Por Vladimir Passos de Freitas(*)
No último dia 3 de novembro, o ministro da Justiça recebeu
do presidente do Conselho Federal da OAB proposta que, nos autos de inquérito
policial, permite “ao investigado o
direito de apresentar suas razões e requerer diligências, assistido por
advogado”. Segundo a notícia, o chefe da pasta do Executivo “manifestou apoio à
presença do advogado como indispensável para garantir ainda mais credibilidade
à investigação”.
O inquérito policial foi introduzido no Brasil através do
Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, que no artigo 42 dispunha sobre os
seus objetivos e formalidades. A leitura do referido dispositivo e dos cinco
que o complementam naquele Decreto permite concluir que, apesar de passado
tanto tempo, pouco mudou.
Esta forma de investigação sempre foi defendida por José
Frederico Marques, que a considerava “uma das instituições mais benéficas de
nosso sistema processual” (Elementos de Direito Processual Penal, Bookseller,
1997, v.1, p. 104).
No Brasil, ao contrário dos demais países da América Latina,
não se adotou o sistema do Juizado de Instrução, ainda hoje existente na
França, através do qual um juiz colhe as provas, atuando diretamente com a
Polícia Judiciária e outro julga.
Aqui se optou pelo inquérito, a cargo da autoridade
policial, que é uma investigação preliminar, porque, segundo lição antiga de
Magalhães Noronha, “a imensidão territorial é um adversário do juízo de
instrução, impossibilitando a atuação rápida e precisa do Juiz instrutor em
pontos afastados do território de sua jurisdição” (Curso de Direito Processual
Penal, Saraiva, 1964, p. 30). Ressalte-se que na condução do inquérito, a
autoridade policial deve buscar a descoberta da verdade e não a incriminação do
suspeito.
No mundo contemporâneo a tendência não é a investigação por
inquérito e nem o Juizado de Instrução. É outra, ou seja, o sistema do processo
acusatório, que na análise de Rúbia Mara Pereira de Carvalho, em artigo
denominado Das diferenças existentes entre os Sistemas Processuais Penais, “o
juiz passa apenas a julgar, deixando para as partes, autor e réu, as funções de
defesa e acusação, e também não mais controla o procedimento de investigação
preliminar”.
No Brasil o sistema é misto, inquisitivo ao início, por meio
da apuração através do inquérito policial, e acusatório na fase judicial,
cabendo às partes a produção das provas, sob o crivo do contraditório. A
tendência é o juiz deixar a produção das provas a cargo das partes, sem tomar
iniciativas. Nesta linha de raciocínio, Fischer e Pacelli consideram, inclusive,
inválida a primeira parte do artigo 311 do CPP, que permite ao juiz decretar,
de ofício, a prisão preventiva, por depender tal iniciativa de requerimento do
Ministério Público ou da autoridade policial (Comentários ao Código de Processo
Penal e sua Jurisprudência, Lumen Juris, 2ª ed., p. 663).
Qual seria a vantagem de estabelecer-se um contraditório no
inquérito policial? Teoricamente, seria apurar-se a verdade real de forma mais
democrática, participativa, dando ao Ministério Público elementos mais seguros
para apresentar ou não a denúncia. Este é o aspecto ideal no plano das ideias.
Só nesta visão quimérica.
No mundo real, as coisas são diferentes. Estabelecer-se o
contraditório na fase de investigação seria mais um passo, quiçá o derradeiro,
para que alcançássemos o primeiro lugar no ranking de países sem efetividade na
Justiça Criminal. Nos últimos anos temos avançado bastante, já sendo fato
público e notório a ineficiência de nossa Justiça Criminal. Não é por acaso que
foragidos escolhem este país para furtar-se do cumprimento de suas penas. Um
sistema que permite seguidos recursos e instâncias diversas, que impede que
decisões criminais singulares ou colegiadas sejam executadas (como, por
exemplo, através de seguidos embargos de declaração), não pode ser respeitado.
