564 do
CPP. E assim por diante.
E a doutrina? Bem, a doutrina já de há muito se entregou,
assumindo um lugar confortável de reproduzir o que os tribunais dizem. Pior são
os doutrinadores que sustentam que o direito é o que o Judiciário diz que é,
como que a repetir, tardiamente, um bordão do realismo jurídico.
O que levou a tudo isso? A resposta é simples: com esse
ensino jurídico e com a mediocridade que tomou conta do imaginário jurídico,
nada mais pode nos surpreender. Confesso que estou cansando. Com pouca ajuda,
penso em recolher minhas armas epistêmicas. Angariar antipatias cotidianas...
vale a pena?
Enfim... Sinto-me como Ulisses — e a inspiração me veio de
um texto do jornalista Luis Antonio Araujo — que, ao deixar os encantos de
Circe, conduz sua expedição até as Colunas de Hércules (o Estreito de
Gibraltar), onde era o limite do mundo, e exulta os companheiros a transpô-lo
para conhecer o que se encontra mais além (“Feitos não fostes para viver como
animais mas para buscar virtude e conhecimento”). Mas, no meio do oceano, sua
última visão é a da Montanha do Purgatório, que se ergue no poente, mas já um
tufão se levanta e sepulta o navio e seus tripulantes (“Até que o mar sobre nós
se fechou”)!
[1] Cf. Nucci, Guilherme de Souza. Código de Processo Penal
Comentado. 8 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, pp. 479-480. (grifei)
[2] Cf. Gomes, Luís Flávio; Cunha, Rogério Sanches. Pinto,
Ronaldo Batista. Comentários às Reformas do Código de Processo Penal e da Lei
de Trânsito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 302. (grifei)
[3] Sobre “literalidade da lei”, remeto o leitor à
introdução do Verdade e Consenso.
[4] Veja-se nesse sentido, denúncia do ministro Gilmar
Mendes na ADI 4.638.
Fonte: Site Conjur
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