Pesquisar este blog

terça-feira, novembro 20

A reinvenção do jogo do bicho

Matéria Jornalistica produzida pelos repórteres de Zero Hora, Carlos Wagner e Carlos Etchichury. Leia em Zero Hora

Zero Hora revela a corrupção entranhada nas forças policiais e o montante arrecadado pelo milionário mundo das apostas. Os repórteres Carlos Wagner e Carlos Etchichury investigaram por quatro meses o esquema, a guerra entre bicheiros do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, a corrupção e as consequências do jogo que sobreviveu aos novos tempos e consolidou em uma eficiente máquina de ganhar dinheiro ilegal.







A partir do saldo das operações do Ministério Público e das polícias civil e federa, Zero Hora projeta o montante movimentado pelo milionário mundo da jogatina ilegal na grande Porto Alegre

O jogo do bicho é a mais rentável atividade criminosa no Rio Grande do Sul. Existe há 120 anos, tem ramificações em todas as regiões, corrompe investigadores da Polícia Civil, compra oficiais da Brigada Militar, financia políticos e se infiltra na vida social ao movimentar milhões de reais.

A cada minuto, em média, R$ 500 ilegais irrigam os cofres das 18 famílias que comandam o bicho na Capital e na Região Metropolitana. O faturamento dos 18 do Forte, como os contraventores são chamados, chega a R$ 270 milhões por ano livres de impostos, naturalmente – um pouco menos do que o orçamento da prefeitura de Santa Cruz do Sul (de R$ 276 milhões), importante cidade agroindustrial de 118 mil habitantes.

É impossível identificar, com precisão, o volume envolvido nas operações dos bicheiros em todo Estado. Os dados apresentados por Zero Hora são projeções que têm como referência apreensões e operações realizadas pelo Ministério Público e pelas polícias Civil e Federal.

O grupo dos 18 do Forte também explora caça-níqueis (máquinas especializadas em ludibriar apostadores), mas inexistem informações confiáveis acerca da quantidade de aparelhos que operam e do montante de dinheiro que movimentam. É possível afirmar, sem margem de erro, que os lucros aferidos são muito superiores aos obtidos apenas com a exploração do bicho. Na região da Serra, uma investigação da Polícia Federal revelou que quatro quadrilhas de contraventores, responsáveis por 60 mil caça-níqueis, faturavam R$ 600 milhões anuais.

No último dia da série de reportagens, Zero Hora apresenta o perfil de dois bicheiros: Jorge Ivan Fontela Liscano, 56 anos, o Mão Branca, um dos 18 do Forte, e a história de Orlando Jacob Bellinaso, 80 anos, no ramo há meio século, que arrecada R$ 60 mil por dia com 104 pontos espalhados pela Fronteira.


O banqueiro Orlando Jacob Bellinaso, 80 anos, é representante de uma espécie em extinção: bicheiro benemérito, boa praça, protegido pelas vistas grossas das autoridades, influente na política local, enraizado na vida social. Está no ramo há meio século na missioneira Santo Ângelo, noroeste do Estado.

Seu Bellinaso, como é chamado, é proprietário, com Sergio Bellinaso, o Serginho, 41 anos, um de seus três filhos, da Comercial de Veículos Bellinaso e de meia dúzia de tabacarias. É a face limpa e respeitável dos seus empreendimentos. A outra parte dos negócios, com certeza a mais lucrativa porque livre de impostos, é a contravenção.

As supostas atividades dos Bellinaso são relatadas por um de seus ex-funcionários, oficialmente vinculado à Comércio de Veículos Bellinaso Ltda. Ele descreveu da seguinte forma sua atividade profissional ao reivindicar indenização de R$ 50 mil na Justiça do Trabalho:

“Exerceu função de office-boy, no período em que trabalhou numa banca do jogo do bicho, realizando serviços de coleta de jogos, nos pontos previamente determinados e o pagamento dos bilhetes premiados... realizava esta atividade à tarde, das 14h às 17h30min... pela manhã, trabalhava como motorista de táxi”.

O juiz Edson Moreira Rodrigues rejeitou o pedido do ex-colaborador em 14 de dezembro de 2010.

Ao longo de 50 anos, Bellinaso edificou seus tentáculos pela fronteira noroeste e oeste, espalhando-se por duas dezenas de municípios, estreitando laços com contraventores de Caxias do Sul, do Rio de Janeiro e de São Paulo, alcançando a formidável marca de 104 pontos de apostas.

Afáveis no trato pessoal, Bellinaso e Serginho são generosos com clubes de futebol, escolas de samba, entidades beneficentes, instituições religiosas.

