Talvez essa seja, senão a primeira, uma das primeiras decisões de 2ª instância versando sobre tema polêmico que se instaurou por ocasião da reforma penal introduzida pela Lei 12015/09, mesmo registrando voto divergente do Des. Sylvio Batista Neto.
Leia, abaixo, o Acórdão que, pela relevância, vai publicado integralmente na zona de postagem.
(*) Art. 217-A - Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14(catorze) anos:
Pena - Reclusão, de 8 a 15 anos,
ACÓRDÃO
Nº 70046185104
2011/CRIME
APELAÇÃO CRIME. CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL. ESTUPRO
DE VULNERÁVEL. relação de namoro entre vítima e réu. RELATIVIZAÇÃO DO CONCEITO
DE VULNERABILIDADE. Rejeição da denúncia. Ausência de justa causa para a ação
penal.
A vulnerabilidade da vítima – tal como disposta no art. 217-A do Código
Penal – não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente pelo critério
etário – o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva –, devendo
ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à vista de
suas particularidades. Afigura-se factível, assim, sua relativização nos
episódios envolvendo adolescentes.
No caso em tela, dos elementos colhidos durante a fase inquisitória,
principalmente do depoimento da vítima, extrai-se que esta (adolescente com 13
anos de idade) e o réu mantiveram relacionamento amoroso por determinado
período, no qual ocorreram relações sexuais voluntárias e consentidas.
Frente a tal realidade, impõe-se a confirmação da decisão que rejeitou a
denúncia por ausência de justa causa para a ação penal.
APELAÇÃO DESPROVIDA, POR MAIORIA.
Apelação Crime
|
Sétima Câmara
Criminal
|
Nº 70046185104
|
Comarca de
Santo Antônio das Missões
|
M.P.
..
|
APELANTE
|
F.S.G.
..
|
APELADO
|
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Sétima Câmara
Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, por maioria, em negar provimento à
apelação, vencido o Presidente que a provia.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além da signatária, os eminentes
Senhores Des. Sylvio Baptista Neto (Presidente) e Des. José Conrado Kurtz de
Souza.
Porto Alegre, 08 de março de 2012.
DES.ª NAELE OCHOA
PIAZZETA,
Relatora.
RELATÓRIO
Des.ª Naele Ochoa Piazzeta (RELATORA)
O MINISTÉRIO PÚBLICO ofereceu denúncia contra F.S.G.
(nascido em 14-01-1979 – fl. 11), com 32 anos de idade à época do fato, como incurso nas sanções do
art. 217-A, caput, do Código Penal,
pelo fato assim narrado na peça acusatória:
“[...]
Em datas e horários diversos, nos meses de abril e junho de 2011, na
residência pertencente ao acusado, sita na localidade do Rincão do Sarmento,
Município de Garrunchos/RS, o denunciado F. S. G., por diversas vezes, teve
conjunção carnal com F. F. S., adolescente, com apenas 13 anos de idade à época
dos fatos.
Nas oportunidades, o denunciado, com 32 anos de idade à época, após
diversos encontros libidinosos com a ofendida, e aproveitando-se da ingenuidade
da adolescente, levou-a para a residência dele, onde então passava a tirar a
roupa da vítima e a sua, e em seguida mantinha relação sexual com a ofendida.
[...]”
O magistrado
singular rejeitou a exordial acusatória por ausência de justa causa para a ação
penal (art. 395, inciso III, do Código de Processo Penal) (fl. 20-v).
O Ministério
Público interpôs recurso de apelação (fl. 22).
Em suas razões,
a acusação pleiteia o recebimento da denúncia, aduzindo que a conduta do agente
reveste-se de tipicidade e que, para a configuração do delito, é irrelevante o
consentimento da vítima (fls. 23-35).
O acusado foi
intimado pessoalmente (fl. 38) e optou por não apresentar contrarrazões
recursais.
