Tomei conhecimento, através do
site SUL21, da notícia de que o Tribunal
de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, na decisão em Apelação Criminal Nº 70080574668, relatada pela Desembargadora Cristina
Pereira Gonzales, absolveu motorista de aplicativo acusado de
estuprar passageira.
Na manchete da notícia que abaixo
vai transcrita na íntegra consta: TJ-RS absolve motorista acusado de estuprarpassageira e culpa jovem por ter consumido álcool.
Nela, descreve-se de maneira
sintética a acusação, a sentença de primeiro grau, as posições dos
desembargadores da 5º Câmara Criminal e do Ministério Público Estadual e,
também, da colega Gabriela Souza, advogada, atuante em causas que envolvem
mulheres (advocacia voltada para mulheres).
'No último dia 17, desembargadores
da 5ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS)
absolveram um motorista de aplicativo que havia sido condenado, em dezembro de
2018, a 10 anos de prisão pelo estupro de uma passageira. Os desembargadores
acolheram com unanimidade as alegações da defesa do homem, que havia recorrido
ao TJ após a condenação em primeira instância.
O caso aconteceu em fevereiro de
2017, quando duas pessoas teriam pedido para a vítima um transporte via
aplicativo no bairro Cidade Baixa, em Porto Alegre. Quando a corrida chegou ao
destino final, que era a casa da vítima, o motorista teria descido do veículo e
levado a jovem até o quarto, onde teria acontecido o estupro. No outro dia, a
passageira acordou com hematomas pelo corpo e sem celular.
Segundo a condenação de 2018, os
laudos da perícia comprovaram que a mulher havia sofrido estupro. Ainda,
segundo o juiz, o motorista teria cobrado R$ 50 para devolver o celular da
vítima, além de pedir que os pais dela não chamassem a polícia porque ele era
casado. Na decisão, o juiz afirmou que era “amplamente comprovado que a vítima
estava com sua capacidade de reação anulada, por embriaguez completa, ao ponto
de ter que ser conduzida por terceiros (segurança do estabelecimento),
necessitar de ajuda dos amigos para desbloquear o celular e chamar um carro, e
de deitar-se no banco traseiro do veículo, não sendo crível, pois, a alegação
da defesa de que, durante o deslocamento do local da festa até sua casa, teria
recobrado a consciência, ao ponto de manter fluente conversação com o acusado
e, assim, teria consentido em manter relações sexuais”.
Já para os magistrados da 5ª
Câmara, havia diversos motivos para que o réu fosse absolvido. Dentre as razões,
os desembargadores afirmam que a vítima “admitiu o consumo de álcool naquele
dia, o que ocorreu por sua livre e espontânea vontade”, que por vezes ela se
“colocava nesse tipo de situação de risco, ou seja, de beber e depois não
lembrar do que aconteceu”. Portanto, para os desembargadores, não havia provas
de que a vítima estivesse embriagada a ponto de perder “a capacidade de
resistência” ao ato sexual. Na sentença, a desembargadora relatora Cristina
Pereira Gonzales afirma que “se a ofendida bebeu por conta própria, dentro de
seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na posição de vítima de abuso
sexual pelo simples fato de ter bebido”.
Entretanto, a posição dos
desembargadores do TJ-RS e da defesa do réu, que afirma que o ato sexual foi
consensual, é contestada pela promotora de Justiça do Ministério Público Tânia
Bittencourt, que afirma que existem testemunhas que comprovam que a vítima
estava “bastante embriagada, ao ponto em que teve que ser auxiliada para chamar
o aplicativo e que chegou a apagar ao ser colocada dentro do carro”. “A
embriaguez dela era de tal forma que ela não tinha nem como oferecer
resistência ou condições de consentir ou não consentir com qualquer tipo de ato
que viesse ser praticado com ela”, disse ao Sul21.