– Ele sempre apoia as comunidades sociais. É uma pessoa muito benquista na cidade – reconhece um agente da Polícia Federal que conhece o bicheiro desde o final dos anos 70.

Como recompensa pelos préstimos da família, Serginho ostenta dois Diplomas de Benfeitor, concedidos pela Associação Religiosa Nossa Senhora das Graças. O certificado, assinado pelo padre Hamilton José Naville, demonstra “reconhecimento e gratidão por seu generoso apoio e dedicação em prol das nossas autoridades apostólicas”.

Banca como uma empresa familiar

Em julho, três meses antes das eleições municipais, ele e o filho emprestaram R$ 280 mil para Arlindo Diel, proprietário do jornal O Mensageiro e então candidato a vereador (acabou eleito com 1.340 votos) pelo DEM. O vereador Fernando Diel, filho de Arlindo, era candidato a prefeito pelo DEM (ficou em terceiro lugar).

Conforme o termo de compromisso firmado em 10 de julho entre Arlindo e os Bellinaso, registrado no 2º Tabelionato de Notas e obtido por Zero Hora, o valor será pago em “36 parcelas de R$ 7.240 a serem depositados mensalmente na conta poupança junto ao banco Sicredi, agência 0307 (...) o primeiro depósito será efetuado até o dia 11 de agosto de 2012 e o último depósito efetuado até o dia11 de agosto de 2015”.

Arlindo Diel se defende:

– Não pedi dinheiro para Orlando Bellinaso. Não devo nada para este senhor.”

A ausência de impostos nas atividades clandestinas não é a única explicação para a pujança econômica. A banca é organizada como uma pequena e rentável empresa familiar. Com a certeza da impunidade, eles mantinham, no escritório clandestino, dezenas de contatos com bicheiros, empresários e apontadores do jogo em cidades do Estado, do Rio e de São Paulo. Os documentos foram apreendidos pela Força-Tarefa de Combate aos Jogos Ilícitos do Ministério Público, no início de outubro.

R$ 600 mil em contas bloqueadas

Por intermédio de cadernetas alimentadas todos os meses, agentes do MP descobriram que a banca gastava R$ 42,7 mil com a folha de pagamento dos 34 funcionários (proventos chegam a R$ 6 mil). Além dos documentos (alguns com data de 2000), foram encontrados R$ 57 mil em dinheiro, R$ 137 mil em cheques e R$ 5,3 mil em promissórias. As cifras movimentadas, porém, podem ser bem mais elevadas. No momento em que policiais e promotores ingressaram no escritório, alguém manipulava uma calculadora semiprofissional. No visor, ficou registrado R$ 14.740.294.

– Não sabemos o que estava sendo calculado, mas tudo indica que a banca do Seu Bellinaso mexe com muito dinheiro – diz um dos agentes.

Para quem se surpreendeu com o volume de reais e a organização encontrada no QG do contraventor, Bellinaso respondeu:

– Estou no ramo há 50 anos.

A última operação da Polícia Civil em Santo Ângelo na banca de Bellinaso havia ocorrido 20 anos atrás.

A Justiça determinou o bloqueio de R$ 600 mil em seis contas bancárias.


Dono de um império estimado em 20 mil pontos de apostas, 1,4 mil máquinas caça-níqueis e 12 casas de carteado, Jorge Ivan Fontela Liscano, o Mão Branca, reinventou o jogo do bicho no Rio Grande do Sul. Zero Hora revela como um menino pobre, nascido há 56 anos em São Borja, nas barrancas do Rio Uruguai, transformou-se no banqueiro mais temido do Estado. Movido pelo sonho de uma vida melhor, Mão Branca desembarcou em Cachoeirinha, em meados da década de 70. Influenciado por um policial amigo de seu pai, ele se infiltrou em delegacias, tornou-se apontador do jogo do bicho e montou uma rede de contatos entre policiais, apostadores e prostitutas. Assim foi iniciada a trajetória do homem que lidera os 18 maiores bicheiros da Região Metropolitana.

Nasce o contraventor

Os anos 90 foram de oportunidades. A primeira surgiu quando o jogo mergulhou em uma inédita decadência – que coincidiu com o lançamento pela Caixa de jogos populares, como raspadinhas, e com a legalização temporária de casas de bingos. Para completar o golpe, em 1993, no Rio de Janeiro, a então juíza Denise Frossard mandou para a cadeia 13 bicheiros, entre eles Castor de Andrade (morto em 1997).