Vieram os autos
a esta Corte, manifestando-se o ilustre Procurador de Justiça, Delmar Pacheco
da Luz, pelo provimento da apelação ministerial (fls. 41-42v).
Conclusos para julgamento.
VOTOS
Des.ª Naele Ochoa Piazzeta (RELATORA)
Eminentes Colegas.
Trata-se de recurso de apelação interposto contra a
decisão que rejeitou denúncia por ausência de justa causa para a ação penal.
Pretende o Ministério Público a reforma da decisão, com
o prosseguimento do feito.
Com a devida vênia ao entendimento do agente
ministerial, a decisão não comporta reparos.
Na fase inquisitória, a genitora da vítima registrou
ocorrência policial, narrando que, certa feita, sua filha não retornou da
escola, tendo-a encontrado, posteriormente, na residência do acusado, com o
qual aquela estaria mantendo relacionamento amoroso por cerca de um mês.
Consta, ainda, que a menina teria confirmado a ocorrência de relação sexual em
tal ocasião.
A ofendida, por seu turno, relatou que conheceu o
acusado em um mercado, sendo que começaram a “ficar”. Disse que, depois de um
mês, começaram a manter relações sexuais, sempre em encontros realizados na
casa do réu. Frisou que todas as relações foram mantidas por livre e espontânea
vontade, nunca tendo sido forçada a tanto. Afirmou que não era mais virgem
quando do início do relacionamento. Declarou gostar do denunciado, com quem
pretendia casar. Salientou desconhecer o motivo pelo qual sua mãe seria contra
o relacionamento, apontando que o acusado chegou a ir a sua casa e pedir
permissão para namorá-la, o que foi negado pela genitora. Alegou que, após o
episódio em que policiais militares estiveram na casa do acusado, não manteve
mais contato com este.
O denunciado, a seu turno, preferiu exercer seu direito
ao silêncio.
Esses são os elementos aportados ao inquérito policial.
Antes de adentrar em sua análise, é necessário recordar
que os fatos ocorreram na vigência da Lei nº 12.015/2009, que tornou típica a
conduta de “ter conjunção carnal ou
praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos”, criando a
figura do “estupro de vulnerável” – art. 217-A do Código Penal.
Embora tal norma tenha revogado o art. 224 do Diploma
Material – que tratava da presunção de violência quando a vítima era menor de
14 anos –, a nova realidade permite a verificação do alcance do conceito de
vulnerabilidade. Esta não pode ser entendida de forma absoluta simplesmente
pelo critério etário, o que configuraria hipótese de responsabilidade objetiva,
devendo ser mensurada em cada caso trazido à apreciação do Poder Judiciário, à
vista de suas particularidades.
Como bem apregoa Guilherme de Souza Nucci, a
vulnerabilidade “deve ser compreendida de
forma restrita e casuisticamente, tendo como essência a fragilidade e a
incapacidade física ou mental da vítima, na situação concreta, para consentir
com a prática do ato sexual”.[1]
E arremata:
“[...] em cumprimento aos
princípios norteadores do direito penal, não basta a comprovação da idade para
a tipificação do crime de estupro de vulnerável, uma vez que o critério etário
não é absoluto. A melhor solução reside na aferição casuística do grau de
maturidade sexual e desenvolvimento mental do suposto ofendido, para definir se
é ou não vunerável, aplicando-se a lei de maneira mais justa ao caso concreto.”[2]
O doutrinador Paulo Queiroz segue a mesma trilha, assim
tratando do tema:
“[...] a proteção penal não pode
ter lugar quando for perfeitamente possível uma autoproteção por parte do
próprio indivíduo, sob pena de violação ao princípio de lesividade.
Finalmente, a iniciação sexual na
adolescência não é necessariamente nociva, motivo pelo qual a presumida
nocividade constitui, em verdade, um preconceito moral.
Assim, ao menos em relação a
adolescentes (maiores de doze anos), é razoável admitir-se prova em sentido
contrário ao estado de vulnerabilidade, de modo a afastar a imputação de crime
sempre que se provar que, em razão de maturidade (precoce), o indivíduo de fato
não sofreu absolutamente constrangimento ilegal algum, inclusive porque lhe era
perfeitamente possível resistir, sem mais, ao ato.”[3]
À vista de tais noções, analisadas em conjunto com as
definições de criança e de adolescente conferidas pela Lei nº 8.069/90, entendo
pela viabilidade da relativização da vulnerabilidade nos casos envolvendo
adolescentes – faixa entre 12 e 14 anos de idade.
No caso dos autos, do depoimento da ofendida extrai-se que
as relações ocorreram de forma voluntária e consentida, fruto de aliança
afetiva. Além disso, ainda conforme seus dizeres, a mesma mantinha relações
sexuais desde os 11 anos de idade, sendo que teria perdido a virgindade com
parceiro diverso, peculiaridade que indica certa experiência em assuntos de tal
natureza.
Ademais, conforme o auto de exame de corpo de delito da
fl. 06, inexistem quaisquer sinais de alienação, debilidade mental ou mesmo de violência
praticada contra a vítima.
Com olhos em tal realidade, tenho que o caso em apreço
permite a relativização do conceito de vulnerabilidade.
Assim, considerando que a prova indiciária aponta a
existência de relacionamento amoroso e sexual consentido, envolvendo
adolescente que não se amolda ao conceito de vulnerável, tenho por acertada a
decisão proferida pelo julgador singular Márcio Roberto Muller, no sentido da
inexistência de justa causa para a ação penal.
Apreciando caso similar, embora ainda sob a égide da
legislação anterior, colaciono precedente desta Corte:
ESTUPRO. REJEIÇÃO DA DENÚNCIA.
IMPOSSIBILIDADE. - Se os fatos revelam não haver justa causa para o recebimento
da denúncia, caso dos autos, deve ser mantida a decisão que a rejeitou. Embora
provado, cronologicamente, ser menor, aparente a violência ficta, não se
vislumbra quando a jovem é livre, sem qualquer resquício de ingenuidade,
voluntariamente mantem a relação sexual. APELO IMPROVIDO. (Apelação Crime Nº
70005403993, Câmara Especial Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elba
Aparecida Nicolli Bastos, Julgado em 29/07/2004)
Por tais fundamentos, nego provimento à apelação.
Des. José Conrado Kurtz de Souza (REVISOR) - De
acordo com a Relatora.
Des. Sylvio Baptista Neto (PRESIDENTE)
Divergindo da ilustre Relatora, vou dar provimento ao
apelo. A modificação legislativa, criada com inteligência e propriedade,
estabelece que será crime a prática de atos sexuais com menores de quatorze
anos, independentemente da concordância do ou da menor para tanto (artigo 217-A: ter conjunção carnal ou
praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos).
Terminou a difícil indagação sobre a capacidade do ou
da menor em consentir com o ato; se ele era capaz ou não de prever o alcance da
situação etc. Agora, a questão é puramente de fato: se o ou a menor não tem
quatorze anos, haverá o crime.
DES. SYLVIO BAPTISTA NETO - Presidente - Apelação
Crime nº 70046185104, Comarca de Santo Antônio das Missões: "POR MAIORIA, NEGARAM
PROVIMENTO À APELAÇÃO, VENCIDO O PRESIDENTE QUA A PROVIA"
Julgador(a) de 1º Grau: MARCIO ROBERTO MüLLER
[1]
NUCCI, Guilherme de Souza et al. O crime de estupro sob o prisma da lei
12.015/2009 (arts. 213 e 217-A do CP). Revista dos Tribunais: São Paulo, v.
902, p. 395-422, dez. 2010. p. 411.
[2]
Op cit. p. 415.
[3]
QUEIROZ, Paulo. Do estupro.
Disponível em: <http://pauloqueiroz.net/do-estupro/>. Acesso em 22 fev 2012.
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