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segunda-feira, dezembro 5

Centavos, papagaios e narizes: casos incomuns também formam a jurisprudência penal do STJ – Parte II

Nariz mordido

O STJ também já julgou caso em que uma mãe agrediu a educadora de uma creche (HC 35.896). Condenada a quatro anos e seis meses de reclusão, a mãe conseguiu reduzir a pena por meio de habeas corpus. Para a Sexta Turma, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDF) usou o ferimento duplamente, tanto para qualificar o crime quanto para aumentar a pena-base.

Em 1999, a mãe levou sua filha para a creche, no Recanto das Emas (DF). Ao recebê-la, a educadora advertiu a mãe sobre a higiene da criança e a presença de urina em suas roupas. A mãe argumentou que a filha teria se sujado no trajeto até a creche e se dirigiu até a secretaria da unidade para reclamar da advertência.

Ao retornar, a mãe encontrou a educadora dando banho na criança. Segundo testemunhas, ao presenciar a mãe, a criança se agitou na banheira, o que levou a agressora a tentar retirá-la da vítima. De imediato, a mãe passou a estapear a educadora e puxar seus cabelos, concluindo com uma mordida. O ato arrancou parte do nariz da educadora, então com 26 anos de idade. O reimplante cirúrgico não teve sucesso, resultando em deformidade estética permanente.

Pelos fatos, a juíza fixou a pena-base do crime de lesão corporal gravíssima em quatro anos de reclusão. Mas, conforme o ministro Nilson Naves, a deformidade permanente da vitima foi usada tanto para enquadrá-la no tipo penal quanto para fixar a pena-base acima do mínimo. “Em outras palavras, a resultante deformidade não poderia, ao mesmo tempo, qualificar o crime e integrar as circunstâncias judiciais. Não poderia, como não pode”, afirmou.

O processo foi devolvido ao TJDF para que fosse fixada nova pena, mantida a condenação, sem a dupla consideração do mesmo fato.

Habeas a feto

O STJ reconheceu, em 2004, o direito à vida de nascituro e o uso do habeas corpus para protegê-la (HC 32.159). Para a ministra Laurita Vaz, a realização do aborto fora das hipóteses previstas no Código Penal implicaria aplicação de pena corpórea máxima e irreparável. “Não há falar em impropriedade da via eleita, já que, como cediço, o writ se presta justamente a defender o direito de ir e vir, o que, evidentemente, inclui o direito à preservação da vida do nascituro”, afirmou a relatora.

Ao analisar o pedido, formulado por um religioso, a ministra concedeu liminar para suspender o efeito de outra liminar, em apelação, concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) em favor da gestante. O TJRJ havia permitido o aborto, mas a ministra considerou que a decisão liminar exauria o pedido, satisfazendo o mérito sem submetê-lo ao colegiado competente. “Afinal, a sentença de morte ao nascituro, caso fosse levada a cabo, não deixaria nada mais a ser analisado por aquele ou este Tribunal”, afirmou.

“O tema em debate é bastante controverso, porque envolve sentimentos diretamente vinculados a convicções religiosas, filosóficas e morais”, ressaltou a ministra ao avaliar o mérito do habeas corpus.

“Advirta-se, desde logo, que independente de convicções subjetivas pessoais, o que cabe a este Superior Tribunal de Justiça é o exame da matéria posta em discussão tão somente sob o enfoque jurídico. Isso porque o certo ou o errado, o moral ou imoral, o humano ou desumano, enfim, o justo ou o injusto, em se tratando de atividade jurisdicional em um Estado Democrático de Direito, são aferíveis a partir do que suas leis estabelecem”, asseverou a relatora.

Para a ministra, a decisão do TJRJ fundou-se essencialmente na inviabilidade da vida extra-uterina do nascituro e nas consequências psíquicas para a gestante e familiares, “sem dúvida, motivo de muita dor”. Porém, conforme a relatora, o aborto eugênico não está expresso na lei penal brasileira como hipótese autorizada.

Segundo ela, o magistrado não deve ficar engessado pelas “letras frias da lei”, como “mero expectador das mudanças da vida cotidiana”, mas, sim, buscando interpretação que se ajuste à realidade em que vive.

“Não se pode olvidar, entretanto, que há de se erigir limites. E estes hão de ser encontrados na própria lei, sob pena de se abrir espaço à odiosa arbitrariedade”, completou. Sobre o tema específico, a ministra considerou que não cabia ao Judiciário discutir a correção ou incorreção das normas vigentes, deixando a discussão para o foro adequado: o Legislativo.

A decisão registra ainda que, seguindo no julgamento, o TJRJ atendeu o pedido da gestante e autorizou definitivamente o aborto do feto anencéfalo. Porém, conforme reportagens jornalísticas juntadas aos autos, após a decisão do TJRJ a mãe desistiu do procedimento, dando continuidade à gravidez. A Quinta Turma concedeu unanimemente o habeas corpus, desautorizando o aborto.