Temendo que a repressão chegasse ao Sul, gaúchos começaram a investir em outros negócios rentáveis, mas com menor risco, como bingos e caça-níqueis. Dividiram-se em grupos. O mais poderoso deles era a Associação dos Bicheiros de Porto Alegre, composto por 11 pessoas que dominavam 22 mil pontos de venda. Comandavam a Loteria da Sorte, um sorteio ilegal. No final de 1993, Liscano convenceu um dos integrantes da associação a lhe vender 30 pontos de apostas na zona norte da Capital. Ali nascia o banqueiro do jogo, que adotou o apelido ganho em São Borja: Mão Branca, uma referência à mancha em uma das mãos.

Ouvidos por ZH, três bicheiros da antiga associação definem da seguinte forma o ingresso de Mão Branca: “Era mais um aventureiro vindo do Interior”. Estavam enganados. Enquanto contraventores ostentavam, Mão Branca investia na estrutura familiar para administrar os negócios: usava filhos, primos e o seu irmão, João Omar. Expandiu rumo à Região Metropolitana e ao Interior.

Usava a tática da asfixia. Associava-se a donos de bancas falidos – algo nem sempre tranquilo – para apoderar-se dos pontos. Quem se rebelava, era repreendido exemplarmente. É o que aconteceu com um ex-associado, castigado em público. Insatisfeito com os rumos de uma discussão, Mão Branca sacou um revólver calibre 38 e golpeou o rosto do ex-comparsa até sangrar. O episódio foi narrado a ZH por cinco testemunhas.

Sangue e corrupção

Quem caía em desgraça seguia à risca a ordem para sumir da cidade. Em dois anos, Mão Branca amealhou 20 mil pontos pelo Estado (dado estimado pelos ex-colaboradores).

Pressionada pelas autoridades, a Associação dos Bicheiros de Porto Alegre foi desfeita, mas preservou a Loteria da Sorte. Nos anos seguintes, Mão Branca adquiriu cotas de outros bicheiros da loteria, que foi reestruturada. Hoje, é o principal acionista.

Um dos episódios marcantes da nova etapa da Loteria da Sorte foi a execução do bicheiro de Gravataí José da Silva dos Santos, o Zé Milhão, 57 anos. Em 1997, ele foi sequestrado e morto a tiros. Teria se recusado a obedecer a ordem dos sócios para baixar a premiação paga e diminuir a comissão dos arrecadadores. O crime permanece insolúvel.

Mão Branca seria condenado, anos depois, pela associação com o investigador da Polícia Civil Miguel de Oliveira, natural de Uruguaiana, seu amigo e compadre. No processo 015/2.07.0005640-0, da 1ª Vara Criminal de Gravataí, o policial foi condenado por passar informações privilegiadas aos sócios do bicheiro. Mão Branca foi sentenciado por corrupção de funcionário público. Segundo o advogado Luiz Alfredo Paim, o bicheiro recorreu.

– Tecnicamente, ele pode ser considerado primário – acrescentou Paim.

O bicheiro vai à guerra

Recluso e protegido por guarda-costas, Mão Branca mudou hábitos. Uma das transformações foi a divisão dos negócios com os filhos Ivana e Jorge. Ingressou no ramo dos caça-níqueis usando a mesma tecnologia desenvolvida no jogo do bicho: associando-se a contraventores em dificuldades. Financiou a transformação de trabalhadores de baixa renda em “maquineiros” (exploradores de caça-níqueis), a maioria migrantes de São Borja. Um deles foi Albino Leandro Moraes, jornaleiro em Tramandaí, que se estabeleceu com 120 máquinas. No processo de implantação de máquinas, o seu irmão, João Omar (braço da organização no Rio), foi executado em Tramandaí. A morte abalou os Liscano, mas não os negócios na região.

O medo da morte

Acossado por uma doença no fígado e atormentado pelas lembranças do irmão assassinado, Mão Branca tornou-se um homem errático na condução dos seus negócios: decide algo pela manhã, volta atrás ao meio-dia e, à noite, cobra por suas ordens não terem sido cumpridas. Muda de paradeiro entre seus seis apartamentos – em Porto Alegre, em Torres e em Capão da Canoa – e as duas casas em Cachoeirinha e Gravataí. Além do medo da morte, teme ser preso por lavagem de dinheiro. Pessoas próximas calculam que seus empreendimentos ilícitos e seus bens, a maioria no nome de terceiros, são avaliados em R$ 200 milhões.

Nos últimos 30 dias, ZH procurou Mão Branca 12 vezes. Recados foram deixados no seu celular particular e em uma de suas residências. O advogado Paim, um dos defensores do contraventor, transmitiu o recado ao seu cliente. Até a noite de ontem, contudo, ele não retornou aos chamados.

Fonte: Site Zero Hora

Nenhum comentário: