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sexta-feira, junho 11

Ato obsceno

A Turma Recursal Criminal do Estado do RS absolveu homem acusado de ato obsceno por nadar nu no Rio Pulador, na cidade de Ibirubá (RS). O colegiado formado por três juízas entendeu que "não houve infração penal, pois o réu não agiu deliberadamente com a intenção de ofender o pudor alheio".

O Ministério Público ofereceu denúncia narrando que às 14h de 2 de dezembro de 2008, um quente dia de verão, uma testemunha - acompanhada do filho, da cunhada, de um amigo e duas crianças - dirigiu-se ao Rio Pulador para pescar. Chegando ao local, ela se deparou com o réu nu sentado sobre uma pedra molhando os cabelos. A autora, então, perguntou três vezes ao homem se ele iria vestir-se.

Não obtendo resposta, ela decidiu chamar a Brigada Militar, que quando chegou ao local encontrou o homem já vestindo-se. "Senti-me ofendida pelo fato de o acusado estar nu em lugar inapropriado, bem como por haver me ignorado - em lugar onde vão crianças - quando questionado se ele iria vestir-se" - disse em Juízo a mulher que chamou a Brigada Militar.

O réu admitiu que se banhava nu, pois "estava muito quente e não queria molhar suas roupas".

Ponderou que ao perceber a aproximação das mulheres, vestiu-se imediatamente e contou também que eventualmente ia ao local, pois, apesar de consistir em propriedade privada, era aberto ao público.

Em primeira instância, o homem foi condenado por ato obsceno (art. 233 do Código Penal). O juiz Ralph Moraes Langanke, da Vara Judicial, da comarca de Ibirubá (RS), substituiu a pena privativa de liberdade por seis meses de prestação de serviço à comunidade. Para o magistrado, "a consumação do crime ocorre com a prática efetiva do ato, independente de que alguém o tenha presenciado ou se sinta ofendido, visto que o objeto jurídico protegido pela norma penal incriminadora é o pudor público, sendo o sujeito passivo a coletividade".

A defesa apelou pedindo a absolvição do réu.

Ao analisar os depoimentos, a relatora da Turma Recursal Criminal, juíza Laís Ethel Corrêa Pias, considerou não configurado o delito, pois o acusado não agiu com dolo. "Não entendo que o acusado tenha, com sua conduta, objetivado chocar e ferir o decoro das pessoas que presenciaram a cena. A meu ver, o réu banhava-se com o intuito de se refrescar, todavia o fez em lugar exposto ao público, uma vez que havia residências em torno do local e poderia ser ele acessado livremente por qualquer pessoa".

O voto prossegue afirmando que "apesar de ter assumido o risco de ser presenciado nu, vejo como culposa a conduta, inexistindo para o delito punição a título de culpa, pois não praticou qualquer gesto ofensivo obsceno".

As juízas Ângela Maria Silveira e Cristina Pereira Gonzales acompanham o voto da relatora, ponderando que "apesar do lugar inadequado, foi suficiente a advertência sofrida pela abordagem policial e o fato de ele estar respondendo ao processo". (Proc. nº 71002582849).

Outros trechos do voto da relatora:

"É sabido que, hoje em dia, houve significativas mudanças sociais no sentido de tolerar determinadas atitudes. A nudez perdeu seu caráter de tabu, ainda que devam ser respeitados certos limites.

Não havendo o réu praticado gesto ofensivo a fim de chocar as pessoas que o flagraram, entendo como suficiente a advertência sofrida, por parte dos policiais que o abordaram, bem como responder ao processo, já serve como uma espécie de punição, parecendo-me excessiva qualquer punição na esfera penal.

O Direito Penal deve estar em sintonia com princípios morais e éticos, absorvendo as freqüentes mudanças atinentes a comportamentos considerados aceitáveis ou não.

Mostrando os meios de comunicação condutas bem mais ousadas que a do réu, entendo como impossível puni-lo na esfera penal por tomar banho nu em lugar público, num dia de calor, com o objetivo de refrescar-se.

Ainda que não seja sua conduta apropriada - razão pela qual foi advertido pela vítima indireta e pelo policial que o abordou - estaria uma eventual condenação ofendendo o princípio da intervenção mínima do Direito Penal".

Comentário meu:
 
Já há muito venho ponderando aos meus alunos, na disciplina de Direito Penal V, que os crimes de ato obsceno e de escrito e objeto obsceno merecem reforma legislativa. Tenho dito que a Lei 12015/09 que produziu reforma substancial no título VI do Código Penal - que trata dos crimes sexuais - poderia ter promovido, também, as mudanças necessárias nos tipos penais dos artigos 233 e 234 do CPB.

Nesses crimes a objetividade jurídica é a moralidade pública e, portanto, é exígivel para a configuração do crime a potencialidade lesiva do comportamento.  Caso contrário, diante da ausência de potencial lesivo, é crime impossível, já que absolutamente impróprio o objeto.

Assim, esses crimes demandam lesão concreta aos bons costumes e, para isso, é preciso que haja dolo de ofender a moralidade pública, além de ser imprescindível que haja público, ou seja, que alguém tenha presenciado o ato tido como obsceno.

Sei, todavia, que a maioria da doutrina e da jurisprudência exige a prática da obscenidade em lugar público, reconhecendo como suficiente esse comportamento, independentemente de ter sido presenciado ou visto por alguém.

Não me parece, absolutamente, razoável o entendimento. A um porque a manter-se esse rigor na hermenêutica do tipo penal, considerando-o como uma espécie de crime de perigo abstrato, poder-se-ia incluir o beijo lascivo, a bolinação, a micção pública, a nudez em praias, em campanhas publicitárias, teatros e programas televisivos como comportamentos aptos a caracterizar o crime.  E isso, salvo melhor juízo, seria um exagero nos tempos atuais.

Exatamente por essas considerações, a decisão da Turma Recursal me parece totalmente pertinente.

A dois porque é possível ponderar-se que a falta de clareza sobre o que se considera obsceno - elemento normativo extremamente vago - fere os princípios da legalidade e da taxatividade. Inconstitucional, pois, tais previsões.  

No tipo penal de escrito ou objeto obsceno se experimenta lesão à liberdade de expressão, especialmente a artística, que sofreria restrições. Eu mesma conheço um artista que se dedica a pintura de 'pênis'. Certamente outros tantos existem que escolhem objetos de conotação sexual ou pornográfica para sua arte.  A Constituição Federal garante a liberdade de expressão em atividade artística, intelectual, científica e de comunicação, de modo a não permitir  qualque restrição ou censura.

Não posso deixar de lembrar das lojas de produtos eróticos. São obscenos os produtos colocados à disposição do público em lojas de apelo erótico?

Parece-me que as disposições dos artigos 233 e 234 do CPB estão inadequadas, fora do 'seu tempo'. O direito é dinâmico, vivo, não pode estagnar-se temporalmente, e não é possível esquecer que tais disposições estão insertas no Código Penal desde 1940.
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