Pesquisar este blog

domingo, setembro 28

Falhas na rede de proteção: Caso Bernardo e a Omissão de todos nós (erros, omissões e arrependimentos)

Por Adriana Irion


BERNARDO UGLIONE BOLDRINI, 11 anos, percorreu o ciclo completo da chamada rede de proteção à infância de Três Passos. Mesmo assim, sofreu maus-tratos até ser assassinado pela madrasta com a suposta anuência do pai, em 4 de abril. Quase seis meses depois, os passos dados pelo menino ainda reverberam. Perturbam quem tinha o dever legal de agir (Conselho Tutelar, escola, Ministério Público) e angustiam uma comunidade que se pergunta: o que poderia ter sido feito para protegê-lo? Muitos admitem arrependimento, seja pela incapacidade de enxergar uma violência não expressa em marcas no corpo, seja por ver uma barreira na condição financeira e social da família. Alegam que a rede tem limite de atuação. Mas se Bernardo chegou sozinho até a última instância desse sistema a Justiça , e nem isso foi suficiente, o que fazer? Resta refletir para costurar uma rede com menos brechas.

Bernardo, se você fosse personagem de uma história, qual gostaria de ser?

– Nenhum. Ninguém me conta histórias!

A conversa de Bernardo Uglione Boldrini com uma médica amiga de sua família ocorreu muito antes de o menino franzino de 11 anos tornarse personagem da mais dolorosa história que Três Passos poderia contar ao país.

A de uma criança de classe média alta, órfã de mãe, maltratada em casa, que mendigava amor, comida e roupas pelas ruas da cidade, que foi ao fórum sozinha pedir ajuda e acabou morta e enterrada numa cova rasa pela madrasta, Graciele Ugulini, supostamente com o conhecimento do pai, o médico cirurgião Leandro Boldrini.

A história que Três Passos narra hoje é permeada por culpa e questionamentos. O que cada um poderia ter feito melhor? A comunidade reclama ação mais contundente por parte das autoridades que têm o poder de investigar e de tirar uma criança de casa. Agentes da rede de proteção queixam-se de que a população não denuncia.

– A gente não está procurando culpados, mas um pouco cada um se omitiu. Nos sentimos em luto quando aconteceu. Nos sentimos muito mal, pensamos o que faltou a gente fazer mais, o que aconteceu? – questiona-se Deborah Granich, uma das conselheiras tutelares que atenderam o menino.

Os gritos de socorro de Bernardo foram muito além do que os 31 gravados em áudio e vídeo pelo próprio pai durante uma briga em casa, em um sábado de agosto do ano passado. A única coisa que o filho de Boldrini não fez foi verbalizar a tortura que sofria. O resto estava lá para ser visto.

Bernardo não tinha as chaves de casa. Vivia sempre na rua. Insistia em dormir na casa de colegas. Precisava ser acordado pela secretária da escola para não perder aula. Tinha dificuldades de aprendizado. Fazia temas e trabalhos com famílias amigas ou até com a secretária da clínica do pai. Não podia usar a impressora em casa. Não podia usar a piscina, nem brincar com a irmã. Não tinha janta, ia para escola sem lanche. Tinha sinais de falta de higiene pessoal. Andava malvestido – costumava trajar manga curta em dias frios. Pai e madrasta não participavam das atividades escolares, sequer foram na Primeira Comunhão. Um código de convivência o impedia de falar com a madrasta. Era proibido de mencionar a mãe, morta em 2010. Carregava na mochila e tomava sozinho três medicações controladas. No final de 2013, aparentava desnutrição. Em 2014, pediu ao juiz para trocar de família.

Mas ninguém supôs que o menino de classe média alta, filho do mais famoso médico da cidade e enteado de uma enfermeira, estava sob perigo intenso. É o que aparece nas entrelinhas de depoimentos prestados à polícia depois da morte de Bernardo e em conversas sempre interrompidas pelo choro.

– A gente analisa que essas pessoas (um médico e uma enfermeira) estão ali para salvar vidas, não destruir. A gente tem eles como referência – comenta Isoldi Schumann, conselheira tutelar.