Para a promotora, a decisão do
TJ-RS é algo surpreendente por afirmar que a vítima se embriagou e se colocou
voluntariamente em uma situação de risco, e por dizer que a vítima não estava
tão embriagada para que pudesse consentir ou não consentir. “É surpreendente,
especialmente porque eles afirmam que ela se colocou em uma situação de risco,
que não há prova de uma embriaguez completa, mas existe isso”, afirmou Tânia,
reforçando que a vítima estava “em uma situação de vulnerabilidade”. “E a lei
diz que, quando tem uma pessoa vulnerável, não tem consentir ou não consentir.
Se ela é vulnerável, ela não tem esse discernimento, e a pessoa que praticar
esse abuso contra ela responde pelo abuso”, pontuou.
Na quarta-feira (24), o
Ministério Público Estadual entrou com embargos declaratórios para recorrer da
absolvição do motorista. “A gente quer que a 5ª Câmara analise essas omissões
que a gente verificou e, dependendo do que eles disserem, vai caber um recurso
para o STJ ou para o STF, que é um recurso especial”, explicou a promotora
Tânia.
Para entender o que casos como
esse significam em um contexto maior de culpabilização de vítimas de violência
sexual, o Sul21 procurou a advogada Gabriela Souza, que trabalha com advocacia
voltada para mulheres em diversas necessidades jurídicas. Para a advogada,
decisões como a da 5ª Câmara são lamentáveis em um cenário de busca por avanços
dos direitos voltados para as mulheres. “A gente percebe a necessidade de
continuar lutando, porque algumas pessoas, inclusive pessoas do Judiciário,
ainda resistem em entender os direitos das mulheres e ainda têm encravado na
veia a questão machista milenar de que o corpo das mulheres pertence aos
homens, e que as mulheres devem obedecer tudo aquilo que os homens querem”,
afirmou Gabriela.
A advogada conta que diariamente
atende mulheres que estão sendo culpabilizadas no processo. “Todo dia uma
mulher é louca, é mentirosa, usou uma saia curta, não deixou claro que estava
dizendo não. Por isso elas são criticadas no Judiciário”, explica. Para ela,
esse contexto acontece também nesse caso porque a vítima “é uma mulher que
alegava que bebia, que saia, ou seja, era uma mulher livre, adulta”. “É uma
mulher que pode fazer o que quiser da vida: sair, beber, encher a cara. Mas não
é por isso que ela tem que ser estuprada. É isso que parece que [as pessoas]
não entendem”, disse.
Questionada sobre qual o papel
que casos como esse podem ter na decisão de mulheres em denunciar ou não
situações de assédio ou violência sexual, a advogada afirma que a Justiça passa
a mensagem de que elas não terão seus relatos validados. “O recado que o
Judiciário manda para as mulheres é ‘não vou aceitar o que tu me disser, porque
tu provocastes o que aconteceu contigo’. Diz para que o Judiciário veio, que é
para não nos defender”.
Entretanto, Gabriela ressalta
que, embora essa seja uma decisão terrível, ela mostra que está havendo uma
mudança cultural na sociedade: “Pela primeira vez em séculos, uma decisão
dessas choca a sociedade, porque antes era aceitável, mas já não é mais. Ela
choca porque estamos em um momento de se falar dos direitos das mulheres. Há
alguns anos, isso seria absolutamente normal. Ainda é muito difícil, mas já
temos uma mudança de pensamento, de cultura, e já estamos levando isso para o
Judiciário”. Ela chama atenção também para a necessidade de que as mulheres
prestem queixas e entrem com processos pela defesa de seus direitos. “É a
partir daí que a gente mexe nas estruturas. É mobilizando o Judiciário para que
ele tenha que se manifestar que a gente começa a mudar”, afirma',
Curiosa sobre o conteúdo integral
da decisão dos Desembargadores, consultei o SITE DO TJRS e, então, identifiquei
o Acórdão. A leitura do mesmo indica que a absolvição ocorreu,
fundamentalmente, por insuficiência probatória.
Segundo a EMENTA:
APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL. ESTUPRO DE
VULNERÁVEL. ARTIGO 217-A DO CÓDIGO PENAL. RECURSO DEFENSIVO. INSUFICIÊNCIA
PROBATÓRIA. CONDENAÇÃO REFORMADA. Falecendo aos autos as provas seguras e
suficientes de que a vítima não tenha consentido com a relação sexual ou de que
não tenha podido oferecer resistência, a absolvição é medida que se impõe na
esteira do princípio humanitário do in dubio pro reo e amparo legal no
artigo 386, inciso VII, do CPP. APELO DEFENSIVO PROVIDO PARA ABSOLVER O
ACUSADO.
No Acórdão, a desembargadora
Cristina transcreveu, integralmente, a
sentença de primeiro grau a partir da fundamentação e, após, apontou para o
fato de a prova carreada aos autos não
ser autorizadora da manutenção da condenação do acusado, por haver controvérsia
sobre o consentimento ou não da vítima para o ato, em razão da existência de
discernimento, ou não, para a prática sexual.
E, para apontar que a ausência de
consentimento da vítima, decorrente da
impossibilidade de oferecer resistência
(pela embriaguez) não ficou demonstrada no processo, a magistrada listou 13
aspectos que, abaixo, seguem transcritos.
Primeiro: a ofendida admitiu o consumo de álcool naquele dia, o que
ocorreu por sua livre e espontânea vontade;
Segundo: as testemunhas de acusação que estavam no bar e teriam
acompanhado a vítima até o transporte afirmaram que T. estava alcoolizada, não
estava bem, mas não referiram que o estágio etílico chegava a ponto de perder
os sentidos;
Terceiro : se a ofendida estivesse em um estágio que necessitasse ser
carregada, certamente, um de seus amigos a teria acompanhado até a sua
residência;
Quarto: justamente por ninguém a
ter acompanhado, há sérias dúvidas quanto ao que se passou no carro ou até mesmo
na residência da ofendida, não se podendo descartar que o acusado esteja
dizendo a verdade, até mesmo porque a vítima afirmou não lembrar de nada e não
podendo a condenação se fundar em meras presunções;
Quinto: o Ministério Público não
fez prova do estado de embriaguez da ofendida, que a teria impossibilitado de
oferecer resistência à investida do acusado, já que inexiste, nos autos, exame
toxicológico que atestasse o nível de álcool no sangue da vítima ou o uso de
qualquer outra substância. Sem essa prova, é inviável afirmar que ela perdera a
capacidade de resistência ao suposto ataque sexual, mormente porque a prova
oral não é conclusiva a esse respeito;
Sexto: a vítima voluntariamente ingeriu bebida
alcoólica;
Sétimo: a vítima admitiu que por vezes já se colocava nesse tipo de
situação de risco, ou seja, de beber e depois não lembrar do que aconteceu;
Oitavo: a ofendida, em tese, teria descoberto pelo próprio acusado que
havia mantido relações sexuais com ele, quando falaram por telefone e F. lhe perguntou
se ela tinha alguma doença sexualmente transmissível;
Nono: não se pode descartar a possibilidade de as marcas apresentadas
no pescoço e pernas da vítima decorrerem do próprio ato sexual;
Décimo: a vítima não relatou os fatos, apenas disse que não lembrava de
nada, pois “apagou” e, depois, constatou (supôs) ter sido abusada sexualmente;
Décimo primeiro : a ofendida não tem condições de afirmar que a relação
sexual ocorreu porque perdera os sentidos. Em realidade, isso resulta apenas
uma presunção ou suposição de que tais fatos tenham ocorrido, o que não é
suficiente para a condenação do apelante, até porque a dúvida deve ser sempre
solvida em favor do acusado na esteira do princípio do in dubio pro reo;
Décimo segundo: o acusado não se negou a fornecer material genético
para a realização de exame de DNA, mesmo sabendo que havia ejaculado dentro da
vagina da vítima;
Décimo terceiro: o apelante, após ter sabido que estava sendo acusado
de estupro, procurou a vítima e familiares para tentar esclarecer os fatos.
De anotar-se que a
Desembargadora, ao apontar no item sexto o fato de a vítima ter ingerido,
voluntariamente, bebida alcoólica, traz a lume postura doutrinária e reflexão
interessantes.
