Por Francisco Sannini Neto
A invasão de ativistas ao Instituto Royal, com o objetivo de
“salvar” os cães que lá estavam para servir de cobaias para testes medicinais,
vem gerando uma grande polêmica na sociedade e repercutindo muito na mídia.
Independentemente de qualquer coisa, este fato já está servindo para que
possamos discutir a questão envolvendo a utilização de animais em experimentos
científicos, sendo que as próprias leis que tratam da matéria merecem uma
revisão mais detida.
Cabe ressaltar que com esse artigo não objetivamos nos imiscuir
no mérito da questão, ou seja, não intencionamos discutir se as pesquisas com
animais são legítimas ou não, morais ou imorais etc. Muito embora nos pareça
que essa discussão esteja contaminada por muita hipocrisia, na medida em que
muitas pessoas se colocam contra esses métodos, mas não deixam de utilizar os
remédios que são frutos dessas pesquisas, ou são frequentadores assíduos de
churrascarias, ou, ainda, se utilizam de casacos de pele de urso, entre tantos
outros exemplos. E os ratinhos, coitados, não merecem a mesma proteção? Afinal,
eles também sofrem! Isso para não mencionar aqueles que levantam a bandeira dos
animais, mas não têm compaixão com o próximo e muitas vezes causam sofrimento
físico ou psíquico aos seus próprios familiares.
Enfim, essa discussão poderia ir longe, mas o objetivo dessa
abordagem é apenas analisar a referida invasão sob o ponto de vista
jurídico-penal. Antes, contudo, devemos consignar que as impressões que serão
expostas ao longo do texto foram pautadas pelas informações que estão sendo
veiculadas na mídia. Nesse contexto, ressaltamos que as autoridades
responsáveis pelo caso são as mais indicadas para emitir qualquer opinião sobre
o assunto, até porque apenas tais autoridades conhecem os detalhes da
ocorrência.
Feitas essas considerações, passamos a analisar o caso de
uma maneira jurídica e consentânea com a legalidade. Num primeiro momento, nós
não podemos nos esquecer que existem leis no nosso país e que estas devem ser
respeitadas por todos, sendo dever do Estado zelar pela sua observância e, ao
mesmo tempo, também respeitá-las. É isso que chamamos de Estado Democrático de
Direito.
Tomando por base a reportagem exposta recentemente no
programa Fantástico, da Rede Globo, ao que tudo indica, o Instituto Royal
funcionava nos termos das leis que regulamentam a matéria. Também foi divulgado
na mídia que o Ministério Público estava investigando o instituto há quase um
ano, sendo que durante esse período não foi constatado qualquer indício de
ilegalidade nos procedimentos que lá eram adotados. No mesmo sentido, a Folha
de S. Paulo publicou uma matéria em que a ambientalista, Deise Mara do Nascimento,
representante da sociedade civil na comissão de ética do Instituto Royal,
afirma que o instituto não maltratava os animais.[1]
Como é cediço, nosso ordenamento jurídico aboliu a violência
privada, cabendo ao Estado o poder-dever de fazer justiça. Ora, se os órgãos
estatais com responsabilidade para fiscalizar o Instituto Royal não
vislumbraram a necessidade de qualquer intervenção no local, por que os
ativistas se acharam no direito de fazê-lo? Quais fatos justificaram a invasão?
Quais indícios de maus-tratos aos animais foram “apurados” pelos ativistas e
passaram despercebidos às autoridades envolvidas no caso?
Não podemos olvidar, outrossim, que o povo é o responsável
pela elaboração das leis, pois somos nós que elegemos os representantes do Legislativo.
Se as leis que tratam a matéria não são boas, se a sociedade considera que a
descoberta de novos remédios para as mais variadas doenças que afligem a
humanidade não justificam o sacrifício animal, então que se mudem as leis.
Agora, o que não se pode admitir dentro de um Estado Democrático de Direito é
que o povo se arvore na prerrogativa de fazer justiça pelas próprias mãos, até
porque o conceito de justiça é muito subjetivo. O que parece justo para mim,
pode não ser justo para você, caro leitor. É justamente por isso que contamos
com o Poder Judiciário, que é a instituição com competência para dizer o
Direito no caso concreto, evitando, assim, que abusos sejam cometidos.
Nesse contexto, parece-nos que os ativistas teriam violado o
artigo 345 do Código Penal, praticando o crime de exercício arbitrário das
próprias razões. De acordo com a doutrina, pratica o delito em questão aquele
que objetiva fazer justiça com as próprias mãos. Delmanto e outros ensinam que
é pressuposto do crime que o comportamento do agente seja para satisfazer
pretensão, embora legítima (2012, p.1004). Para Fragoso, é irrelevante que à
pretensão corresponda efetivo direito, bastando que o agente suponha de boa-fé
que o possui (1965, p.1230).
