A colaboradora Carolina Cunha envia nota publicada no site do Superior Tribunal de Justiça sobre o entendimento e a aplicação de tese interpretativa a respeito da extinta Lei de Imprensa - que ainda é tema de muitos recursos no STJ - nos mais recentes julgamentos sobre o tema nas Turmas de Direito Privado. Ainda que o conteúdo não seja de natureza penal, em face de possíveis reflexos nesta seara, vale conferir a postura do STJ.
De acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proferida em abril de 2009 no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n. 130/DF, a Lei de Imprensa (Lei n. 5.520/1967) deixou de produzir efeitos desde a promulgação da Constituição Federal de 1998. Na falta de lei específica sobre o tema, os magistrados utilizam a legislação civil e a própria Constituição para julgar casos de supostos abusos da liberdade de informação.
Diferentemente da declaração de inconstitucionalidade, a lei pré-constitucional não recepcionada em julgamento de ADPF não está sujeita à regra da modulação temporal de efeitos. É como se ela nunca tivesse existido. Por isso, não cabe ao Judiciário fixar a partir de quando essa lei deixa de valer. Esse é o entendimento adotado no STF.
Apesar de extinta do ordenamento jurídico brasileiro há mais de 20 anos, os dispositivos da Lei de Imprensa ainda são base de muitas decisões judiciais. O destino e tratamento dos recursos nessas ações são, frequentemente, tema de discussão no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O fundamental para o STJ é evitar que, por um lado, acórdãos impugnados sobrevivam com base na Lei de Imprensa e, por outro, que decisões com outros fundamentos sejam desnecessariamente anuladas. Entre os inúmeros processos em trâmite no STJ que tratam desta lei, a ministra Nancy Andrighi identificou quatro situações, cada uma com solução distinta.
Na primeira hipótese, a lei foi utilizada como fundamento do acórdão, e o recurso discute a aplicação e interpretação da lei. Nesse caso, o STJ tem anulado o acórdão, ainda que sem pedido para isso, e devolvido o processo à origem para que outro acórdão seja proferido, sem a aplicação da lei não recepcionada.
Há processos em que a lei foi aplicada e o recurso pede seu afastamento. Aí a anulação não é necessária. Na maioria dos casos, é possível o julgamento do recurso porque a impossibilidade de aplicação da Lei de Imprensa já foi debatida no processo. Assim, o acórdão é reformado, afastando a norma. É claro que solução diferente poderá ser adotada, em caráter excepcional, em razão das peculiaridades de cada caso.
A terceira situação trata da não aplicação da Lei de Imprensa no acórdão e o recurso pede sua incidência. Nessas hipóteses, em geral, o recurso não é conhecido porque invoca aplicação de lei inválida.
Por fim, a situação mais complexa traz acórdão e recurso com duplo fundamento: na lei civil e na Lei de Imprensa, o que demanda análise caso a caso. Mesmo assim, foram estabelecidos alguns parâmetros. Se o duplo fundamento se referir ao mesmo tema e o recurso tratar apenas da Lei de Imprensa, aplica-se a Súmula n. 283/STF e mantém-se o acórdão. A súmula estabelece que “é inadmissível recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles”.
Quando o duplo fundamento se refere ao mesmo tema e só a parcela da legislação civil for questionada, o recurso é conhecido para discussão dessa parcela. Mas, se o duplo fundamento trata de temas diversos, aprecia-se a questão caso a caso. O acórdão só será anulado se a aplicação da Lei de Imprensa, devidamente contestada pela parte, comprometer o julgamento por completo devido à manutenção de acórdão fundado em lei não recepcionada.
Confira abaixo a aplicação dessa tese nos mais recentes julgamentos sobre o tema nas Turmas de Direito Privado do STJ.
Notícia falsa
Com base na tese apresentada, foi mantida a decisão da Justiça de Mato Grosso que condenou a Televisão Bororos a pagar R$ 30 mil em indenização por danos morais a um homem prejudicado pela veiculação de uma notícia falsa. Um programa policial informou, equivocadamente, que ele era procurado pela polícia por ter praticado três homicídios no interior de São Paulo. No recurso ao STJ, a emissora pediu a redução da condenação com base no artigo 53, inciso III, da Lei de Imprensa, porque se retratara da notícia no dia seguinte. Como essa lei não foi aplicada no acórdão, a Terceira Turma negou o recurso.
Embora, por um lado, o Tribunal não admita a leviandade da imprensa, com a publicação de matérias absolutamente inverídicas que possam atingir a honra da pessoa; por outro lado, não exige da atividade jornalística verdades absolutas, comprovadas previamente por investigações oficiais. A liberdade de informação deve ser pautada pelo compromisso ético com a informação verossímil, que, eventualmente, pode abarcar dados imprecisos.
Ciente do caráter de urgência que envolve a atividade de imprensa, a ministra Nancy Andrighi decidiu que não se pode exigir que a mídia só divulgue fatos após ter certeza plena de sua veracidade. “Impor tal exigência à imprensa significaria engessá-la e condená-la à morte”, afirmou.
Com esse fundamento, a Terceira Turma cancelou indenização por dano moral concedida a um motorista chamado de “bêbado” em reportagem. Apesar de ter sido absolvido em sindicância, ficou comprovado que ele dirigiu e colidiu o carro oficial que conduzia contra um muro após ingerir bebida alcoólica em uma festa.
Em outro recurso, a TV Globo pediu a anulação de sua condenação por danos morais com base na Lei de Imprensa. A indenização de 100 salários-mínimos é devida a uma fábrica de palmito que teve seu produto apresentado como impróprio para consumo. Foi provado que a informação era inverídica.
A decisão judicial que condenou a emissora teve fundamento na Lei de Imprensa e na Constituição. Como a recorrente não ajuizou recurso extraordinário para que o STF avaliasse a questão constitucional, e a lei invocada é inválida, o ministro Sidnei Beneti não admitiu o recurso, com base na Súmula n. 283/STF.
Ofensa de jornalistas
A Lei de Imprensa também foi invocada em recurso especial do jornalista e comentarista esportivo Orlando Duarte contra acórdão do tribunal paulista. Ele foi condenado a pagar indenização por danos morais no valor de 200 salários-mínimos ao também jornalista esportivo José Carlos Kfouri, em razão de expressões injuriosas ditas em programa de rádio.
No recurso, Duarte pediu a aplicação do limite indenizatório de cinco salários-mínimos previsto na Lei de Imprensa. Citando a decisão do STF na ADPF n. 130/DF, o ministro Aldir Passarinho Junior, relator do caso, afastou a aplicação da lei e negou o pedido. A Quarta Turma acolheu o recurso apenas para converter em reais a indenização fixada em salários-mínimos.
Abuso da liberdade de informação
O SBT e o apresentador Carlos Massa recorreram de decisão da Justiça paulista que os condenou a pagar 500 salários-mínimos em indenização por danos morais à Igreja Pentecostal Deus é Amor. Os magistrados entenderam que a manifestação do pensamento em programa de televisão extrapolou os limites previstos no artigo 220 da Constituição.
No caso, a entrevista concedida pela ex-esposa de um membro da igreja teria ultrapassado o campo do interesse público para atingir a esfera individual e a intimidade.
A emissora e Massa pediram no recurso a redução da indenização com base no Código Civil e na Lei de Imprensa. Sem afastar a aplicação da lei, o ministro João Otávio de Noronha (relator) considerou o valor desproporcional à gravidade da ofensa e reduziu a indenização para o equivalente a 150 salários-mínimos, a serem divididos entre os condenados.
Diferentemente da declaração de inconstitucionalidade, a lei pré-constitucional não recepcionada em julgamento de ADPF não está sujeita à regra da modulação temporal de efeitos. É como se ela nunca tivesse existido. Por isso, não cabe ao Judiciário fixar a partir de quando essa lei deixa de valer. Esse é o entendimento adotado no STF.
Apesar de extinta do ordenamento jurídico brasileiro há mais de 20 anos, os dispositivos da Lei de Imprensa ainda são base de muitas decisões judiciais. O destino e tratamento dos recursos nessas ações são, frequentemente, tema de discussão no Superior Tribunal de Justiça (STJ).
O fundamental para o STJ é evitar que, por um lado, acórdãos impugnados sobrevivam com base na Lei de Imprensa e, por outro, que decisões com outros fundamentos sejam desnecessariamente anuladas. Entre os inúmeros processos em trâmite no STJ que tratam desta lei, a ministra Nancy Andrighi identificou quatro situações, cada uma com solução distinta.
Na primeira hipótese, a lei foi utilizada como fundamento do acórdão, e o recurso discute a aplicação e interpretação da lei. Nesse caso, o STJ tem anulado o acórdão, ainda que sem pedido para isso, e devolvido o processo à origem para que outro acórdão seja proferido, sem a aplicação da lei não recepcionada.
Há processos em que a lei foi aplicada e o recurso pede seu afastamento. Aí a anulação não é necessária. Na maioria dos casos, é possível o julgamento do recurso porque a impossibilidade de aplicação da Lei de Imprensa já foi debatida no processo. Assim, o acórdão é reformado, afastando a norma. É claro que solução diferente poderá ser adotada, em caráter excepcional, em razão das peculiaridades de cada caso.
A terceira situação trata da não aplicação da Lei de Imprensa no acórdão e o recurso pede sua incidência. Nessas hipóteses, em geral, o recurso não é conhecido porque invoca aplicação de lei inválida.
Por fim, a situação mais complexa traz acórdão e recurso com duplo fundamento: na lei civil e na Lei de Imprensa, o que demanda análise caso a caso. Mesmo assim, foram estabelecidos alguns parâmetros. Se o duplo fundamento se referir ao mesmo tema e o recurso tratar apenas da Lei de Imprensa, aplica-se a Súmula n. 283/STF e mantém-se o acórdão. A súmula estabelece que “é inadmissível recurso extraordinário, quando a decisão recorrida assenta em mais de um fundamento suficiente e o recurso não abrange todos eles”.
Quando o duplo fundamento se refere ao mesmo tema e só a parcela da legislação civil for questionada, o recurso é conhecido para discussão dessa parcela. Mas, se o duplo fundamento trata de temas diversos, aprecia-se a questão caso a caso. O acórdão só será anulado se a aplicação da Lei de Imprensa, devidamente contestada pela parte, comprometer o julgamento por completo devido à manutenção de acórdão fundado em lei não recepcionada.
Confira abaixo a aplicação dessa tese nos mais recentes julgamentos sobre o tema nas Turmas de Direito Privado do STJ.
Notícia falsa
Com base na tese apresentada, foi mantida a decisão da Justiça de Mato Grosso que condenou a Televisão Bororos a pagar R$ 30 mil em indenização por danos morais a um homem prejudicado pela veiculação de uma notícia falsa. Um programa policial informou, equivocadamente, que ele era procurado pela polícia por ter praticado três homicídios no interior de São Paulo. No recurso ao STJ, a emissora pediu a redução da condenação com base no artigo 53, inciso III, da Lei de Imprensa, porque se retratara da notícia no dia seguinte. Como essa lei não foi aplicada no acórdão, a Terceira Turma negou o recurso.
Embora, por um lado, o Tribunal não admita a leviandade da imprensa, com a publicação de matérias absolutamente inverídicas que possam atingir a honra da pessoa; por outro lado, não exige da atividade jornalística verdades absolutas, comprovadas previamente por investigações oficiais. A liberdade de informação deve ser pautada pelo compromisso ético com a informação verossímil, que, eventualmente, pode abarcar dados imprecisos.
Ciente do caráter de urgência que envolve a atividade de imprensa, a ministra Nancy Andrighi decidiu que não se pode exigir que a mídia só divulgue fatos após ter certeza plena de sua veracidade. “Impor tal exigência à imprensa significaria engessá-la e condená-la à morte”, afirmou.
Com esse fundamento, a Terceira Turma cancelou indenização por dano moral concedida a um motorista chamado de “bêbado” em reportagem. Apesar de ter sido absolvido em sindicância, ficou comprovado que ele dirigiu e colidiu o carro oficial que conduzia contra um muro após ingerir bebida alcoólica em uma festa.
Em outro recurso, a TV Globo pediu a anulação de sua condenação por danos morais com base na Lei de Imprensa. A indenização de 100 salários-mínimos é devida a uma fábrica de palmito que teve seu produto apresentado como impróprio para consumo. Foi provado que a informação era inverídica.
A decisão judicial que condenou a emissora teve fundamento na Lei de Imprensa e na Constituição. Como a recorrente não ajuizou recurso extraordinário para que o STF avaliasse a questão constitucional, e a lei invocada é inválida, o ministro Sidnei Beneti não admitiu o recurso, com base na Súmula n. 283/STF.
Ofensa de jornalistas
A Lei de Imprensa também foi invocada em recurso especial do jornalista e comentarista esportivo Orlando Duarte contra acórdão do tribunal paulista. Ele foi condenado a pagar indenização por danos morais no valor de 200 salários-mínimos ao também jornalista esportivo José Carlos Kfouri, em razão de expressões injuriosas ditas em programa de rádio.
No recurso, Duarte pediu a aplicação do limite indenizatório de cinco salários-mínimos previsto na Lei de Imprensa. Citando a decisão do STF na ADPF n. 130/DF, o ministro Aldir Passarinho Junior, relator do caso, afastou a aplicação da lei e negou o pedido. A Quarta Turma acolheu o recurso apenas para converter em reais a indenização fixada em salários-mínimos.
Abuso da liberdade de informação
O SBT e o apresentador Carlos Massa recorreram de decisão da Justiça paulista que os condenou a pagar 500 salários-mínimos em indenização por danos morais à Igreja Pentecostal Deus é Amor. Os magistrados entenderam que a manifestação do pensamento em programa de televisão extrapolou os limites previstos no artigo 220 da Constituição.
No caso, a entrevista concedida pela ex-esposa de um membro da igreja teria ultrapassado o campo do interesse público para atingir a esfera individual e a intimidade.
A emissora e Massa pediram no recurso a redução da indenização com base no Código Civil e na Lei de Imprensa. Sem afastar a aplicação da lei, o ministro João Otávio de Noronha (relator) considerou o valor desproporcional à gravidade da ofensa e reduziu a indenização para o equivalente a 150 salários-mínimos, a serem divididos entre os condenados.
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