Pesquisar este blog

segunda-feira, abril 9

Sétima Câmara Criminal diz que vulnerabilidade é relativa

Decisão recente do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul traz entendimento sobre a relatividade no conceito de vulnerável estabelecido no artigo 217-A(*) do Código Penal Brasileiro.

Talvez essa seja,  senão a primeira, uma das primeiras decisões de 2ª instância versando sobre tema polêmico que se instaurou por ocasião da reforma penal introduzida pela Lei 12015/09, mesmo registrando voto divergente do Des. Sylvio Batista Neto.

Leia, abaixo, o Acórdão que, pela relevância, vai publicado integralmente na zona de postagem. 

(*) Art. 217-A - Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14(catorze) anos:
Pena - Reclusão, de 8 a 15 anos,


ACÓRDÃO
Nº 70046185104
2011/CRIME


APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ESTUPRO DE VULNERÁVEL. relação de namoro entre vítima e réu. RELATIVIZAÇÃO DO CONCEITO DE VULNERABILIDADE. Rejeição da denúncia. Ausência de justa causa para a ação penal. 
A vulnerabilidade da vítima – tal como disposta no art. 217-A do Código Penal – não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério etário – o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva –, devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de suas particularidades. Afigura-se factível, assim, sua relativização nos episódios envolvendo adolescentes.
No caso em tela, dos elementos colhidos durante a fase inquisitória, principalmente do depoimento da vítima, extrai-se que esta (adolescente com 13 anos de idade) e o réu mantiveram relacionamento amoroso por determinado período, no qual ocorreram relações sexuais voluntárias e consentidas.
Frente a tal realidade, impõe-se a confirmação da decisão que rejeitou a denúncia por ausência de justa causa para a ação penal.
APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA.

Apelação Crime

Sétima Câmara Criminal
Nº 70046185104

Comarca de Santo Antônio das Missões
M.P.
..
APELANTE
F.S.G.
..
APELADO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em negar provimento à apelação, vencido o Presidente que a provia.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes Senhores Des. Sylvio Baptista Neto (Presidente) e Des. José Conrado Kurtz de Souza.
Porto Alegre, 08 de março de 2012.
  
DES.ª NAELE OCHOA PIAZZETA,
Relatora.

RELATÓRIO
Des.ª Naele Ochoa Piazzeta (RELATORA)
O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra F.S.G. (nascido em 14-01-1979 – fl. 11), com 32 anos de idade à época do fato, como incurso nas sanções do art. 217-A, caput, do Código Penal, pelo fato assim narrado na peça acusatória:
“[...]
Em datas e horários diversos, nos meses de abril e junho de 2011, na residência pertencente ao acusado, sita na localidade do Rincão do Sarmento, Município de Garrunchos/RS, o denunciado F. S. G., por diversas vezes, teve conjunção carnal com F. F. S., adolescente, com apenas 13 anos de idade à época dos fatos.
Nas oportunidades, o denunciado, com 32 anos de idade à época, após diversos encontros libidinosos com a ofendida, e aproveitando-se da ingenuidade da adolescente, levou-a para a residência dele, onde então passava a tirar a roupa da vítima e a sua, e em seguida mantinha relação sexual com a ofendida.
[...]”
O magistrado singular rejeitou a exordial acusatória por ausência de justa causa para a ação penal (art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal) (fl. 20-v).
O Ministério Público interpôs recurso de apelação (fl. 22).
Em suas razões, a acusação pleiteia o recebimento da denúncia, aduzindo que a conduta do agente reveste-se de tipicidade e que, para a configuração do delito, é irrelevante o consentimento da vítima (fls. 23-35).
O acusado foi intimado pessoalmente (fl. 38) e optou por não apresentar contrarrazões recursais.
Vieram os autos a esta Corte, manifestando-se o ilustre Procurador de Justiça, Delmar Pacheco da Luz, pelo provimento da apelação ministerial (fls. 41-42v).
Conclusos para julgamento.
VOTOS
Des.ª Naele Ochoa Piazzeta (RELATORA)
Eminentes Colegas.
Trata-se de recurso de apelação interposto contra a decisão que rejeitou denúncia por ausência de justa causa para a ação penal.
Pretende o Ministério Público a reforma da decisão, com o prosseguimento do feito.
Com a devida vênia ao entendimento do agente ministerial, a decisão não comporta reparos.
Na fase inquisitória, a genitora da vítima registrou ocorrência policial, narrando que, certa feita, sua filha não retornou da escola, tendo-a encontrado, posteriormente, na residência do acusado, com o qual aquela estaria mantendo relacionamento amoroso por cerca de um mês. Consta, ainda, que a menina teria confirmado a ocorrência de relação sexual em tal ocasião.
A ofendida, por seu turno, relatou que conheceu o acusado em um mercado, sendo que começaram a “ficar”. Disse que, depois de um mês, começaram a manter relações sexuais, sempre em encontros realizados na casa do réu. Frisou que todas as relações foram mantidas por livre e espontânea vontade, nunca tendo sido forçada a tanto. Afirmou que não era mais virgem quando do início do relacionamento. Declarou gostar do denunciado, com quem pretendia casar. Salientou desconhecer o motivo pelo qual sua mãe seria contra o relacionamento, apontando que o acusado chegou a ir a sua casa e pedir permissão para namorá-la, o que foi negado pela genitora. Alegou que, após o episódio em que policiais militares estiveram na casa do acusado, não manteve mais contato com este.
O denunciado, a seu turno, preferiu exercer seu direito ao silêncio.
Esses são os elementos aportados ao inquérito policial.
Antes de adentrar em sua análise, é necessário recordar que os fatos ocorreram na vigência da Lei nº 12.015/2009, que tornou típica a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, criando a figura do “estupro de vulnerável” – art. 217-A do Código Penal.
Embora tal norma tenha revogado o art. 224 do Diploma Material – que tratava da presunção de violência quando a vítima era menor de 14 anos –, a nova realidade permite a verificação do alcance do conceito de vulnerabilidade. Esta não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério etário, o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva, devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de suas particularidades. 
Como bem apregoa Guilherme de Souza Nucci, a vulnerabilidade “deve ser compreendida de forma restrita e casuisticamente, tendo como essência a fragilidade e a incapacidade física ou mental da vítima, na situação concreta, para consentir com a prática do ato sexual”.[1]
E arremata:
“[...] em cumprimento aos princípios norteadores do direito penal, não basta a comprovação da idade para a tipificação do crime de estupro de vulnerável, uma vez que o critério etário não é absoluto. A melhor solução reside na aferição casuística do grau de maturidade sexual e desenvolvimento mental do suposto ofendido, para definir se é ou não vunerável, aplicando-se a lei de maneira mais justa ao caso concreto.”[2]

