ROGÉRIO SANCHES CUNHA* (@RogerioSanchesC)
LUIZ FLÁVIO GOMES *(@professorLFG)
A Constituição Federal garante que o civilmente identificado
não será submetido à identificação criminal, salvo nas hipóteses previstas em
lei (art. 5º, LVIII).
Regulamentando a ressalva constitucional, primeiro nasceu a
Lei 9.034/95:
“Art. 5º A identificação criminal de pessoas envolvidas com
a ação praticada por organizações criminosas será realizada independentemente
da identificação civil”.
Em seguida veio a Lei 10.054/00:
“Art. 3o O civilmente identificado por documento original
não será submetido à identificação criminal, exceto quando: I – estiver
indiciado ou acusado pela prática de homicídio doloso, crimes contra o
patrimônio praticados mediante violência ou grave ameaça, crime de receptação
qualificada, crimes contra a liberdade sexual ou crime de falsificação de
documento público; II – houver fundada suspeita de falsificação ou adulteração
do documento de identidade; III – o estado de conservação ou a distância temporal
da expedição de documento apresentado impossibilite a completa identificação
dos caracteres essenciais; IV – constar de registros policiais o uso de outros
nomes ou diferentes qualificações; V – houver registro de extravio do documento
de identidade; VI – o indiciado ou acusado não comprovar, em quarenta e oito
horas, sua identificação civil”.
Ambas foram revogadas pela Lei 12.037/09 que, no seu art.
3º, anuncia:
“Art. 3º Embora apresentado documento de identificação,
poderá ocorrer identificação criminal quando: I – o documento apresentar rasura
ou tiver indício de falsificação; II – o documento apresentado for insuficiente
para identificar cabalmente o indiciado; III – o indiciado portar documentos de
identidade distintos, com informações conflitantes entre si; IV – a
identificação criminal for essencial às investigações policiais, segundo
despacho da autoridade judiciária competente, que decidirá de ofício ou
mediante representação da autoridade policial, do Ministério Público ou da
defesa (destacamos); V – constar de registros policiais o uso de outros nomes
ou diferentes qualificações; VI – o estado de conservação ou a distância
temporal ou da localidade da expedição do documento apresentado impossibilite a
completa identificação dos caracteres essenciais”.
Nesses casos, portanto, a identificação civil, por meio de
documentos ordinários (carteira de identidade, carteira de trabalho, carteira
profissional, passaporte, carteira de identificação funcional outro documento
público que permita a identificação), é acompanhada de identificação criminal,
leia-se, papiloscópica (que se utiliza das papilas, das curvaturas facilmente
observadas em nossa pele), bem como a fotográfica.
Com o advento da Lei 12.654, de 28 maio de 2012 (com vacatio
de 180 dias), ao art. 5º da Lei 12.037/09 foi acrescido um parágrafo,
autorizando, nas hipóteses do art. 3º, inc. IV (essencial para a investigação
criminal), a coleta de material biológico para a obtenção do perfil genético do
investigado.
“Art. 5o ……………………………………………………………..
Parágrafo único. Na hipótese do inciso IV do art. 3o, a
identificação criminal poderá incluir a coleta de material biológico para a
obtenção do perfil genético.”
O espírito que norteou a nova lei certamente foi o de que a
identificação papiloscópica (ou mesma a fotográfica) nem sempre é certa, única
e inconfundível, podendo ser modificada ou apagada por meio de cirurgia ou ação
do tempo (idade). Criou-se, então, a possibilidade de a autoridade se valer da
genética forense, área que trata da utilização dos conhecimentos e das técnicas
de genética e de biologia molecular no auxílio à justiça.
Apesar de ignorada no Direito Criminal, a identificação
humana pelo DNA já vinha sendo aplicada em larga escala nos testes de
paternidade, estudo que alcança a impressão digital do DNA do indivíduo,
revelando seu código genético (único e inconfundível).
A redação do artigo não deixa dúvidas de que se trata de
instrumento facultativo, cabendo ao Magistrado julgar sua necessidade diante do
caso concreto, podendo agir de ofício ou mediante provocação da autoridade
policial, do Ministério Público ou da defesa.
A possibilidade de o juiz, ainda na fase de inquérito
policial, poder agir de ofício, será, obviamente, palco de críticas, mesmo
porque, ao que tudo indica, a identificação genética servirá, quase sempre, na
apuração da autoria. A tendência do sistema acusatório é o magistrado ficar
equidistante na fase extraprocessual, postura seguida pela Lei 12.403/11 que o
proibiu de decretar preventiva na etapa da investigação.
O uso e armazenamento desses dados foram objetos de
preocupação do legislador que, nos arts. 5º-A e 7º-A, acrescidos à Lei
12.037/09, dispõe:
“Art. 5º-A. Os dados relacionados à coleta do perfil
genético deverão ser armazenados em banco de dados de perfis genéticos,
gerenciado por unidade oficial de perícia criminal.
§ 1º As informações genéticas contidas nos bancos de dados
de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos ou comportamentais das
pessoas, exceto determinação genética de gênero, consoante as normas
constitucionais e internacionais sobre direitos humanos, genoma humano e dados
genéticos.
§ 2º Os dados constantes dos bancos de dados de perfis
genéticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e
administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins
diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial.
§ 3º As informações obtidas a partir da coincidência de
perfis genéticos deverão ser consignadas em laudo pericial firmado por perito
oficial devidamente habilitado.”
“Art. 7º-A. A exclusão dos perfis genéticos dos bancos de
dados ocorrerá no término do prazo estabelecido em lei para a prescrição do
delito.” “Art. 7o-B. A identificação do perfil genético será armazenada em
banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder
Executivo.”
Por fim, a Lei 12.654/12 acrescentou o art. 9º-A (com dois
parágrafos) à Lei de Execução Penal:
“Art. 9º-A. Os condenados por crime praticado, dolosamente,
com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos crimes
previstos no art. 1º da Lei no 8.072, de 25 de julho de 1990, serão submetidos,
obrigatoriamente, à identificação do perfil genético, mediante extração de DNA
– ácido desoxirribonucleico, por técnica adequada e indolor.
§ 1º A identificação do perfil genético será armazenada em
banco de dados sigiloso, conforme regulamento a ser expedido pelo Poder
Executivo.
§ 2º A autoridade policial, federal ou estadual, poderá
requerer ao juiz competente, no caso de inquérito instaurado, o acesso ao banco
de dados de identificação de perfil genético.”
Percebe-se que, no caso dos condenados por crime praticado,
dolosamente, com violência de natureza grave contra pessoa, ou por qualquer dos
crimes etiquetados como hediondos ou equiparados, a identificação do perfil
genético é obrigatória, mediante extração de DNA, devendo seguir técnica
adequada e indolor.
Chama a atenção que, nesses delitos, a identificação
genética do condenado não serve para qualquer investigação criminal em curso
(podendo subsidiar investigação futura), muito menos para esclarecer dúvida
eventualmente gerada pela identificação civil (ou mesmo datiloscópica), tendo
como fim principal abastecer banco de dados sigiloso, a ser regulamentado pelo
Poder Executivo.
A inovação, nesse ponto específico (obrigatoriedade do
fornecimento de material), nos parece inconstitucional (enquanto enfocada como
obrigatoriedade no fornecimento de material genético).
A Carta Maior elenca, no art. 5º, como garantias
fundamentais de todo cidadão:
a) não ser considerado culpado até o trânsito em julgado de
sentença penal condenatória (LVII);
b) quando preso, ser informado de seus direitos, entre os
quais o de permanecer calado… (LXIII).
Dessas garantias constitucionais resulta (por meio do
princípio da interpretação efetiva) outra, qual seja, de não produzir prova
contra si (nemo tenetur se detegere), direito implícito na CF/88 e expresso no
art. 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos (toda pessoa tem direito de
não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada), da qual
o Brasil é signatário.
Diante desse quadro, ao se obrigar alguém a fornecer
material para traçar seu perfil genético, mesmo que de forma indolor, é
constrangê-lo a produzir prova contra si mesmo.
Deve ser lembrado que a mesma discussão foi travada com a
edição da “Lei Seca”, tendo o STJ decidido (seguindo precedentes do STF) que o
motorista não pode ser obrigado a participar do “teste do bafômetro” ou
fornecer material para exame de sangue, sob pena de violar a garantia da não
auto-acusação.
Conclusão: o condenado (ou investigado ou acusado) pode se
recusar a fornecer o material para a identificação do seu perfil genético.
Alertamos, no entanto, que o Estado não está impedido de
usar vestígios para colher material útil na identificação do indivíduo, como
aconteceu no emblemático caso “Pedrinho”, criança sequestrada no hospital em
que nasceu, tendo o crime se mantido oculto por décadas.
Apesar de os envolvidos terem negado fornecer material (DNA)
para a investigação, Roberta Jamily, irmã de Pedrinho e também suspeita de ter
sido sequestrada quando criança, depois de ouvida na Delegacia, deixou resto de
cigarro no cinzeiro do Distrito Policial. O delegado recolheu o material
(contendo a saliva de Roberta) e o encaminhou à perícia técnica fazer o exame
de DNA. O resultado do exame confirmou que Roberta não era filha de Vilma, a
mulher que a criou. Solucionou-se o mistério: Vilma sequestrou seus “filhos”.
O exame de DNA, obtido sem o consentimento de Roberta foi
contestado pela defesa, mas julgado válido pelos Tribunais.
Partes desintegradas do corpo humano: não há, nesse caso,
nenhum obstáculo para sua apreensão e verificação (ou análise ou exame). São
partes do corpo humano (vivo) que já não pertencem a ele. Logo, todas podem ser
apreendidas e submetidas a exame normalmente, sem nenhum tipo de consentimento
do agente ou da vítima. O caso Roberta Jamile (o delegado se valeu, para o
exame do DNA, da saliva dela que se achava nos cigarros fumados e jogados fora
por ela) assim como o caso Glória Trevi (havia suspeita de que essa contora
mexicana, que ficou grávida, tinha sido estuprada dentro do presídio;
aguardou-se o nascimento do filho e o DNA foi feito utilizando-se a placenta
desintegrada do corpo dela) são emblemáticos: a prova foi colhida (obtida) em
ambos os casos de forma absolutamente lícita (legítima) (cf. Castanho Carvalho
e, quanto ao último caso, STF, Recl. 2.040-DF, rel. Min. Néri da Silveira, j.
21.02.02).
Não se pode ignorar, de outro lado, que o art. 6º do CPP não
só determina o isolamento do local para que não haja alteração ou supressão de
nenhuma prova, mas também dispensa o consentimento de quem quer que seja na
coleta e exames dos vestígios do crime.
* Professor da Escola Superior do MP-SP. Professor de Direito penal e
Processo penal na Rede de Ensino Luiz Flávio Gomes – Rede LFG e Promotor de
Justiça em São Paulo.
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