Conforme se depreende da análise do caso em debate, os
ativistas teriam agido com o objetivo de exercer pretensão que, para eles,
seria legítima, qual seja, salvar os animais dos “maus-tratos” perpetrados pelo
Instituto Royal. Na situação em que estavam, os manifestantes se achavam no direito
de invadir o local para defender os cachorrinhos “aprisionados”.
Além da infração de exercício arbitrário das próprias
razões, não temos dúvida de que alguns dos ativistas também praticaram o crime
de dano, previsto no artigo 163, do Código Penal. Contudo, considerando que a
responsabilidade penal objetiva não é admitida dentro do nosso ordenamento
jurídico, é necessário que se individualizem as condutas dos invasores,
punindo-se apenas aqueles que efetivamente causaram o dano. Raciocínio
semelhante se aplica ao crime de furto, pois, conforme noticiado, outras
coisas, diferentes dos animais, também foram subtraídas pelos manifestantes.
Ainda no que se refere ao delito de furto, em princípio
entendemos que este tipo penal não se adequa às condutas dos ativistas. Nos
termos divulgados pela imprensa, tudo indica que os invasores do Instituto
Royal não agiram com intuito patrimonial ao se apoderarem dos animais, haja
vista que eles intencionavam apenas a preservação deles. Assim, diante da
ausência do elemento subjetivo do tipo previsto no artigo 155, do Código Penal,
entendemos que restou afastada tal infração.
Para Luiz Flávio Gomes, a subtração não violenta de animais
de um laboratório poderia caracterizar uma causa supralegal de exclusão da
culpabilidade (ofensa não intolerável). Sob esse enfoque, o crime de furto
também seria afastado.[2]
Destaque-se, entretanto, que — nunca é demais lembrar — de
acordo com a mídia, alguns dos ativistas estariam vendendo os cachorros
subtraídos do instituto. Nesse caso, considerando a existência de um fim
patrimonial, pode-se, eventualmente, falar em crime de furto.
No que se refere ao crime de associação criminosa, previsto
no artigo 288, do Código Penal, já com a redação dada pela Lei 12.850/2013,
entendemos que este também não se aplica ao caso em questão, vez que o tipo
exige um vínculo associativo permanente para fins criminosos, o que, ao que nos
parece, não houve. Na verdade, trata-se de um caso típico de concurso de
pessoas, em que todos os criminosos devem ser julgados num mesmo processo
devido à existência de conexão intersubjetiva por simultaneidade ou ocasional,
onde duas ou mais infrações são praticadas ao mesmo tempo, por diversas pessoas
ocasionalmente reunidas (art.76, I, CPP).
Já caminhando para o final dessa breve abordagem ao tema,
dois outros aspectos ainda merecem destaque. Primeiramente, lembramos que no
dia da invasão ao Instituto Royal, diversas atrizes globais se utilizaram de
suas redes sociais para, ainda que de forma indireta, convocar seus fãs e
seguidores a comparecerem ao instituto para “resgatar” os cães que lá estavam.
Uma dessas atrizes, inclusive, afirmou em seu perfil no Instagram que os
animais estavam sendo mortos, que os ativistas estavam tentando invadir o
local, mas a polícia não deixava, entre outras coisas. No auge de sua
“indignação”, a atriz afirma em linguagem virtual que “isso nao pode ficar
assim!”, “eles tem q pagar” (sic).
Com todo respeito às opiniões em sentido contrário, mas os
artistas, justamente por serem pessoas públicas, devem ter ciência de que são
formadores de opinião e que suas manifestações têm o poder de influenciar
milhares de pessoas. Não temos dúvida de que as declarações da atriz em questão
serviram para incitar muitos ativistas que estavam no local. Por tudo isso,
entendemos que, em tese, as artistas também deveriam ser investigadas como
partícipes do crime de exercício arbitrário das próprias razões.
Por fim, considerando que os cães retirados do instituto são
fruto de crimes anteriores, conforme demonstrado (arts.345, 163 e 155, do CP),
parece-nos que aqueles que forem surpreendidos na posse dos animais praticam,
em tese, o crime de receptação, previsto no artigo 180 do Código Penal.
Mas essa é apenas a minha opinião sobre esse caso que vem
repercutindo tanto na mídia e nas redes sociais. Independentemente de qualquer
coisa, ao menos esse episódio serviu para que pudéssemos discutir o tema.
[1] Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2013/10/1363627-royal-nao-maltrata-bichos-afirma-ambientalista-que-resgata-cachorros.shtml.
Acesso em 30.10.2013.
[2] GOMES, Luiz Flávio. Pausa para reflexão: Subtração de
animais em laboratórios: justificável? Disponível em
http://atualidadesdodireito.com.br/lfg/2013/10/21/subtracao-de-animais-em-laboratorios-justificavel/
. Acesso em 30.10.2013.
Fonte: Site Conjur
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