O doutrinador Paulo Queiroz segue a mesma trilha, assim tratando do tema:
“[...] a proteção penal não pode ter lugar quando for perfeitamente possível uma autoproteção por parte do próprio indivíduo, sob pena de violação ao princípio de lesividade.
Finalmente, a iniciação sexual na adolescência não é necessariamente nociva, motivo pelo qual a presumida nocividade constitui, em verdade, um preconceito moral.
Assim, ao menos em relação a adolescentes (maiores de doze anos), é razoável admitir-se prova em sentido contrário ao estado de vulnerabilidade, de modo a afastar a imputação de crime sempre que se provar que, em razão de maturidade (precoce), o indivíduo de fato não sofreu absolutamente constrangimento ilegal algum, inclusive porque lhe era perfeitamente possível resistir, sem mais, ao ato.”[3]

À vista de tais noções, analisadas em conjunto com as definições de criança e de adolescente conferidas pela Lei nº 8.069/90, entendo pela viabilidade da relativização da vulnerabilidade nos casos envolvendo adolescentes – faixa entre 12 e 14 anos de idade.
No caso dos autos, do depoimento da ofendida extrai-se que as relações ocorreram de forma voluntária e consentida, fruto de aliança afetiva. Além disso, ainda conforme seus dizeres, a mesma mantinha relações sexuais desde os 11 anos de idade, sendo que teria perdido a virgindade com parceiro diverso, peculiaridade que indica certa experiência em assuntos de tal natureza.
Ademais, conforme o auto de exame de corpo de delito da fl. 06, inexistem quaisquer sinais de alienação, debilidade mental ou mesmo de violência praticada contra a vítima.
Com olhos em tal realidade, tenho que o caso em apreço permite a relativização do conceito de vulnerabilidade.
Assim, considerando que a prova indiciária aponta a existência de relacionamento amoroso e sexual consentido, envolvendo adolescente que não se amolda ao conceito de vulnerável, tenho por acertada a decisão proferida pelo julgador singular Márcio Roberto Muller, no sentido da inexistência de justa causa para a ação penal.
Apreciando caso similar, embora ainda sob a égide da legislação anterior, colaciono precedente desta Corte:

ESTUPRO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA. IMPOSSIBILIDADE. - Se os fatos revelam não haver justa causa para o recebimento da denúncia, caso dos autos, deve ser mantida a decisão que a rejeitou. Embora provado, cronologicamente, ser menor, aparente a violência ficta, não se vislumbra quando a jovem é livre, sem qualquer resquício de ingenuidade, voluntariamente mantem a relação sexual. APELO IMPROVIDO. (Apelação Crime Nº 70005403993, Câmara Especial Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elba Aparecida Nicolli Bastos, Julgado em 29/07/2004)

Por tais fundamentos, nego provimento à apelação.
  
Des. José Conrado Kurtz de Souza (REVISOR) - De acordo com a Relatora.

Des. Sylvio Baptista Neto (PRESIDENTE)
Divergindo da ilustre Relatora, vou dar provimento ao apelo. A modificação legislativa, criada com inteligência e propriedade, estabelece que será crime a prática de atos sexuais com menores de quatorze anos, independentemente da concordância do ou da menor para tanto (artigo 217-A: ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos).

Terminou a difícil indagação sobre a capacidade do ou da menor em consentir com o ato; se ele era capaz ou não de prever o alcance da situação etc. Agora, a questão é puramente de fato: se o ou a menor não tem quatorze anos, haverá o crime.
 Tanto assim o é que o artigo 224 do Código Penal que tratava da presunção da violência (presume-se a violência, se a vítima: a) não é maior de quatorze anos...) e que permitia a indagação feita pela colega na hora de punir ou não o agente que se relacionava sexualmente com a vítima através do estupro ou do atentado violento ao pudor, foi revogado.
 Assim, nos termos supra, dou provimento ao apelo.
  
DES. SYLVIO BAPTISTA NETO - Presidente - Apelação Crime nº 70046185104, Comarca de Santo Antônio das Missões: "POR MAIORIA, NEGARAM PROVIMENTO À APELAÇÃO, VENCIDO O PRESIDENTE QUA A PROVIA"
  
Julgador(a) de 1º Grau: MARCIO ROBERTO MüLLER
[1] NUCCI, Guilherme de Souza et al. O crime de estupro sob o prisma da lei 12.015/2009 (arts. 213 e 217-A do CP). Revista dos Tribunais: São Paulo, v. 902, p. 395-422, dez. 2010. p. 411.
[2] Op cit. p. 415.
[3] QUEIROZ, Paulo. Do estupro. Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/do-estupro/>.    Acesso em 22 fev 2012. 


Nenhum comentário: