Por Sandro Sell(*)
Com o índice de homicídio mais baixo do País, o estado
catarinense costumava figurar nos telejornais apenas pelo seu cobiçado litoral
ou pela alegria de eventos como a Oktoberfest. Mas, primeiro em novembro
passado, e, depois, a partir de janeiro deste ano, a imagem que caracteriza
Santa Catarina é a de ônibus sendo queimados e autoridades se movimentando sem
conseguir fazer cessar os ataques. Ataques cujo comando está situado dentro do
sistema prisional catarinense.
Com uma população carcerária relativamente pequena, não
passando de 15 mil reclusos para uma população em torno de 6 milhões, Santa
Catarina parecia estar em uma posição confortável. Mas não. Suas polícias e
Justiça se tornaram, nos últimos dez anos, cada vez mais efetivas em prender e
condenar, sobretudo pessoas ligadas ao tráfico de drogas – crime que não
costuma desaparecer com a prisão do seu “chefe”, já que se estrutura de forma a
sobreviver à constante captura de seus integrantes. Com efeito, mantida a fonte de financiamento
e a rede de serviçais – os chamados “disciplinas” – intactas, os chefes do
tráfico catarinense apenas aumentaram seu poder na prisão. Esse é o espaço ideal
para, mediante pagamento ou violência, recrutar mais “disciplinas”.
O Primeiro Comando Catarinense (PGC), responsável pelas
ondas de atentados, cresceu nessa lógica.
Diante do PGC, as autoridades sempre tiveram uma postura dúbia.
Formalmente negavam sua existência.
E, informalmente, acreditavam que uma facção criminosa local
seria até benéfica, já que ela cerraria as portas do estado às facções
criminosas paulistas e cariocas, tidas como o verdadeiro problema. A soma entre
negação da existência e o equívoco de esperar que uma organização criminosa
pudesse, ainda que indiretamente, colaborar com a segurança pública, barrando o
mal maior (como o PCC), resultou no fortalecimento do PGC.
A tentativa de pôr fim ao controle do crime de dentro dos
presídios levou a atual administração da Secretaria de Justiça e Cidadania a
estratégias equivocadas, que só fizeram o PGC se tornar mais popular entre os
presos não alinhados a facções. Entre os
equívocos está a entrega da gestão de várias unidades prisionais a pessoas
tidas como especialistas não em administração ou recuperação de apenados, mas
sim em contenção à força de distúrbios em instituições carcerárias.
O resultado? A negação cada vez mais evidente de direitos,
que culminou em muitas denúncias feitas por presos, seus familiares e
advogados. Todos reclamavam que maus-tratos integravam a política vigente. Como
nada foi feito, os presos (em particular os ligados ao PGC) começaram a se
rebelar, com o apoio dos demais detentos. Em resposta, o estado ofereceu, aos
primeiros sinais de crise, um aumento no grau das restrições e abusos que
haviam justamente gerado as revoltas.
A divulgação de dois vídeos feitos de dentro dos presídios,
mostrando ações abusivas dos agentes penitenciários, como tiros de bala de
borracha e lançamento de gás de pimenta em presos imobilizados, tornou pública
a desumana realidade do sistema prisional catarinense. Mas provavelmente não
mobilizaria a opinião pública por muito tempo e, então, a ideia do PGC de
lançar os ataques.
Importante ter claro que o PGC não desconsiderou a
necessidade de apoio da população. E, por isso, dirigiram seus ataques a alvos
públicos ou associados a grandes empresários (ônibus, caminhões), reservando
ataques pessoais apenas a policiais – poupando então, da violência direta, a
população civil. Além disso, a estratégica divulgação dos vídeos dos abusos nas
penitenciárias obrigou o governo catarinense a lutar em duas frentes: contra os
criminosos e contra a opinião pública, que condenou a violência nas
penitenciárias. Nesse ponto, a facção criminosa foi de fato bastante
organizada.
A aceitação da ajuda da Força Nacional foi cercada de
mistérios. O próprio ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, limitou-se a
dizer que Santa Catarina seria cercada por terra, ar e mar, numa tentativa de
sufocar o crime organizado. Essa foi uma frase significativa, pois demonstra
que o ministro aceitou a versão catarinense de que o perigo vem sempre de fora
do estado. Uma ideologia bastante forte nas elites locais que não aceitam a
geração doméstica do crime, preferindo acreditar que a migração de criminosos
do sudeste e dos estados vizinhos é que criaram seus problemas de segurança.
Uma explicação conveniente, mas falsa, bastando consultar as próprias
estatísticas oficiais sobre a origem dos presos.
Sob os auspícios da Força Nacional, os órgãos locais de
segurança começaram a agir de forma diferenciada, embora, surpreendentemente,
por meios de ações que não dependiam da vinda da Força Nacional, como a
execução de mandados de prisão. Foram quase 100 mandados cumpridos só nos
primeiros dias da sua chegada. Entre os presos, criminosos conhecidos,
desconhecidos, advogados suspeitos de auxiliarem a transmissão de informações
das penitenciárias, mas nenhum agente público. Nem mesmo algum dos agentes
prisionais que aparecem no vídeo liberado pela Justiça em ações condizentes com
o crime de tortura.
No mais, por certo que a ausência do Estado nas bases dos
traficantes, fazendo com que, sobretudo crianças e adolescentes, sejam
cooptados pelo crime, e não pela escola, permanece na raiz de qualquer crise de
segurança estadual ou nacional.
Ressalte-se, ainda, que Santa Catarina não possui Defensoria Pública. E
só a está criando por determinação do Supremo Tribunal Federa. Sem um bom
sistema de defesa dos apenados, que mantenha a aplicação das condenações dentro
dos limites da lei e da civilidade, não se podem culpar unicamente os presos
pela crise que hoje se enfrenta.
* Sandro Sell é professor de Criminologia na UNIVALI e CESUSC
(**) Artigo sugerido pelo aluno Leonardo Agrello Madruga
Fonte: Publicado em Carta Capital
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