Quando as primeiras suspeitas chegaram ao Conselho Tutelar de Três Passos, uma colega de Isoldi e de Deborah pediu para não atuar na apuração: tinha um familiar em tratamento com Boldrini e havia trabalhado com Graciele.

– É o problema de se enxergar as pessoas pela ótica da profissão que exercem, e aqui, no Interior, a gente veste a camisa da profissão. Todos te veem na rua como a jornalista, a psicóloga, a assistente social. Ninguém te imagina com dois discursos, que tu cuide teus pacientes e não cuide de teus dependentes, teus afetos. As pessoas não queriam se intrometer nessa família – analisa a psicóloga Ariane Schmitt, amiga de Boldrini.

Aquele que parece ter sido o primeiro ente público a se preocupar com o comentário generalizado na cidade de que Bernardo era negligenciado, o Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas), agiu, mas não sem um certo temor.

– Imagina nossa situação: ele (Boldrini) poderia nos processar. Dizer “o que essas mulheres estão fazendo aqui?” Ele poderia. Nós não tínhamos amparo legal para estar lá. Somos órgão de atendimento. Não somos órgão de averiguação, com poder de intervenção. Esse poder é todo do Conselho Tutelar – conta Raquel Raffaelli, psicóloga do Creas, que é ligado à prefeitura de Três Passos.

Ela e a colega Juliana de Quadros, assistente social, contataram o Conselho em busca de “suporte legal” para atuar. Juliana esteve com um conselheiro no Colégio Ipiranga para ouvir Bernardo, em julho de 2013.

– Ele estava meio abatido, mas não falou em maus-tratos – recorda Nestor Weschenfelder, do Conselho Tutelar.

Creas e Conselho procuraram o pai em mais de uma oportunidade. Boldrini foi resistente à abordagem, segundo registros. Também pediram uma avaliação da escola sobre o menino. Entre julho, quando houve as visitas, e novembro de 2013, quando comentários sobre o estado de abandono de Bernardo se intensificaram, o caso não teve andamento.

– É importante a sociedade se posicionar. Sem denúncia formal, nosso poder de trabalho diminui muito. Só tínhamos comentários (em julho de 2013). Nossa postura foi intervir e aguardar. Depois do que ocorreu, a gente revisou, revisou e revisou na nossa mente. Qual a conclusão: nós trabalhamos com situações de violência. E essa situação não se confirmava. Como é que íamos intervir? O Creas fez mais do que é seu trabalho. Quem apura é o Conselho, a polícia. A rede tem um limite, tem que respeitar o espaço do outro – sustenta Raquel.

Em uma das anotações do Conselho Tutelar, foi registrado à mão: “Fomos no consultório Dr. Boldrini e Colégio Ipiranga. Sobre seu filho Bernardo, conversamos também com a Psicóloga Denise (do Colégio Ipiranga) sobre ele, esperar decisão da escola sobre o caso”.

O Colégio Ipiranga, onde Bernardo estudou desde pequeno, é reticente hoje ao falar do caso. O diretor Nelson Antônio Gabriel Weber garante que “valores estão sendo trabalhados” com os alunos.

– Questões de família, da vida, de amizade, os valores são tão amplos, a valorização do ser humano, coleguismo, fraternidade. Isso faz parte do nosso dia a dia – comenta.

E em relação aos problemas que Bernardo apresentou durante anos, como dificuldades de aprendizado, falta de lanche a ponto de se tornar alvo de brincadeiras e ausência da participação da família?

– O Conselho apareceu aqui. Não sei precisar exatamente, sei que o contato ocorreu. O Conselho Tutelar tinha conhecimento. Tudo foi conversado. O Bernardo gostava de estar na escola, era acolhido, tinha o carinho de todos. Se todos tivessem dado a parcela que a escola deu... – responde o diretor do Colégio Ipiranga.

O conselheiro tutelar Nestor garante que o Colégio Ipiranga nunca fez registro sobre problemas do aluno, até ser procurado pelo órgão. Em depoimentos à polícia depois do crime, a coordenadora pedagógica, Simone Müller, e a psicóloga do Ipiranga, Denise Escher, discorreram sobre dificuldades do menino, a carência de atenção da família, a falta de lanche, de jantar, os problemas que ele dizia ter com a madrasta. Tudo era de conhecimento da comunidade escolar.

Bernardo chegou a virar alvo de brincadeira. A mãe de um colega dele contou à polícia: “Nesse ano, a turma da escola criou uma brincadeira, baseada no Bernardo Boldrini, de ‘mendigar o lanche’. Começou com Bernardo porque ele mendigava o lanche dos colegas”. Nada disso foi comunicado pela escola a órgãos de proteção à infância.

– Quem enxerga o problema não tem obrigação de resolvêlo, mas tem de comunicar, levar adiante. Este é um dever da escola – diz a juíza Vera Deboni, da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

O Conselho Tutelar nega que a condição financeira da família de Bernardo tenha interferido na ação da rede de proteção.

– Para nós, todos são iguais. O Conselho não é só para pobre. Acontece que, talvez, aqueles gritos (os pedidos de socorro de Bernardo, gravados pelo pai e que vieram a público na semana da primeira audiência do caso), por que vizinhos não vieram denunciar no Conselho? Isso a gente pensa hoje. Por que não vierem denunciar? Medo? Como não ficamos sabendo? A babá, por que não veio falar para nós? É tudo coisa de se pensar hoje – questiona a conselheira Deborah.

O assunto da babá é, possivelmente, a informação mais concreta que surgiu sobre o risco de morte que Bernardo corria. A madrasta teria tentado sufocá-lo enquanto dormia. Ele acordou sem ar, assustado, e viu Graciele com um travesseiro na mão. Ela desconversou. O menino não esqueceu. Em novembro de 2013, ao encontrar na rua a ex-babá Elaine Teresinha Pinto, ele relatou o episódio. Preocupada, Elaine contatou familiares do garoto em Santa Maria.

Jussara Marlene Uglione, a avó materna de Bernardo, ficou quatro anos sem vê-lo, desde a morte da filha, em 2010. Tentou na Justiça garantir as visitas, mas desistiu em 2011, incomodada com a resistência de Boldrini. Avó e neto só voltaram a se ver nas férias de 2014.

– Eu lutei (pelo Bernardo) até onde pude – diz a avó materna.

Após avisar o Conselho Tutelar de Santa Maria, Marlon Taborda, advogado de Jussara, enviou ao Conselho de Três Passos e-mail falando da suspeita de tentativa de homicídio e das condições de abandono. Também telefonou para reforçar o assunto, que não despertou a atenção dos conselheiros.

Os conselheiros justificam não ter apurado porque os relatórios sobre Bernardo já estavam prontos, sendo encaminhados ao Ministério Público, acompanhados do e-mail vindo de Santa Maria.

– Isso foi para o MP. A polícia devia investigar. Não podemos responder ofício para advogado – diz Deborah.

– Se essas denúncias foram para Santa Maria, lá deveria ter sido feito registro policial – reforça Isoldi.

Em depoimento à polícia, Rosani do Nascimento, a conselheira que pediu para não trabalhar no caso de Bernardo, afirmou: “Que receberam, no final do ano passado, uma denúncia do advogado da avó de Bernardo de que este teria sofrido tentativa de asfixia, mas não deram muita importância porque já haviam falado com Bernardo e ele não havia relatado nada”.

Bernardo não relatou. Mas não foi perguntado sobre o episódio.

O coordenador do Conselho em Três Passos, Helio Eberhardt, esclareceu à polícia: “Que não sabe informar se algum dos conselheiros chegou a averiguar a denúncia da tentativa de asfixia. O depoente não tinha conhecimento, a não ser através do conteúdo do e-mail encaminhado pelo Conselho Tutelar de Santa Maria”.

Para a Polícia Civil, o assunto merecia investigação.

– Se tivesse chegado ao conhecimento da polícia a questão da asfixia, eu teria feito uma ocorrência, instaurado inquérito e ouvido as pessoas. Ouvido a Elaine (ex-babá), o Bernardo, a madrasta, o Leandro. Teríamos investigado, que é nosso papel – diz a delegada Caroline Bamberg Machado.