E não é. Exagero no raciocínio? Não, por certo.
Vejamos alguns exemplos do que viria a acontecer se adotada
a participação do advogado no inquérito policial: a) Ao tomar conhecimento da
portaria da autoridade policial, bastaria ao imputado juntar procuração aos
autos e, a partir daí, o advogado constituído reivindicar o direito de ser
intimado para os atos subsequentes e a falta de intimação constituiria
nulidade; b) No andamento do inquérito,
com certeza seriam interpostas seguidas petições e a cada decisão sobreviriam
embargos de declaração, com o consequente tumulto nos autos; c) A autoridade policial passaria a ter que dar
ciência de todas as suas iniciativas e com isto as provas acabariam sendo
desconstituídas previamente; d) A autoridade
policial passaria a proferir decisões e
delas se recorreria à autoridade administrativa superior ou se interporia
habeas corpus; e) Quando o imputado fosse pobre, a autoridade policial teria
que conseguir um defensor dativo, para que não se viole o princípio da isonomia
(não há defensores públicos para todos os inquéritos); e) Os advogados dativos
seriam indicados pela subseção da OAB e a burocracia aumentaria.
O inquérito policial, por si só, já é algo com sabor de
passado, contaminado por formalismos típicos do processo judicial. Por exemplo,
cartas precatórias impressas, termos de juntada, conclusão, pedidos de prazo
etc. Torná-lo contraditório, pois isto é o que resultará da participação de
advogado na sua tramitação, é dar-lhe o caráter de uma ação penal preliminar. E
depois tudo se repetirá em juízo. E se for processo de júri, de novo no
plenário.
Se o sistema inquisitivo já cheira a mofo, porque
introduzido em 1871, deve ser adotada uma nova forma, algo mais consentâneo com
a era virtual em que vivemos. Por exemplo, termo circunstanciado para crimes
apenados com penas maiores, desde que de investigação simples (como em caso de
furto simples). Ou então, simplificá-lo para que seja mais ágil, pesquisando-se
como atuam as polícias dos países mais avançados e também nossos vizinhos
latino-americanos. Dando, enfim, ao Ministério Público, sem formalismo, os
elementos essenciais para que delibere sobre a propositura da ação penal.
Exatamente o oposto da proposta de que na investigação haja
um contraditório, mesmo que atenuado, a qual levaria à ineficiência no grau
máximo, indo contra o princípio constitucional da eficiência, previsto
expressamente no artigo 37 da Carta Magna.
Aliás, o assunto já foi objeto de decisões do Supremo
Tribunal Federal. Em acórdão relatado e julgado em 22 de setembro de 1992, da
lavra do eminente ministro Celso de Mello, reconhecidamente um dos maiores
defensores dos direitos e garantias individuais, a Corte decidiu que “a
prerrogativa inafastável da ampla defesa traduz elemento essencial e exclusivo
da persecução penal em juízo” (RTJ 147/219).
É óbvio que tudo o que foi dito não significa descumprimento
do direito do advogado examinar autos de inquérito, direito este previsto no
artigo 7º, inciso XIV, do Estatuto da OAB, e reconhecido pela jurisprudência. Nem a quebra de outras
prerrogativas absolutamente necessários
ao exercício da ampla defesa, como formular requerimento à autoridade policial,
estar presente na tomada de depoimentos, indicar testemunhas e outros.
Significa, única e exclusivamente, chamar a atenção para o fato de que a investigação
não pode ser feita com o contraditório, porque daí nada se investigará e o
resultado previsível será a impunidade absoluta.
Em suma, é preciso, sim, avançar no campo das investigações
criminais, fazendo com que sejam atreladas ao mundo contemporâneo. Isto pode
resultar na mudança e até mesmo no fim do inquérito policial. No entanto, mudar
para que o inquérito permaneça como está, só que sob o crivo do contraditório,
é dar um passo atrás.
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