Presunção de "efetiva
necessidade" de posse de arma viola Constituição
O decreto que facilitou a posse
de armas de fogo, assinado nesta terça-feira (15/1) pelo presidente Jair
Bolsonaro (PSL), diz que "presume-se verdadeira" a alegação de
"efetiva necessidade" de se ter uma arma. Para especialistas ouvidos
pela ConJur, no entanto, a medida é inconstitucional porque obriga a
administração a renunciar de sua competência de decidir. Com isso, também
obriga o governo a abrir mão do interesse público, já que armas colocam em
risco a vida e a integridade física de todos, afirmam.
O Decreto 5.123/2004 estabelece
que, para ter uma arma de fogo, o interessado deve “declarar efetiva
necessidade”. O Decreto 9.685/2019, assinado por Bolsonaro nesta terça, fixou
que essa "efetiva necessidade" é presumida verdadeira: “Presume-se a
veracidade dos fatos e das circunstâncias afirmadas na declaração de efetiva
necessidade a que se refere o inciso I do caput, a qual será examinada pela
Polícia Federal nos termos deste artigo”. Antes, um delegado da PF deveria
verificar as informações, o que, segundo Bolsonaro, era muito subjetivo.
“Efetiva necessidade” da posse de
arma de fogo é um conceito indeterminado. Como ele não tem um grau de
especificidade suficiente para ter força normativa, ele acaba gerando mais de
uma conduta possível para a administração pública, que irá adotar a que lhe for
mais conveniente, explica o professor de Direito Constitucional da PUC-SP Pedro
Estevam Serrano. Portanto, a definição dessa “efetiva necessidade” é uma
competência discricionária do Estado.
Imagem meramente ilustrativa - disponível na Web |
A administração pública pode
limitar, via decreto, por exemplo, sua competência discricionária. No caso,
isso ocorreria com a definição de critérios para a “efetiva necessidade” de se
ter armas de fogo. Contudo, o Estado não pode renunciar à sua competência
discricionária, aponta Serrano.
“Quando a administração pública
abre mão do direito a fazer verificações mínimas do que o cidadão alega como
sendo efetiva necessidade, ela exacerba a competência que tem para estabelecer
restrições à competência discricionária. Nesse caso, a administração pública
foi além dessa competência legitima e acabou, na realidade, outorgando ao
cidadão uma fé pública que, nesse caso, ele não deve ter. Isso porque a arma
pode vir a oferecer riscos à vida e à integridade física de terceiros”, avalia
o professor.
De acordo com ele, o que o Estado
está fazendo é deixar de lado seu dever de fiscalizar, verificar e regular. E a
administração, conforme Serrano, não pode fazer isso porque o interesse público
é indisponível. Ao ignorá-lo, o Estado viola a Constituição, pois tem a
obrigação de guiar suas ações por esse norte, destaca o docente da PUC-SP.
É preciso que o interessado em
obter posse de arma apresente indícios mínimos de que tem “efetiva necessidade”
de possuir uma arma de fogo. Serrano exemplifica: se uma pessoa diz que é
advogada criminalista, que atua em situações de risco e, por isso, precisa de
um revólver, ela deve comprovar que é advogada e que atuou, no mínimo, em um
caso penal.
O jurista Lenio Streck tem
opinião semelhante. A seu ver, o Estado deve assegurar que apenas quem
realmente preencher os requisitos possa adquirir uma arma de fogo. E isso antes
da compra do artefato. Afinal, depois disso, a administração pública não teria
como garantir a apreensão da arma obtida ilegalmente.
“O ponto é: se uma for arma
comprada e depois for verificada a inautenticidade da declaração, o que se faz?
Busca a arma de volta? Atenção: a presunção de veracidade funciona só para
comprar armas? E se o cidadão for pego em blitz sem a carteira e afirma que
tem? Nesse caso não tem presunção a declaração? O INSS pede declaração de vida.
Não vale a declaração do vivente? No raio-x do aeroporto: não carrego nada de
perigoso. Vão verificar depois a declaração? Os exemplos são infindáveis. Se
valido o decreto no tocante a essa presunção, deveremos alterar uma série de
exigências burocráticas, pois não?”, questiona Lenio.
Já o advogado Fernando Hideo
Lacerda lembra que o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/2003) exige a
demonstração de "efetiva necessidade" para se obter autorização para
adquirir arma de fogo. Entretanto, o Decreto 9.685/2019 fixou que todos que
vivem no Brasil preenchem esse requisito. Afinal, a nova norma permite a posse
de arma para todos que vivam em áreas rurais ou estados com mais de 10
homicídios por 100 mil habitantes - o que engloba o Brasil inteiro.
O problema, conforme o advogado,
é que o alargamento do conceito de "efetiva necessidade", previsto em
lei, foi feito por decreto - algo ilegal.
"Esclareço uma obviedade: um
decreto presidencial só pode regulamentar a lei. É uma questão de hierarquia
das normas: a Constituição é superior às leis, as leis são superiores aos
decretos. Assim, todo decreto que modifique a lei é ilegal", destaca
Lacerda.
Estímulo à violência
Por sua vez, o professor de
Direito Constitucional da Uerj Daniel Sarmento analisa que o Decreto 9.685/2019
é inconstitucional por violar a separação de poderes e a competência do
Congresso para legislar.
“O decreto pretensamente regula o
Estatuto do Desarmamento e o seu objetivo é oposto ao da lei: armar as pessoas.
Todas as unidades da federação, sem exceção, têm índices de homicídio
superiores a 10 por 100 mil habitantes, conforme o Atlas da Violência de 2018.
Ou seja, o decreto libera geral, contrariando profundamente o espírito da lei.
Uma norma infralegal não pode atentar contra o espirito da regra superior que
ela regulamenta”.
Além disso, o novo decreto
contraria os direitos fundamentais à vida e à segurança, afirma Sarmento. Ele
ressalta que “todos os estudos empíricos” comprovam que o aumento do número de
armas em circulação amplia “gravemente” o risco de homicídios e acidentes.
“Brigas de casal, incidentes no trânsito, entre outras situações, tenderão mais
facilmente a gerar resultados fatais”, diz o professor.
Outro lado
Ana Paula de Barcellos, também
professora de Direito Constitucional da Uerj, não considera ilegal a presunção
de veracidade da declaração de “efetiva necessidade” da posse de arma de fogo.
Até porque essa presunção é relativa e pode ser afastada pela Polícia Federal,
aponta.
“Na minha avaliação o decreto é
compatível nesse ponto com a lei que ele regulamenta (artigo 4º do Estatuto do
Desarmamento). A lei afirma que o interessado deve ‘declarar a efetiva
necessidade’ e atender aos requisitos que lista. Não é incomum, aliás, essa
figura da presunção relativa de veracidade de declarações de particulares: é o
que acontece, por exemplo, no caso da declaração de pobreza por pessoa natural
para obter gratuidade de justiça no âmbito do Judiciário (artigo 99, parágrafo
3º, do Código de Processo Civil)”, avalia Ana Paula.
O professor de Direito
Administrativo da PUC-SP Adilson Abreu Dallari destaca que a presunção de
veracidade "milita em favor do cidadão". "Sua afirmação vale.
Cabe ao Estado comprovar a falsidade".
O Estatuto do Desarmamento
estabelece que o interessado em obter posse de arma de fogo deve declarar a
"efetiva necessidade" disso. Prestar falsa declaração é crime, lembra
Dallari. E a declaração não pode ser presumidamente falsa. Teoricamente,
caberia à administração pública comprovar a falsidade da declaração.
Na prática, o Decreto 5.123/2004,
segundo o professor da PUC-SP, criou o dever de o interessado demonstrar a
"efetiva necessidade" de obter aval para obter arma de fogo. E a
aceitação dessas razões ficou sujeita ao critério "absolutamente
discricionário" da autoridade - no caso, a PF.
Assim, o Decreto 9.685/2019
"recoloca um pouco as coisas no lugar" ao presumir a veracidade da
declaração de "efetiva necessidade", opina Dallari.
"Não se presume a
necessidade; presume-se apenas a veracidade dos fatos que justificariam a
necessidade. Fica a Polícia Federal como
poder/dever de examinar a veracidade dos fatos e circunstâncias afirmadas, mas, insisto, a falsidade das
alegações não pode ser presumida. A desconfiança tem que ser devidamente
motivada".
Flexibilização da posse
O decreto de Bolsonaro facilita a
posse de armas de fogo no país. Para conseguir o direito de ter uma arma de
fogo, o cidadão deve dizer que mora em um estado considerado violento (mais de
10 homicídios por 100 mil habitantes, critério que engloba todas as unidades da
federação), ser profissional de segurança ou viver em área rural.
O texto também amplia o prazo de
validade do registro de armas para 10 anos, tanto para civis como para
militares. Permite ainda a aquisição de arma por proprietários de
estabelecimentos comerciais, colecionadores, atiradores ou caçadores
registrados pelo Exército.
Em casas com crianças,
adolescentes e pessoas com deficiências mentais, a pessoa deverá acrescentar à
lista de exigências uma comprovação de que tem cofre ou local seguro, com
tranca, para armazenamento.
Cada pessoa que preencher os
requisitos poderá comprar até quatro armas de fogo, número que poderá ser
ampliado caso haja "caracterização da efetiva necessidade".
O decreto foi assinado sob a
justificativa de atender ao referendo de 2005, previsto no Estatuto do
Desarmamento, de 2003. O referendo era para a entrada em vigor do artigo 35 do
estatuto, que proibia a venda de armas e munições em todo o território
nacional. A maioria dos consultados foi contra a entrada em vigor do artigo. A
pergunta feita, "o comércio de armas deve ser proibido no Brasil?",
foi respondida com "não" por 64% dos brasileiros.
Fonte: CONJUR
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