Macacas livres

Um processo buscou ampliar o alcance do habeas corpus para o benefício de animais (HC 96.344). As advogadas pretendiam que Lili e Megh, ao contrário do habitual para ações desse tipo, fossem mantidas em cativeiro. A Justiça havia determinado sua reintegração à natureza, mas elas acreditavam que a medida implicaria a morte das chimpanzés.

“O periculum in mora reside no evidente perecimento de direito, com um agravante, esse direito é o bem maior (a vida dos animais), que seria gravemente afetado com a determinada retirada da guarda do fiel depositário para introduzi-las na natureza, o que certamente lhes acarretará a morte”, sustentou a impetração.

O ministro Castro Meira, porém, não admitiu a possibilidade de estender aos símios a proteção constitucional. “Nos termos do artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição da República, é incabível a impetração de habeas corpus em favor de animais. A exegese do dispositivo é clara. Admite-se a concessão da ordem apenas para seres humanos”, asseverou o relator.

Caretice obscena

A campanha da coleção de verão de uma marca nacional quase resultou na condenação dos empresários por exposição de objeto obsceno, punível com pena de até dois anos. O crime: veicular outdoor que, com recursos de luz e sombra, reproduziam o ângulo dorsal de corpos humanos.

“Essa reprodução da geografia do continente dorsal do corpo humano, conforme vejo nas revistas juntadas aqui no processo, não merece, a meu ver, reprovação; é digna de premiação, porque é uma obra de arte”, afirmou o relator para o acórdão, ministro Edson Vidigal (HC 7.809).

“Explora o visual humano com o maior respeito. Não unicamente como nádegas ou como dorso. Aliás, num primeiro olhar, não se tem de pronto a impressão negativa que tanto teria chocado o Ministério Público em Bauru (SP)”, completou.

“Aqui não há o grosseiro, não há o chulo. Há a visão sensível de um artista, através de suas lentes, retratando um pedaço do território de uma criação divina. É assim que nos é mostrado esse lado bonito do corpo humano”, acrescentou.

“Esse Código é de 1940. O conceito de obsceno naqueles tempos era, no dizer dos jovens de hoje, muito careta. Sexo era tabu nas escolas, assunto proibido entre adolescentes. Para as crianças mais curiosas, falava-se que tinha sido a cegonha”, argumentou o ministro.

“A própria história do pecado contada naqueles tempos, descrevendo aquele cenário do Éden – um homem, uma mulher, uma maçã, uma serpente, uma nudez, depois uma ordem de despejo como castigo – induzia-nos a grande medo e precauções; não de doenças sexualmente transmissíveis porque, quanto a isso, azar de quem pegasse uma gonorreia ou tivesse o púbis invadido por aqueles insetos anapluros, da família dos pediculídeos, popularmente conhecidos como chatos. Caía na vala comum da exclusão, vítima do preconceito”, registrou o ministro Vidigal.

“Essas danações todas se inseriam no conceito de pudor público que nosso Código Penal, ainda em vigor, buscava tutelar. Mulher sensual era coisa do capeta”, votou. Ele citou figuras feministas como Pagu e Anaíde Beiriz, a luta judicial do editor da revista pornográfica Hustler contra a censura nos Estados Unidos e as campanhas governamentais pelo uso da camisinha.

“O Código Penal, como disse, é de 1940; é um decreto-lei de uma ditadura, é sempre bom lembrar. A Constituição da República, que está em vigor, é de 1988. Nesse interregno, o mundo conheceu guerras, isolou o átomo, explodiu a bomba atômica; varreu intolerâncias ideológicas e regimes totalitários; descobriu a penicilina; clonou plantas e animais; venceu tabus”, argumentou ainda o ministro.

“Já são fiapos na memória o escândalo da minissaia de Mary Quant e a ousadia dos Beatles, a banda de cabeludos rompendo com a estética do som e da poesia das letras até então predominantes. Depois o biquíni de Brigite Bardot no festival de Cannes, na França; o monoquíni de Monique Evans já nas praias de Copacabana; a gravidez escancarada de Leila Diniz, em Ipanema, a tanga, o topless etc.”, completou.

“Tenho que ler a lei e interpretá-la conforme as realidades sociais em derredor. Não devo consentir que a engrenagem estatal, a polícia, o Ministério Público, o Judiciário, que custam muito dinheiro ao contribuinte, se ocupem ou sejam ocupados de maneira perdulária, tocando inquéritos ou processos que, depois de muito tempo, acabam dando em nada exatamente em razão da evidência, notada logo no primeiro momento, como neste caso, de que não há crime algum a apurar, a processar, a punir”, concluiu.

O voto foi acompanhado pelos ministros Felix Fischer e Gilson Dipp, que divergiram do relator, ministro José Arnaldo da Fonseca, que mantinha o processo por entender inviável, no caso, trancar o inquérito por meio de habeas corpus.

Fonte: Site do STJ

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