Apesar da decisão do Cremers daquela época, Kalume não se calou. O programa de transplantes era tido como parte de um suposto convênio entre a faculdade de medicina da Universidade de Taubaté (Unitau) e o Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP), na capital paulista. Mas, segundo o então diretor, esse acordo jamais existiu. “Eu era o diretor da faculdade e esse programa [de transplantes] era feito por médicos subordinados administrativamente a mim e eu não sabia do programa e quando eu tomei conhecimento eu fiquei com medo”, diz Kalume, que está com 63 anos.
Procurada nesta semana, a Universidade de Taubaté informou que “não se pronunciará sobre esse assunto”. A assessoria de imprensa da superintendência do HC da USP não respondeu aos questionamentos da reportagem feitos por e-mail e telefone.
Médium pedia para família doar rim
Voltando aos anos 80, Kalume também tinha dito que a equipe médica envolvida falsificava diagnósticos de morte encefálica para convencer as famílias dos pacientes a autorizar a retirada dos órgãos. Em alguns casos, continua o denunciante, uma espécie de médium foi apresentado pelos médicos aos parentes para dizer que havia entrado em contato com o morto no plano espiritual e ele havia pedido para os familiares autorizarem a retirada de seus rins. “Era um programa de retirada de órgãos de pacientes comatosos [em estado de coma] para mandar para clínicas particulares de São Paulo”, diz Kalume.
Mas, segundo Kalume, o fato mais grave nessa história toda é que os pacientes estavam vivos, e não mortos. “Os pacientes tinham os órgãos retirados, mas eles tinham fluxo cerebral. Eles não estavam enquadrados no conceito de morte cerebral ou no conceito de cadáver. Radiografias revelaram que havia atividade cerebral”, diz o médico. “Em outras palavras, eles morreram porque tiveram esses órgãos retirados.”
Segundo o CFM, morte encefálica e morte cerebral são sinônimos. Apesar de os anos 80 não terem tido uma legislação específica para transplantes de rins no país, o recomendado era seguir as normas da Associação Médica Mundial. Ela determinava a retirada de órgãos de pacientes com morte encefálica (sem atividade cerebral e sem respiração natural).
“O meu interesse maior, pessoal, é o mesmo que eu tinha há 24 anos. Pode? Pode fazer o que foi feito aqui em Taubaté? Mesmo dentro da legislação atual, mesmo dentro da legislação vigente. Mesmo dentro das determinações do Código de Ética, que já foram modificadas, depois desse episódio. Essa resposta quem vai dar é a Justiça. Se a Justiça achar que pode, então ela vai consagrar que pode tirar órgãos de pacientes sem estar em morte cerebral”, diz Kalume, que, por conta das acusações, foi afastado do cargo de diretor da faculdade na época. Atualmente, trabalha como cirurgião de tórax no Hospital Geral de Taubaté.
Caso Kalume, a CPI e a enfermeira
Na época, o assunto ficou conhecido nacionalmente e a imprensa o tratou como caso Kalume, em referência ao sobrenome do denunciante. O escândalo culminou com a abertura de inquérito policial em 1987 e até virou alvo em 2003 da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que apurava a atuação de organizações criminosas atuantes no tráfico de órgãos no Brasil. Um dos depoimentos mais marcantes em Brasília foi o de uma enfermeira que contou ter visto um paciente ter os órgãos retirados enquanto se debatia na mesa de cirurgia. A mulher também disse que um médico pegou o bisturi, enfiou no peito do homem e ele morreu.
“Lembro que eles avisaram que ia entrar uma cirurgia. De urgência. Eu trabalhava no centro cirúrgico. E a gente preparou a sala. Eu e uma outra amiga. Falaram que era um rapaz que tinha sido atropelado. Quando entrou o paciente, ele estava com a cabeça toda enfaixada. Eu até pensei que fosse uma cirurgia de crânio.
Aquela correria de uma cirurgia quando vai começar e o paciente muito agitado. Ele não parava de se debater. O paciente superagitado. Eu pensava que fosse uma cirurgia de crânio e, no fim, foi tão estranho, eles fizeram uma cirurgia... Tiraram os dois rins do paciente e logo já mandaram a minha colega de sala, pegar uma caixa assim de plástico, uma espécie de reservatório, uma caixa reserva para transportar", contou ao a testemunha à reportagem do Site G1.
"Ele colocou os dois rins ali dentro, muito bravo. E saiu com os dois rins, mas o paciente ainda continuava vivo. O paciente se debatia muito porque a anestesia que ele tomou não pegou. Aí ele [o médico Pedro Henrique Torrecillas] pegou... Ah, meu pai. Ele pegou um bisturi e deu um pique, um pique praticamente no meio do peito. O paciente parou de se mexer, nós levamos ele para a UTI. E aí encerrou. Nós ficamos só no comentário depois”, disse a ex-enfermeira, de 56 anos.
Um comentário:
Boa noite. Fui residente em cirurgia geral no hospital de clinicas em taubate com o dr kalume como preceptor. Hoje atuo em lisboa, portugal. Trata se sem duvida de um grande medico e uma pessoa com principios morais e eticos dificeis de se encontrar hoje em dia. Marcio costa
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