Sobre a ingesta voluntária de
bebida alcoólica por parte de autor de comportamento delitivo, transcreve
posição de NUCCI
“Quanto à necessidade de oferecer
resistência, deve-se ponderar, igualmente, o grau de vulnerabilidade: se
relativa ou absoluta. A incapacidade relativa permite a desclassificação da
infração penal para a figura do art. 215. A incapacidade absoluta faz incidir o art.
217-A, §1.º. Nesse campo, costuma-se mencionar como exemplo a pessoa que está
completamente embriagada ou sob efeito de drogas, incapaz, portando, de
oferecer resistência. Algumas observações devem ser sublinhadas: a) em primeiro
lugar, a lei menciona o fato de não poder oferecer resistência (defender-se,
negar-se, opor-se). Pode-se interpretar, então, encontrar-se em estado de
absoluta vulnerabilidade, sem qualquer discernimento em relação ao ato sexual;
b) a incapacidade relativa, como já frisado, pode levar à desclassificação para
o art. 215, ainda assim se houver embriaguez acidental; c) quando determinada pessoa colocar-se, propositadamente, em estado de
embriaguez ou sob efeito de droga análoga, para divertir-se, manter relação
sexual ou participar de qualquer ato sexual grupal, não pode figurar na posição de vítima de estupro. Ninguém se exime da
responsabilidade penal em caso de embriaguez voluntária ou culposa (art. 28,
II, do CP), aplicando-se a teoria da actio libera in causa (...). Ora, se
para cometer o crime pode o agente estar completamente embriagado, para
apresentar-se como vítima de crime sexual, também embriagada, a resposta deve
ser negativa. Em outros termos, ilustrando, o agente, completamente embriagado,
sem discernimento, portanto, ataca uma mulher na via pública, mantendo com ela
conjunção carnal, sob ameaça de faca. Comete estupro (art. 213). Se o agente,
completamente embriagado, sem discernimento, tem conjunção carnal com uma
mulher, igualmente embriagada por completo, sem discernimento, num local de
diversão pública qualquer, inexiste estupro. Desaparece qualquer ranço de
violência, pois não há vulnerável a tutelar. A vítima embriagou-se para
divertir-se; porém, se após a relação sexual caiu em si e não gostou do
resultado, não se pode punir o agente por conta disso. Houve, no mínimo,
consentimento do ofendido durante o ato sexual. Se o direito penal admite a responsabilidade jurídica objetiva,
supondo o consentimento do agressor embriagado para o cometimento da infração
penal, deve, por questão de isonomia, entender também presente o consentimento
para a relação sexual, quando a vítima estiver voluntariamente embriagada em
lugar apto ao contato sexual.”
(O GRIFO É NOSSO)
Daí ter inferido a
desembargadora: [...] “ Ora se a ofendida bebeu
por conta própria, dentro de seu livre arbítrio, não pode ela ser colocada na
posição de vítima de abuso sexual pelo simples fato de ter bebido”.
Por isso, e por outras questões
apontadas– e lançadas na decisão – a magistrada pondera que não ‘se está dizendo que os fatos não ocorreram,
mas apenas que não há prova segura para condenar o acusado, pelo que deve ser
aplicado o princípio humanitário do in
dubio pro reo’.
E foi exatamente por estar
convencida de que não havia elementos probatórios suficientes para estabelecer
juízo de certeza – especialmente no tocante à ausência de discernimento para
prática do ato ou da impossibilidade de oferecer resistência – que a Magistrada
decididiu a favor do acusado.
O acórdão está disponível no site
do TJRS, neste LINK, para consulta, leitura e reflexões.
Sobre o princípio do in dubio pro reo é imperativo lembrar que, por força das normas constitucionais, penais e processuais penais, o Estado-Acusador é responsável pela produção da prova. Ora, se o Estado (MP) não consegue reunir as provas, desprovidas de dúvida, de materialidade e autoria do crime, o juiz deve absolver o acusado.
Em todos os crimes, em todas as acusações, em todos os processos.
Em todos os crimes, em todas as acusações, em todos os processos.
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