Por seis votos a dois, o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) aplicou sua própria Súmula 210 para admitir que o assistente de acusação em ação penal incondicionada possa interpor recurso, no caso de omissão do Ministério Público, titular da ação.
A decisão foi tomada pela Corte ao negar provimento ao Habeas Corpus (HC) 102085. Nele, a defesa de Neusa Maria Michelin Tomiello se insurgia contra decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que deu provimento parcial a Recurso Especial (REsp) lá interposto pelo assistente da acusação, a empresa de factoring Vacaria Assessoria Creditícia Ltda, em ação penal proposta contra a autora do HC na Justiça de Vacaria (RS).
Dispõe a Súmula 210/STF que “o assistente do Ministério Público pode recorrer, inclusive extraordinariamente, na ação penal, nos casos dos artigos 584, parágrafo 1º e 598 do Código de Processo Penal”. Tais dispositivos facultam ao ofendido e a seu cônjuge, ascendentes, descendentes e irmãos a interposição de recurso em caso de inércia do MP em ação penal.
O caso
Neusa Tomiello é acusada de estelionato por emissão de dois cheques pós-datados (comumente denominados pré-datados), porém os sustando posteriormente, por questionar o valor da dívida dela cobrada por uma empresa comercial, via empresa de factoring.
Essa atitude levou a empresa a propor ação penal contra ela, mas Neusa foi absolvida. A cobrança do débito está sendo processada em ação cível. Nas alegações finais do processo, o próprio Ministério Público, titular da ação penal, pediu pela absolvição da ré. Diante disso, o juiz a absolveu, e o MP não recorreu dessa decisão.
Inconformado, o assistente de acusação, advogado da empresa, interpôs recurso de apelação junto ao Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul (TJ-RS). Entretanto, a 5ª Turma do TJ negou o recurso, por não reconhecer legitimidade ao assistente de acusação para recorrer da sentença de primeiro grau. Isso levou o assistente a interpor Recurso Especial (REsp) ao STJ.
No STJ houve o parcial provimento ao recurso, e a defesa de Neusa Maria impetrou habeas corpus no STF, que hoje foi indeferido. O HC começou a ser julgado na Primeira Turma do STF, em maio deste ano. Mas a Turma decidiu levá-lo ao Plenário.
Teses
No julgamento de hoje, prevaleceu a tese defendida pela relatora do processo, ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha, de que, embora a Constituição Federal (CF) preveja, em seu artigo 129, inciso I, que cabe ao Ministério Público, privativamente, promover a ação penal pública, a própria CF, em seu artigo 5º, inciso LIX, admite que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”.
A maioria dos ministros presentes à sessão de hoje do Plenário entendeu que essa regra do artigo 5º da CF se aplica, também, à interposição de recurso no caso presente, contra sentença absolutória da ré.
A ministra Cármen Lúcia fundamentou-se tanto na doutrina quanto na jurisprudência da Suprema Corte para negar o HC e admitir a legitimidade do assistente de acusação de atuar no processo, como o fez. Entre os precedentes, citou os Recursos Extraordinários (REs) 331990 e 160222 e o HC 76754.
No mesmo sentido da ministra Cármen Lúcia votaram os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Ayres Britto, Ellen Gracie e Celso de Mello.
Em seu voto, a ministra Ellen Gracie admitiu um certo desconforto em admitir que uma empresa de factoring, “que vive da compra de cheques”, atue na prossecução criminal. Entretanto, ela se disse compelida a votar no mesmo sentido em que votara o ministro Ayres Britto, de que o MP é um órgão público e, como tal, precisa estar sujeito à constante vigilância do cidadão. “A hipótese não é boa, mas a tese deve ser mantida”, observou a ministra Ellen Gracie.
Divergência
Votos discordantes, o presidente do STF, ministro Cezar Peluso, e o ministro Marco Aurélio, sustentaram a prerrogativa exclusiva do MP de agir na ação penal. Segundo o primeiro deles, a Constituição Federal é clara ao atribuir ao MP, em caráter privativo, a titularidade da ação penal, no interesse do Estado de punir criminosos.
Por isso, no seu entender, não há interesse do Estado em defender o interesse patrimonial do ofendido, até mesmo porque, no processo, seu papel deve ser de neutralidade. Exceção só é o caso de omissão do MP o que, no sem entendimento, não ocorreu no processo envolvendo Neusa Tomiello, onde ele se manifestou em alegações finais.
Peluso lembrou que “agir”, na ação processual, significa tecnicamente praticar todos os atos. Portanto, segundo ele, “quando se fala em exercício de ação penal, quem pode recorrer é somente quem tem o direito de agir, que é o próprio Estado. Quanto ao assistente, “ele simplesmente adere ao titular da ação, que é o MP”.
Ainda segundo o ministro Cezar Peluso, não está em jogo a satisfação de interesses patronais, porque para isso há a via própria, que é a ação cível, que já estaria em curso no presente caso.
Alegações
O advogado que atuou na defesa pediu uma revisão da Súmula 210/STF, lembrando que ela data de 1963. Ele apontou contradição entre os artigos 129, inciso I, da CF, e o artigo 5, inciso LIX, o primeiro dispondo que a ação penal é função privativa do MP e, o segundo, admitindo a ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal.
Ainda segundo o advogado, o artigo 598 do Código de Processo Penal, ao admitir a interposição de recurso em ação penal por cônjuge, ascendente , descendente ou irmão “carece de conformidade com a Constituição”. Segundo ele, o dispositivo abriu uma brecha de promoção de vingança, ao permitir ao particular assumir o papel do Estado na promoção da ação.
O advogado lembrou que, em 1941, quando foi editado o Código de Processo Penal, o assistente de acusação exercia mais a função de assistente litisconsorcial. Hoje, entretanto, segundo o advogado, ele deveria ter a função de assistente simples.
Em sentido semelhante ao da defesa manifestou-se a subprocuradora-geral da República Deborah Duprat. Segundo ela, admitir a atuação do assistente da acusação, no caso, geraria um desequilíbrio entre acusação e defesa, com ofensa ao princípio da proporcionalidade e do direito do contraditório.
Segundo ela, a jurisprudência moderna vai no sentido da obediência do princípio da paridade de armas para propor e produzir provas no processo. Ainda conforme Duprat, o papel do assistente, hoje, é mais de participação, de proporcionar o diálogo entre as partes na busca do ideal de justiça.
No caso julgado hoje, segundo seu entendimento, o assistente “não está à procura do diálogo e da conciliação, que são o ideal do processo, mas de seu próprio interesse, com visão individualista em confronto com o estado democrático de direito”.
{Fonte: Notícias STF}
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