Até Bernardo sumir, a delegada não sabia, mas outro episódio envolvendo o menino passou despercebido pela polícia. Em meados de junho de 2013, Boldrini foi à delegacia mostrar um vídeo que fizera em seu celular. Nas imagens, Bernardo aparecia empunhando uma faca e um facão, e sofrendo provocações por parte do pai. Boldrini afirmou ao policial que queria se “precaver”. Não se sabe de quê. O policial apenas orientou o médico a procurar o Conselho Tutelar. Se tivesse feito uma ocorrência, o assunto passaria por análise da delegada. Só após o sumiço de Bernardo o policial informou o fato ocorrido 10 meses antes da morte do menino. A orientação do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente é de que sempre seja feito o registro policial.

Caroline, responsável pela investigação do crime, lembra da última vez que viu Bernardo na escola:

– Eu estava caminhando e ele também, me olhando. Ele andava e me olhava. Hoje, penso se ele queria me falar algo.

Em agosto de 2013, o drama vivido por Bernardo mais uma vez esteve ao alcance de autoridades. Policiais militares estiveram na casa de Boldrini na noite em que o menino sofreu xingamentos, humilhações e ameaças veladas da madrasta, e berrou por socorro 31 vezes. Tudo foi registrado em um celular, acionado pela madrasta. No áudio, recuperado por peritos, é possível ouvir quando o médico diz que há policiais na frente da casa:

– Ó, eu faço tudo que é coisa certa. Tem polícia na frente da minha casa sábado de noite, né.

Não se sabe o que os PMs conversaram com Boldrini e se chegaram a ver e falar com Bernardo. Quando a gravação veio a público, na última semana de agosto, Zero Hora pediu detalhes sobre o atendimento, mas a Brigada Militar não tem registro, e abriu uma sindicância para apurar o que houve.

– Não foi ocorrência específica no Boldrini. Segundo estamos levantando, foi repassado para a sala de operações que havia “gritos próximo à caixa de água” e ponto (a sede da Corsan fica na frente da casa de Bernardo). Foi despachada viatura. Durante a averiguação, se bateu em residências perguntando quem ouviu, e se bateu na casa do Boldrini também. Estamos apurando quem foi atender e como foi o atendimento – diz o comandante do 7º BPM, major Diego Munari.

A “rede de proteção” voltou a se movimentar em novembro. Há informações de que naquele mês Bernardo esteve doente – com tosse, febril, com infecção respiratória. Por intervenção de uma amiga da família, foi levado por uma secretária de Boldrini a uma consulta com José Roberto Sartor, seu ex-pediatra. Foi ele que, ao saber do desaparecimento, disse à esposa: “Apagaram o guri”. Ao explicar a afirmação em depoimento à polícia, posteriormente, Sartor, amigo de Boldrini, contou que a fez em função da “situação de abandono” que Bernardo sofria.

Não há informações sobre o médico ter feito algum comunicado a órgãos de proteção à infância.

No final de novembro, em uma reunião com agentes da rede de proteção, a promotora Dinamárcia Maciel de Oliveira foi informada dos problemas com Bernardo. Solicitou relatórios. Foi só nessa época que os órgãos de proteção registraram em documento o que havia sido apurado em julho.

Em 6 de dezembro, inconformado com a falta de retorno do Conselho Tutelar sobre seus pedidos, o advogado Marlon Taborda, de Santa Maria, enviou e-mail ao Ministério Público descrevendo o estado de abandono de Bernardo e a suspeita de que a madrasta tentara sufocá-lo. O assunto não foi verificado pelo MP. Segundo a promotora, a ex-babá, que era uma das fontes da informação da tentativa de sufocamento, não foi procurada por não ser “testemunha presencial, não trabalhava há vários anos na casa” de Boldrini. Nesse período de apuração do MP, pai e madrasta não foram procurados, nem Bernardo.

Em 16 de dezembro, a promotora instaurou procedimento administrativo para apurar a situação de Bernardo. Foram adotados os trâmites burocráticos para a avó ser ouvida em Santa Maria sobre o interesse de assumir a guarda provisória do neto. Enquanto o expediente para possível troca de guarda tramitava no MP, ao retornar das férias passadas com a madrinha em Santa Maria, o filho único de Boldrini surpreendeu a Justiça ao ir sozinho ao fórum. Dia 24 de janeiro, Bernardo saiu da loja de Juçara Petry – onde era acolhido, se alimentava, brincava e fazia os temas –, caminhou 93 passos e falou firme ao guarda do fórum:

– Quero falar com o juiz.

Foi levado à sala do Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (Cededica).

– Sou Bernardo, sou filho do médico Leandro Boldrini. Quero falar com o Dr. Fernando, o juiz – disse o menino a Matheus Menezes de Moura, coordenador de medidas Socioeducativas do Cededica.

– Mas por que tu queres falar com o juiz?

– Estou recebendo maus-tratos da minha madrasta e eu queria falar com o juiz a respeito disso.

– Calma, não é assim, vou te levar para o Conselho Tutelar.

– Mas eu queria falar com o juiz.

Convencido pela insistência de Bernardo, Matheus o levou ao juiz, que ouviu as queixas do menino e o encaminhou para falar com a promotora Dinamárcia.

O Ministério Público não registrou formalmente o que Bernardo contou ao longo de 40 minutos. A promotora achou “desnecessário”. Mas depois pediu ao Cededica que registrasse em ofício o que o menino contara lá, antes de ser levado para falar com o juiz e a promotora. Em palestra recente, em Santa Maria, Dinamárcia confirmou que a história não está registrada em nenhum lugar, “a não ser na minha mente e aqui (mostra o coração), como mãe que sou”. E recordou trechos do que Bernardo disse:

“A minha madrasta é uma bruxa, ela me xinga de tudo que você possa imaginar, e o meu pai dá razão para ela. Eu não tenho comida de noite porque não tem tata (empregada, babá). Eu tenho que tomar leite, comer banana, fazer ovo cozido ou então eu vou comer na casa dos meus colegas. Não tenho chave de casa, ela briga comigo e eu tenho que esperar 10 e meia da noite o pai chegar para eu poder entrar em casa. E eu não aguento mais isso. Deram todos os meus cachorros. E hoje foi a gota d’água, porque ela me chamou de veadinho e eu atirei um copo nela. O copo não pegou, mas eu estou com medo, estou cansado, eu nunca tinha feito isso de atirar um copo nela. Então eu não quero mais ficar naquela casa. Eu estou na casa da tia Ju (Juçara Petry). E eu queria te dizer assim, promotora: eu quero que a Ju e o marido dela sejam meus novos pais, porque eu quero ter pais com amor. ”

Ao retornar para a loja da “tia Ju”, Bernardo estava feliz.

– Ele me disse “pronto, falei tudo, bluft” – lembra Juçara, para quem Bernardo não detalhou a conversa com as autoridades.

Uma semana depois, a promotora ingressou com ação protetiva para troca provisória da guarda de Bernardo, sugerindo que ele ficasse com a avó materna. O expediente tomou por base relatórios produzidos em novembro pelo Conselho Tutelar, Creas e escola.

– A postura de Bernardo, ao procurar, sozinho, atendimento no Fórum, foi determinante para que esta promotora deliberasse pela necessidade de ajuizar, de pronto, uma Ação Protetiva em favor do menino, para fazer cessar a situação de vulnerabilidade à qual estava exposto. Havia uma criança, órfã de mãe, que buscava, solitária, outra família, noticiando-nos atos de abandono e exclusão por parte do pai e da madrasta – disse Dinamárcia em entrevista por e-mail.

Ao receber a ação do MP, o juiz Fernando Vieira dos Santos optou por marcar uma audiência de conciliação entre Bernardo e o pai, sem analisar os demais pedidos. Um deles era para que Bernardo e o núcleo familiar fossem submetidos a avaliação psicológica. A promotora não recorreu.

– Qualquer dos órgãos de proteção que tenha tido conhecimento do caso poderia realizar monitoramento espontâneo, não havia necessidade de determinação judicial. Adverti ele (Boldrini) a respeito das represálias ao menino; e não seria o acompanhamento da família que impediria que ocorressem, na medida em que a execução do delito revelou algum calculismo alheio a qualquer monitoramento – disse em entrevista por e-mail o juiz Fernando Veira dos Santos.

O Conselho Tutelar, que acompanhara o caso de Bernardo, só soube da audiência no fórum depois do sumiço do menino.

– Na audiência, é importante destacar, não estávamos tratando (até onde se sabia e nos era possível saber), com um pai “infrator”; longe disso. O pai era um cidadão sem maus antecedentes, com atividade conhecida na cidade e sob o qual pesava, “apenas” (não acho que isso seja pouco, tanto que ajuizei a ação), a notícia de ser negligente com o filho. Não havia notícia de violência contra Bernardo, já que a única menção (da babá), não se confirmou nas entrevistas do menino – afirmou, por escrito, a promotora Dinamárcia.

O encontro entre Bernardo e o pai, diante do juiz e da promotora, ocorreu em 11 de fevereiro. Clandestinamente, Boldrini gravou em seu celular parte da audiência. O material foi recuperado por peritos e veio a público recentemente. Mas o que foi prometido por Boldrini ao filho, e o que o menino falou, não chegou a ser gravado nem registrado formalmente.

Conforme o juiz, não é comum “registrar por escrito diálogos informais mantidos em ambiente de conciliação”. Ele também não autorizou gravação da sessão. O que se sabe é que Boldrini pediu uma chance de retomar a relação com o filho. Bernardo aceitou mediante singelas condições: queria ter a chave de casa, poder brincar com a irmã e ter um animal de estimação.

Feita a “conciliação”, pai e filho deveriam retornar ao fórum 90 dias depois, em 13 de maio, para reavaliação. Nos últimos dias de vida, Bernardo havia acertado com Boldrini que teria um aquário. O menino amava animais, sobretudo cachorros. Quando a mãe, Odilaine Uglione, era viva, tinha vários cães em casa. Depois da morte dela, Boldrini se livrou de todos, além de queimar pertences e fotos de Odilaine, uma das queixas de Bernardo aos conselheiros tutelares.

Até 11 de fevereiro, quando Bernardo deixou o fórum com o pai acreditando que sua vida mudaria, nenhum agente da rede de proteção ou autoridade havia perguntado ao menino sobre a tentativa de asfixia que teria sofrido. Hoje, todos dizem que ele jamais falou sobre qualquer tipo de agressão ou ameaça física. O único relato que Bernardo fez sobre isso, porém, foi desconsiderado por todas as instâncias da rede. A madrasta, que seria a principal peça de conflito no lar e de quem ele reclamava sofrer ofensas, nunca foi procurada.

Foi da madrasta que pelo menos três pessoas ouviram afirmações sobre a intenção de matar ou, de forma mais genérica, livrar-se de Bernardo. Uma secretária de Boldrini, Andressa Wagner, e uma técnica de enfermagem, Marlise Cecília Renz, que trabalhavam com o casal, sabiam que Graciele não gostava do menino. No dia em que Boldrini foi chamado ao fórum, Graciele disse, na frente da secretária, que daria um fim naquela situação e que tinha gente para fazer isso.

Uma das funcionárias pensava até em sair do emprego, mas nenhuma avaliou a possibilidade de contar o que sabia à polícia ou a algum órgão de proteção. Sandra Cavalheiro, amiga de Graciele e testemunha no processo, foi procurada meses antes do crime pela madrasta, que dizia que ela e o marido pretendiam se livrar de Bernardo. Também não contou a ninguém.

Por três anos, por vontade e esforço próprios, Bernardo frequentou a catequese na Paróquia Santa Inês. Levou documentos, tratou de sua inscrição, foi coroinha.

– Ele era malcuidado, quase sempre chegava atrasado, tinha falta de higiene, a gente via que não tinha um adulto dando atenção a ele. De minha parte nunca falei nada para ninguém, mesmo porque não sabia o que se passava dentro de casa. Eu achava que era ele, que estava na idade, né, 11 anos, de levantar tarde. Nunca pensei que tivesse passando alguma coisa dentro de casa – conta Ivonete de Mattos, catequista de Bernardo em 2013. – Para mim, ele nunca reclamou de nada. Depois eu me senti meio culpada, porque a religião é fundamentada na família, a gente fala muito em família, a gente incentiva as crianças a respeitar pai e mãe. De repente, quantas vezes que a gente falava que pai e mãe é o principal dentro de casa e ele ficava triste ouvindo isso...

