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sábado, abril 16

A inconstitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito

O artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro pune com pena de detenção de seis meses a um ano, ou multa, o condutor do veículo que se afasta do local do acidente para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída. Tipifica, portanto, a conduta do agente que e afasta, se arreda do local do evento de trânsito para fugir a uma responsabilidade específica.

A exegese do referido dispositivo penal permite deduzir que o legislador pretende obrigar os condutores de veículos automotores a permanecerem no local do acidente a fim de ‘facilitar’ a atuação das autoridades competentes em apurar possíveis responsabilidades do sujeito causador de ilícito no trânsito.

O confronto da previsão deste artigo da legislação e o princípio do nemo tenetur se detegere revela incoerência quanto à pretensão do Estado de punir o condutor do veículo que se evade do local do evento de trânsito.

Ora, ocorre que ao Estado compete, através de medidas eficazes no âmbito da administração pública, e das suas instâncias formais, apurar o cometimento de delitos praticados, apontando os seus respectivos responsáveis.

Não é atribuição do acusado se auto-incriminar e, portanto, o afastamento dele do local do acidente não poderia se constituir em comportamento criminoso.

A ordem jurídica brasileira, e muito particularmente a jurisprudência dos tribunais brasileiros, não reconhecem a existência de dever de colaboração do acusado por um crime na produção de provas que lhe sejam auto-incriminantes. Entendimento esse, diga-se, conforme a Constituição Federal Brasileira e, também, acorde com o Pacto São José da Costa Rica, que também dispõe sobre os direitos do acusado de não ser obrigado a depor contra si, nem confessar-se culpado.  Assim inexiste razão plausível para obrigar alguém a se auto-acusar, permanecendo no local do crime para sofrer as conseqüências civis e penais do que provocou.

Como se sabe, o ônus da prova, em processo penal, compete ao acusar, já que o acusado não precisa provar sua inocência, por que esta se presume, por força de disposição constitucional.         

No afã de punir condutas no trânsito, o legislador acabou por cometer exageros que são paradoxais, desequilibrados em relação a outras disposições normativo-penais. Veja-se, por exemplo, que o latrocida que se afasta do local do roubo seguido de morte para fugir a tal responsabilidade civil e criminal não incide em qualquer comportamento ilícito muito embora, sob certos aspectos, se possa estar diante de um crime muito mais grave do que aquele do condutor do veículo que se afasta do local do evento.   

Atualmente, o princípio do nemo tenetur se detegere tem um caráter garantista, resguarda a liberdade moral do acusado para decidir se quer ou não cooperar com as instâncias formais.

Por isso a pessoa que está autorizada, inclusive constitucionalmente, a silenciar, não contribuir, não se auto-incriminar, não pode ser considerado autor de um crime como este contido na regra do artigo 305 da Lei 9503/97 – Código de Trânsito. 

Resta, assim, incontroversa a inconstitucionalidade deste dispositivo do Código de Trânsito.
A jurisprudência já tem se mostrado nessa direção. Decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, em incidente de inconstitucionalidade, assim se manifestou:
 EMENTA: Incidente de Inconstitucionalidade – Reserva de plenário. Artigo 305 do Código de Trânsito Brasileiro. Incompatibilidade com o direito fundamental ao silêncio. Inconstitucionalidade declarada.

Já no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, há decisão nas seguinte direção:

 EMENTA:  CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO. CTB. LEI 9.503/97. ART. 303 E 305. CONCURSO MATERIAL. LESÃO CORPORAL CULPOSA. FUGA. IMPRUDÊNCIA. Ré dirigindo carro faz manobra mal executada cortando a frente de motocicleta e ferindo gravemente uma das vítimas que fica em coma. Foge do local sem prestar socorro visando se eximir da responsabilidade penal ou civil, mormente porque estava com carteira de habilitação vencida. CONFIGURAÇÃO DOS CRIMES. Na realidade, trata-se de conduta única, com duas vítimas, gerando o concurso formal. O crime de fuga é inconstitucional. RECURSO PROVIDO EM PARTE. UNÂNIME.

Embora não haja unanimidade jurisprudencial sobre a inconstitucionalidade do artigo 305 do Código de Trânsito, há evidente tendência nesse sentido, por necessária harmonia entre as disposições legais infraconstitucionais com a ordem constitucional.  

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