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Intróito
Há duas semanas lancei um desafio aos meus alunos da
disciplina de Arte e Representação sobre o Crime, o Controle e a Punição: dentro
do universo dos discursos, das identidades e das representações nas Histórias
em Quadrinhos (HQs) fiz a proposta de
pesquisarem e elegerem personagem de HQs para relacioná-lo com a temática da
disciplina (crime, controle e punição). Ou seja, minha ideia era provocá-los
para a arte das HQs, porque elas são um contributo importante para reflexão da
própria sociedade (*).
Pois bem, esse fim de semana foi de agitada movimentação
jurídico-processual, envolvendo a Prefeitura do Rio de Janeiro, a Bienal do
Livro, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro e, por fim, o Supremo
Tribunal Federal.
Motivo
História em Quadrinho (HQ) - “Vingadores - A Cruzada das
Crianças”, publicação na qual há uma
cena – um quadrinho – com dois homens se beijando. Imagem abaixo.
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Cronografia
Na quinta-feira o Prefeito do Rio de Janeiro sinaliza numa
de suas redes sociais que a HQ tinha um beijo gay, e que estava disponível na
Bienal. Segundo divulgado, o Prefeito Marcelo Crivella entendia que a
mencionada imagem feria o Estatuto da Criança e do Adolescente.
Na sexta-feira, os Fiscais da Prefeitura – provavelmente animados
pelo Prefeito – visitaram a Bienal com a finalidade de identificar HQs que
pudessem violar o ECA, ou de conteúdo impróprio, da série Vingadores ou de outra qualquer. Ao que se divulgou nada
encontraram de inadequado, pois que toda comercialização atendia as condições,
inclusive de lacres e invólucros quando necessários.
Ainda na sexta-feira, o Tribunal de Justiça do Rio de
Janeiro tomava decisão liminar em Mandado de Segurança Preventivo, interposto
pela Bienal do Livro do Rio, para impedir a Prefeitura de aprender livros no
local e/ou cassar o alvará do evento.
No sábado, a referida liminar foi suspensa pelo Tribunal de
Justiça, em decisão do Presidente Claudio de Mello Tavares.
Segundo foi divulgado no site do TJRJ, “em face de decisão monocrática, proferida pelo Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes (5ª Câmara Cível), nos autos do Mandado de Segurança (Processo Nº 0056881-31.2019.8.19.0000), a ordem do Prefeito Marcelo Crivella de fiscalização e apreensão de publicações com conteúdos impróprios volta a valer, entendendo que as obras que possuem ilustrações com o tema da homossexualidade atentam contra o ECA e, portanto, devem ser comercializadas em embalagens lacradas.
Segundo foi divulgado no site do TJRJ, “em face de decisão monocrática, proferida pelo Desembargador Heleno Ribeiro Pereira Nunes (5ª Câmara Cível), nos autos do Mandado de Segurança (Processo Nº 0056881-31.2019.8.19.0000), a ordem do Prefeito Marcelo Crivella de fiscalização e apreensão de publicações com conteúdos impróprios volta a valer, entendendo que as obras que possuem ilustrações com o tema da homossexualidade atentam contra o ECA e, portanto, devem ser comercializadas em embalagens lacradas.
Ainda no sábado, os Fiscais da Prefeitura retornaram à
Bienal, para outra investida e, segundo divulgado, circularam à paisana para,
mais uma vez, buscar a HQ Vingadores – A cruzada das crianças ou outra publicações que possuíssem
protagonistas homossexuais ou LGBTs.
Por fim, no Domingo, em sede de Supremo Tribunal Federal, o
Ministro DiasToffoli acatou pedido da Procuradoria Geral da República, e
arrasou a medida do TJRJ, autorizadora à censura de obras da Bienal do Livro.
Dias Toffoli sustentou que o regime democrático pressupõe um
ambiente livre de trânsito de ideias, e que a imagem do beijo entre dois
super-heróis homens na HQ Vingadores – A Cruzada das Crianças, não afronta o
ECA e, portanto, não justifica que as obras sejam lacradas ou recolhidas. Para o Presidente do STF, a decisão do
Presidente do TJRJ, “findou por assimilar as relações homoafetivas a conteúdo
impróprio ou inadequado à infância e juventude, ferindo, a um só tempo, a
estrita legalidade e o princípio da igualdade”.
Para ele “o regime democrático pressupõe um ambiente de livre trânsito de ideias, no qual todos tenham direito
a voz. De fato, a democracia somente se firma e progride em um ambiente em que
diferentes convicções e visões de mundo possam ser expostas, defendidas e
confrontadas umas com as outras, em um debate rico, plural e resolutivo”. Asseverou, “não há como extrair do ECA
correlação entre publicações cujo conteúdo envolva relacionamentos homoafetivos
com a necessidade de obrigação qualificada de advertência”.
O Direito
Primeiramente cumpre indagar o seguinte: se o beijo da HQ
fosse entre homem e mulher, haveria ocorrido todo esse embate
jurídico-processual? Fossem os
personagens um homem e uma mulher, o tratamento dispensado – e a reprovação de
alguns – ocorreria?
Vivemos num país democrático, plural, diverso, no qual o
princípio da dignidade humana é corolário de outros, dentre os quais o de igualdade,
de liberdade e da honra.
Não há qualquer sentido em compreender-se conteúdo impróprio
ou inadequado na imagem da HQ - A
cruzada das crianças - por várias razões. Mas apenas uma delas já serviria para colocar
por terra a visão moralista, de preconceito de sexo e de orientação sexual:
vivemos num contexto de família plural, diversa, afetiva.
Sendo assim, inexiste obscenidade ou mácula à honra de quem
quer que seja, tampouco conteúdo ofensivo ou de apelo pornográfico na imagem
dos protagonistas que se beijam.
Não é possível acreditar que possa existir quem,
juridicamente, compreenda que a imagem atente contra o Estatuto da Criança e do
Adolescente ante a realidade em que vivemos, na qual os casamentos e as uniões homoafetivas
estão reconhecidos; no contexto em que a adoção de crianças por casais
homossexuais é direito do casal e, ao mesmo tempo, direito da criança; nos
cenários de novas conformações e arranjos familiares, muitos deles formados por
casais homoafetivos, com filhos.
Quer dizer, então, que o beijo, manifestação
de amor e de afeição, está reservado, apenas e tão somente, aos casais
heterossexuais? As crianças não podem ver e reconhecer essa demonstração de
afeto quando e se os seus pais são um casal homoafetivo? E não podem conviver com HQs que retratem a vida como ela é?
Como é possível justificar-se o pensamento do eminente presidente do TJRJ que conseguiu fundar sua decisão no fato de o tema da homossexualidade atentar
contra o ECA ?
Vejam que o artigo 79 do Estatuto da Criança e do
Adolesceente – Lei 8069/90 – dispõe que as revistas e publicações destinadas ao
público infanto-juvenil não poderão conter ilustrações, fotografias, legendas,
crônicas ou anúncios de bebidas alcoólicas, tabaco, armas e munições, e deverão respeitar os valores éticos e
sociais da pessoa e da família.
Ora, a família que deve ser respeitada, em seus valores
éticos e sociais, é essa, plural, diversa, que no direito, no seu ramo de
estudo, passou a ser nominada Direito das Famílias, porque abrange a família matrimonial
– formada pelo casamento homo ou
hetero; família informal – formada pela
união estável de casais hertorssexuais ou homoafetivos ; e por tantas
outras (monoparental, unipessoal etc)
que não interessam no contexto desse pequeno escrito.
Foi preciso que o STF viesse dizer o óbvio, mandando um
recado para o TJRJ que, por seu presidente, deixou explicito que o problema não
era o beijo, mas quem estava beijando, em evidente postura e decisão discriminatórias.
O Ministro Gilmar Mendes resssaltou, inclusive, que chamar de conteúdo
impróprio uma publicação de temática LGBT é atribuir um desvalor a imagens que
envolvem personagens homossexuais, e que em nenhum momento cogitou-se de impor
as mesmas restrições a publicações que veiculassem imagem de beijo entre casais
heterossexuais.
Por fim, não devemos esquecer: homofobia é crime,
conduta, aliás, equiparada ao racismo!
(*)Trabalhos ainda por serem apresentados!
Leia também em: https://arteecontrolepunitivo.blogspot.com/2019/09/a-proposito-do-beijo-na-hq.html
Leia também em: https://arteecontrolepunitivo.blogspot.com/2019/09/a-proposito-do-beijo-na-hq.html
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