A catequista não conheceu o pai e a madrasta de Bernardo. Boldrini e Graciele não iam às missas, às reuniões de pais nem estiveram presentes na Primeira Comunhão.

– Quando aparecia para contribuir com o dízimo, o pai falava do excesso de trabalho. A gente procura entender a situação das famílias. O caso agora está na Justiça. Não há mais o que comentar – resume a coordenadora da catequese, que se identificou apenas como Daniele.

Em um dos relatórios da rede de proteção sobre Bernardo, consta: “A comunidade de Três Passos, em geral, sabe que Bernardo é negligenciado pelo pai e pela madrasta”.

– Ele sempre era acolhido, alguém sempre levava ele para casa. Então, talvez, por isso, perante os olhos da sociedade, (a situação) não parecia tão grave – reflete a conselheira tutelar Isoldi.

– A gente sabia que no finais de semana ela estava na casa das pessoas, mas pessoas da alta sociedade, não era de qualquer um, não estava em casas correndo riscos. Nossa obrigação é investigar todos os casos que chegam, mas não somos investigadores. Quem tem que averiguar é a polícia. Temos um limite – atesta Nestor, colega de Isoldi.

– Nós encaminhamos certo, fizemos nosso trabalho certo. Pena que aconteceu de ninguém, de não ter passado na cabeça de ninguém, nem na do juiz, nem na nossa, de que chegaria nesse ponto – lamenta a conselheira Deborah.

No começo de abril, enquanto o plano para sua morte era finalizado com a compra de remédios analgésicos para dopá-lo, de uma pá e de cavadeira para abrir a cova e de soda cáustica para corroer seu corpo, Bernardo cuidava dos detalhes para a concretização de um sonho: ter um aquário.

Nos dias 2 e 3 de abril, Bernardo percorreu floriculturas e ferragens, além de consultar livros, a fim de reunir o material para decorar o aquário de segunda mão que ganhara de uma amiga da falecida mãe. Foi também nestes dias, segundo a investigação da polícia, que a madrasta de Bernardo e uma amiga, Edelvânia Wirganovicz, compraram remédios, equipamentos e abriram o buraco para enterrá-lo, em Frederico Westphalen.

Na tarde de 3 de abril, Bernardo vendeu rifas da escola. À noite, telefonou três vezes para a comerciante que havia lhe dado o aquário. Ansioso, queria confirmar se podia mesmo buscar o presente no dia seguinte. Na sexta, 4 de abril, estava radiante. Almoçou em casa com o pai e a madrasta, repetiu a comida, pôde brincar com a irmã. Logo depois, ainda usando o uniforme do Colégio Ipiranga, embarcou no carro de Graciele, supostamente para buscar o aquário. Mas a esperança e a ousadia do menino de 11 anos arrefeceram diante de doses excessivas de Midazolan.

Já com a medicação agindo no corpo, fez a última ligação registrada em seu celular para quem considerava como mãe: a comerciante Juçara Petry. Não se sabe se tentava pedir socorro ou só queria conversar. A ligação não chegou a completar. O aparelho nunca foi achado pela polícia. Juçara não estava em Três Passos. Retornou na noite daquela sexta-feira, quando Bernardo já estava morto.

A notícia do sumiço se espalhou pela cidade na noite de domingo, dia 6, quando o pai fez o registro policial. Na segunda-feira, o alarme soou nos órgãos de proteção. O Conselho Tutelar buscou informações na escola e fez ofício à promotora. Diante da notícia, Dinamárcia fez novo pedido ao juiz de suspensão de guarda do pai. Desta vez, o juiz, em sua decisão, escreveu longas considerações: “Aparentemente, Bernardo, após o falecimento de sua mãe e da constituição de nova família pelo pai, passou a ser um estorvo à nova instituição familiar. Logo, se ele estava longe, as conveniências estavam atendidas: infelizmente, essa é a realidade. Frente a essa situação, se – e a condicional é o que nos resta, neste momento – Bernardo for encontrado com vida e em boas condições de integridade pessoal, seu retorno à degradada realidade que enfrenta em seu lar parental é a medida menos acertada no momento. A suspensão da guarda, pretendida pela agente ministerial, é a medida deveras acertada”.

