O relator da Ação Penal (AP) 470, ministro Joaquim Barbosa,
disse, nesta quinta-feira (16), na primeira parte da leitura do seu voto, que
estão “claramente caracterizados” os crimes de corrupção ativa e peculato por
parte do empresário Marcos Valério Fernandes de Souza e de seus sócios na SMP&B,
Cristiano de Mello Paz e Ramon Hollerbach Cardoso, e de corrupção passiva,
lavagem de dinheiro e peculato, por parte do ex-presidente da Câmara, deputado
João Paulo Cunha (PT-SP).
Em seu voto, o relator afirmou que o grupo de Marcos Valério
encaminhou, em 4 de setembro de 2003, dia seguinte a um encontro que teve com o
então presidente da Câmara, a importância de R$ 50 mil em espécie para João
Paulo Cunha, valor este sacado, na mesma data, na agência do Banco Rural no
Brasília Shopping, na capital federal, pela esposa de João Paulo.
Ainda segundo o ministro, 11 dias depois disso, João Paulo,
então presidente da Câmara, assinou edital de abertura de licitação para
contratação de empresa de publicidade para cuidar do marketing da Câmara e, em
seguida, nomeado uma comissão especial de licitação para escolher a vencedora. Tal comissão teria
beneficiado a SMP&B, embora a empresa não atendesse aos principais
requisitos do edital e não comprovasse ter a mesma qualificação das
concorrentes, o que, segundo o ministro, teria sido admitido por membros da
própria comissão de licitação, conforme consta nos autos.
Posteriormente, ainda segundo o ministro-relator, João Paulo
Cunha teria acompanhado pessoalmente a execução do contrato com a SMP&B,
efetuando a liberação de um total de R$ 10,745 milhões, embora a empresa de
Marcos Valério somente tivesse executado serviços equivalentes a R$ 17.091,00.
Isso porque a empresa teria subcontratado toda a parte restante dos serviços.
Segundo o ministro-relator, não procede a explicação dada
por João Paulo Cunha de que o dinheiro seria oriundo da tesouraria do PT, por
ordem do então tesoureiro do partido Delúbio Soares, e se destinaria a custear
a campanha eleitoral em Osasco (SP), área de atuação de João Paulo Cunha. Isso
porque os recursos foram transferidos um ano antes das eleições. “O emprego do
dinheiro é mero exaurimento da corrupção passiva”, afirmou o relator.
Além disso, segundo ele, a alegação não se coaduna com a
prática de Delúbio, que costumava repassar verba de campanha diretamente para
os diretórios do PT.
Tampouco, segundo o ministro, convence-o o argumento de que
João Paulo Cunha desconhecia a origem do dinheiro. E isso teria ficado
comprovado pela tentativa do deputado de esconder o episódio, negando
inicialmente o recebimento. Depois, quando ficou claro que sua esposa estivera
no Banco Rural na data do saque, disse que ela tinha ido resolver um problema
relacionado à cobrança de assinatura de TV a cabo. E que o saque teria sido
registrado em nome da SMP&B, e não no seu.
Posteriormente, no entanto, ainda segundo o relator, uma
investigação, feita a partir de quebras do sigilo bancário do deputado e das
empresas de Marcos Valério, comprovou que houve uma mensagem interna do Banco
Rural a sua agência de Brasília, informando que o dinheiro deveria ser entregue
à esposa de João Paulo Cunha. E as investigações mostraram, segundo o ministro,
que ela assinou um recibo, no qual consta a origem do dinheiro.
Corrupção ativa
O ministro afirmou que ficou caracterizado que os sócios de
Marcos Valério, Cristiano Paz e Ramon Hollerbach, praticaram o crime de
corrupção ativa, e citou uma série de depoimentos mostrando a participação
deles em reuniões com dirigentes do PT e com João Paulo Cunha para tratar dos
contratos de publicidade com a Câmara e órgãos do governo. Ele afastou, com
isso, alegação do advogado de Hollerbach de que ele seria um homem dedicado a
trabalhos internos na agência de publicidade, nada tendo a ver com contatos externos.
Entre outros, conforme afirmou, Ramon Hollerbach se encontrou com o então chefe
da Secretaria de Comunicação Social
(Secom) da Câmara dos Deputados, Márcio Marques de Araújo, para tratar do
contrato com as agências do grupo de Marcos Valério.
Lavagem de dinheiro
Quanto à acusação de lavagem de dinheiro (artigo 1º da Lei
9.613/98) imputada ao então presidente da Câmara João Paulo Cunha pelo
procurador-geral da República, o ministro Joaquim Barbosa considerou
caracterizada a prática do ilícito pelo réu. O relator descreveu a forma como a
SMP&B transferiu recursos de sua conta na agência do Banco Rural em Belo
Horizonte (MG) para a de Brasília (DF) para que o saque de R$ 50 mil pudesse
ser feito sem que o real beneficiário fosse identificado, consumando, desta
forma, a lavagem de dinheiro.
O relator explicou que a SMP&B emitiu cheque nominal a
ela própria, com o respectivo endosso. A agência do Banco Rural em Belo
Horizonte enviou fax à agência de Brasília confirmando a posse do cheque e
autorizando o levantamento dos valores pela pessoa indicada informalmente no
fax – no caso, a esposa de João Paulo Cunha. Com isso, embora o banco tivesse
conhecimento da identidade do verdadeiro sacador, não registrava a retirada do
dinheiro em seu nome, permitindo que a própria SMP&B aparecesse como
sacadora, com a justificativa de que os valores se destinavam ao pagamento de
fornecedores.
“Essa informação falsa alimentava a base de dados do Banco
Central e do COAF”, afirmou o relator. “Com esses mecanismos, o verdadeiro portador
dos recursos em espécie permaneceu oculto, bem como se dissimularam a origem, a
natureza, a localização, a movimentação e propriedade do dinheiro recebido, que
era fruto de crime contra a Administração Pública. Por esse mecanismo, que por
sua eficácia permitiu que os fatos permanecessem encobertos por quase dois
anos, até mesmo se o próprio João Paulo Cunha tivesse se dirigido à agência do
Banco Rural em Brasília, teria praticado o crime de lavagem de dinheiro, ele
próprio”, explicou o relator.
O ministro rechaçou o argumento da defesa de que se João
Paulo Cunha soubesse que se tratava de recurso ilícito, não teria enviado a
própria esposa para sacá-lo no dia 4 de setembro de 2003. “O réu tinha tanta
certeza de que o saque não fora formalizado que apresentou uma versão diferente
para a presença de sua esposa na agência do Banco Rural em Brasília, descoberta
pela CPMI dos Correios: a de que ela teria ido ao banco pagar uma fatura de TV
a cabo”, afirmou o ministro Joaquim Barbosa.
Primeiro peculato
Prosseguindo em seu voto, o relator relacionou o pagamento
da vantagem indevida de R$ 50 mil a João Paulo Cunha à contratação da agência
SMP&B para supostamente prestar serviços à Câmara dos Deputados, no valor
de R$ 10.745.902,00. Segundo o ministro, João Paulo Cunha assinou cerca de 50
autorizações para subcontratações, o que resultou na terceirização de 99,9% do
contrato, embora houvesse cláusula dispondo que a contratada poderia
subcontratar outras empresas para execução parcial do objeto da concorrência, “desde
que mantida a preponderância da atuação da contratada na execução do objeto”.
Segundo o relator, a cláusula se justificava porque a
licitação foi feita pela modalidade “melhor técnica”, logo, não fazia sentido
subcontratar terceiros. Mas, de acordo com as provas, embora tenha recebido o
valor integral do contrato, os serviços executados diretamente pela SMP&B
corresponderam a apenas 0,01% do contrato. Para o relator, “o crime de peculato
se consumou porque o papel da SMP&B durante a execução do contrato foi, em
essência, o de mera recebedora de honorários”.
A execução do contrato demonstrou, segundo o relator, que
houve desvio de finalidade do seu objeto para permitir a “ilícita remuneração”
da SMP&B, sob a contratação de terceiros, com ônus para a Câmara dos
Deputados. O ministro Joaquim Barbosa afirmou que a SMP&B recebia
honorários de 5% sobre o valor das subcontratações, ou seja, recebia dinheiro
público para, basicamente, contratar serviços de terceiros. Além disso, houve,
segundo o relator, desvios como a subcontratação de serviços de engenharia e
arquitetura e pagamento de honorários à SMP&B mesmo quando os serviços eram
executados por servidores da Câmara dos Deputados.
Segundo peculato
O ministro-relator afirmou que, a partir das provas dos autos,
o ex-deputado João Paulo Cunha obteve benefício em proveito próprio por meio da
contratação da contratação da empresa IFT – Ideias, Fatos e Textos – de
propriedade de Luís Costa Pinto. De acordo com o voto do ministro, a
contratação da IFT por meio de empresas prestadoras de serviço para a Câmara
dos Deputados teria sido uma forma de Cunha continuar a se beneficiar da
assessoria pessoal prestada por Costa Pinto sem pagar por ela.
Costa Pinto trabalhou com Paulo Cunha em sua campanha para a
eleição para a presidência da Câmara dos Deputados, realizada entre o final de
2002 e o início de 2003, e passou a prestar serviços para o órgão por meio da
empresa IFT, subcontratada em junho de 2003 pela agência Denison Brasil
Propaganda, mediante autorização de Paulo Cunha, para prestar serviços de
assessoria de comunicação, pelo período de seis meses. Findo o prazo, o
deputado autorizou novamente a contratação da IFT, no dia 30 de janeiro de
2004, por mais seis meses, dessa vez como subcontratada da agência SMP&B,
que havia sucedido a Denison Brasil Propaganda. O valor dos dois contratos
totalizou R$ 252 mil.
Segundo documentos produzidos por equipes de auditoria,
relatou o ministro, o trabalho desempenhado por Costa Pinto naquele período foi
de assessorar pessoalmente Paulo Cunha, e mesmo os depoimentos das testemunhas
de defesa indicam que os serviços eram de natureza pessoal, prestados ao
deputado. O relator acrescentou que a secretaria de controle interno da Câmara
constatou uma série de irregularidades na contratação da IFT, concluindo que
não houve prestação de serviços pela empresa.
Concluiu o relator pela existência da prática de peculato na
contratação da IFT, destacando os seguintes pontos: a Câmara dos Deputados já
dispunha de uma secretaria de comunicação, seu presidente dispõe de uma
assessora de imprensa, e até a gestão de Paulo Cunha não havia a contratação de
assessoria de comunicação por meio de agência de publicidade – foi necessária
alteração no edital de licitação, promovida pelo diretor da secretaria de
comunicação, para inserir essa possibilidade no contrato da SMP&B. O
ministro Joaquim Barbosa afirmou também que a IFT foi subcontratada mediante
autorização direta de Paulo Cunha, e que não foi encontrada nenhuma
materialização do serviço prestado pela IFT pelos serviços de fiscalização e
auditoria.
Para o ministro Joaquim Barbosa, houve dolo na contratação
da IFT, pois não há como afastar a contratação da empresa de Costa Pinto do
benefício pessoal de Paulo Cunha. Por meio da contratação, Paulo Cunha manteve
os serviços que Costa Pinto vinha lhe prestando desde 2002.
Fonte: Site do STF
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