Ana Cláudia Lucas
Para o Blog
Os delitos de falsidade ideológica e uso de documento falso são duas espécies criminosas praticadas contra a fé pública e, especificamente, caracterizadas por serem crimes de falsidade documental.
Assim, o objeto de proteção penal, nestes crimes, é a fé pública, ou seja, a confiança que a coletividade deposita nos sinais, objetos, moedas, emblemas e documentos, aos quais o Estado outorga um valor probatório.
Segundo a doutrina, “a fé pública não deve ser considerada como um objeto jurídico exclusivo dos crimes em análise. Não se falsifica para falsificar, mas para obter um resultado, que vai além da falsificação. A atividade do falsário busca atingir aquele interesse específico que é garantido pela genuinidade e pela veracidade dos meios de prova” (Costa Júnior, Paulo José. Curso de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2008, p.731).
É comum pretender-se a responsabilidade penal por ambos os crimes – falsidade ideológica, uso de documento falso e sonegação fiscal - quando o agente insere dados falsos em documento para, usando-o, buscar eximir-se do pagamento do tributo, ou para obter desconto no pagamento.
Assim, é preciso considerar que se o agente praticou, em tese, condutas aptas a caracterizar falsidade ideológica e uso de documento falso com o desiderato de empregar esses mecanismos para atingir um outro objetivo, como o de suprimir ou reduzir tributo, é de concluir-se, sem muita dificuldade, a ocorrência de dolo específico de sonegar impostos, restando,as demais condutas,como meios para a consecução do crime fim.
Neste contexto o que se discute é sobre a adequação típica mais apropriada, e lança-se mão do instituto do Concurso Aparente de Normas, que se manifesta quando dois ou mais tipos penais coexistentes parecem ajustar-se à mesma descrição de fato.
Contudo, apenas um é que na realidade deve incidir no fato. Como sustenta a doutrina “o conflito é aparente porque o ordenamento jurídico oferece, implícita ou explicitamente, critérios para determinar da aplicabilidade, no caso concreto, de uma ou outra disposição”. (Costa, Álvaro Mayrink da. Direito Penal. Parte Geral. Volume I. Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1988, p.422).
Um dos mecanismos utilizados para dirimir o conflito aparente de normas é a utilização dos chamados Princípios, em particular o da Especialidade, para o qual a lei especial deve preponderar sobre a lei geral (Lex specialis derogat generali; semper specialia generalibus insunt; generi per speciem derogatur), evitando-se, com isso, o bis in idem.
Assim, é possível a utilização do Princípio da Especialidade para resolver o conflito aparente de normas que está no entorno da situação específica de concorrência dos delitos dos artigos 299, 304 do Código Penal Brasileira e 1º da Lei 8137/90
É de observar-se que a legislação que disciplina os crimes contra a ordem tributária não fixou elementos que definam, com exatidão, qual é o bem jurídico que se pretende proteger. E, de acordo com a doutrina“...a ordem tributária deve ser entendida como uma abstração que diz respeito à instituição, arrecadação e fiscalização de tributos ou contribuições sociais, mas o bem jurídico que a lei quis tutelar é o direito que o Estado tem de instituir e cobrar impostos e contribuições”. (Andrade Filho, Edmar Oliveira. Direito Penal Tributário. Crimes contra a Ordem Tributária. São Paulo: Atlas, 1995, p.48).
Tem-se que considerar, por outro lado, que o objeto primordial nos crimes contra a ordem tributária é a integridade do erário, por certo, mas também são tutelados a Administração Pública e a fé pública, conforme se percebe pela leitura atenta do conjunto normativo da Lei 8.137/90.
Assim, aplicado o Princípio da Especialidade, não haveria como sobreviverem, no de haver falsidade, uso e sonegação fiscal, as figuras típicas dos artigos 299 e 304 do CPB, genéricas em relação ao delito específico do artigo 1º da Lei 8137/90.
Por outro lado, ainda na esteira dos Princípios solução do conflito aparente de normas, há que se referir sobre o Princípio da Consunção ou da Absorção, que também servem de fundamento para obstaculizar a pretensão de coexistência dos delitos de falsidade ideológica, uso de documento falso e sonegação fiscal.
É que segundo este princípio “a norma definidora de um crime constitui meio necessário, ou fase normal de preparação ou execução de outro crime. Em termos bem esquemáticos, há consução quando o fato previsto em determinada norma é compreendido em outra, mais abrangente, aplicando-se somente esta”(Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral. Volume I. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 201).
Por isso, é que ainda fossem consideradas as práticas anteriores à sonegação – de falsidade de documento e uso do mesmo – elas seriam meios para a consecução de crime contra a ordem tributária, restando, assim, absorvidas por este. Ambas as condutas devem ser consideradas meio para sacramentar a finalidade de defraudação do erário público. Ou seja, o falso e o uso dele, em relação ao crime tributário, são considerados como um ante-factum e um post-factum impuníveis.
A jurisprudência tem corroborado essa ideia, qual seja, de que não há concorrência dos crimes de falsidade ideológica e uso de documento falso, se o desiderato do agente era, mesmo, a sonegação fiscal.
Sobre o tema, consulte a seção jurisprudência, e leia as decisões dos tribunais brasileiros sobre o assunto.
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Legislação:
Uso de documento falso
Art. 304 - Fazer uso de qualquer dos papéis falsificados ou alterados, a que se referem os arts. 297 a 302:
Pena - a cominada à falsificação ou à alteração.
Falsidade ideológica
Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.
Sonegação Fiscal
Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: (Vide Lei nº 9.964, de 10.4.2000)
I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias;
II - (...)
III - (...)
IV - (...)
V - (...)
Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa.
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