As buscas duraram até 14 de abril, quando Edelvânia confessou o crime e indicou o local onde estava o corpo. Além dela, o pai e a madrasta tiveram a prisão decretada nesse dia, pelo juiz Fernando.

– Esse caso nos traz a necessidade de repensar questões do cotidiano, de que o sistema de garantias como um todo não tem esse olhar com o mesmo cuidado que teria se fosse um filho da classe pobre. Nesse particular, a classe pobre está, entre aspas, melhor assistida. Famílias com melhor poder aquisitivo naturalmente não aceitam essa intervenção. E isso, muitas vezes, inibe o Conselho Tutelar, o Ministério Público, a escola – comenta Vera Deboni, juíza da 3ª Vara da Infância e da Juventude de Porto Alegre.

– Estamos preparados para identificar e agir nos casos de violência física, facilmente detectados, mas não para perceber a presença da negligência severa e da violência psicológica. Um importante instrumento para identificar a gravidade da situação é a avaliação e o acompanhamento psicológico – aponta a procuradora Maria Regina Fay de Azambuja, coordenadora do Centro de Apoio da Infância e Juventude do MP.

Quase seis meses depois do crime, a história do menino que não queria ser personagem algum ainda inquieta a cidade. Na casa dos Petry ficou muito de Bernardo: trabalhos escolares, fotos, bilhetes. Era lá que ele fazia temas, estudava, cortava unhas, brincava de fazer a barba com o “tio Carlinhos”, passava finais de semana, comemorava seus aniversários, fazia pão – adorava comer a massa crua – e experimentava com a “tia Ju” outras receitas, como de cupcake. Muito díficil encontrar foto de festa da família Petry em que Bernardo não apareça. E é comum o prato de “Bê” surgir na mesa do almoço. Juçara se atrapalha, ainda o espera chegar.

– Gostaria que no meio desse turbilhão que se abateu sobre nós com a morte do Bê, a gente consiga passar para as autoridades que podem fazer alguma coisa, que podem tirar uma criança de casa, que deem um pouco mais de atenção para esses inocentes. Sinto muita falta dele, tem dias que é bem complicado – conta Juçara, a mãe que Bernardo queria. – Tu vai almoçar, parece que ele está chegando, vai trabalhar, parece que ele está vindo. Ele estava sempre junto. Agora está pior, é muita saudade. No início, era aquela luta para achá-lo, depois esse turbilhão de informação. A gente não tinha ideia do que ele passava. Como ele não falou nada, acho que temia por nós. A gente se pergunta: será que ele não deu uma pista e não vimos? Aí, depois, vem aquela dor: meu Deus, por que eu não arranquei ele de lá? Talvez ele estivesse salvo, hoje estaria aqui. Conosco.

Um comentário:

Unknown disse...

Bom Dia Prof Ana Claudia!
Depois de tantos anos escrevo um comentário a teu texto,ontem se deu o juri dos assassinos diretos do Bernardo, sinceramente ainda não consegui ter o sentimento de justiça realizada que percebo nas pessoas. Como a justiça pode ter sido feita? Com uma pena de cerca de 30 anos para o pai e a madrasta?30 anos são na realidade cerca de 9 em regime fechado na prática hoje já cumpriram metade da prisão. E as autoridades ninguém será responsabilizado?? Busquei na internet alguma explicação ninguém toca no assunto.deparei-me com teu texto da época dos fatos.Muito pertinente, infelizmente questões importantes são jogadas para debaixo do tapete ninguém é de fato responsabilizado, nossa sociedade está em decadência.A morte do Bernardo é um crime que a sociedade teve sua participação.Infelizmente. Que eles descansem em paz.