Diante de tantos fatos e evidências a esclarecer o engodo em
que consiste a apresentação da redução da maioridade penal e do aumento do
tempo de internação de adolescentes infratores como fórmulas eficazes para
diminuir a criminalidade e a violência, cabe aos cidadãos e eleitores exigir
que se eleve o nível do debate
Mais uma vez a sociedade brasileira é bombardeada por uma
campanha pelo retrocesso na legislação e nas políticas públicas relativas à
responsabilização de adolescentes infratores. Desde a entrada em vigor do
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990, sempre que os cálculos
político-eleitorais de lideranças e grupos conservadores revelam oportunidade
de exploração da insegurança e do medo para obtenção de votos ou para desviar a
atenção do eleitorado de questões “inconvenientes”, propostas para redução da
maioridade penal voltam às manchetes.
A lógica das repetitivas campanhas pela redução da
maioridade penal é simples. Entre os inúmeros episódios de violência que
ocorrem em um país de quase 200 milhões de habitantes, destacam-se alguns casos
especialmente atrozes, cujos perpetradores têm menos de 18 anos. Ao mesmo
tempo, ignoram-se completamente as estatísticas, evidências e experiências
nacionais e internacionais que demonstram a trágica falácia de “soluções”
focadas na ampliação do aprisionamento, sobretudo no que tange aos adolescentes
infratores. Opera-se, desse modo, uma estratégia de comunicação na contramão de
um efetivo processo de esclarecimento, pautado pela racionalidade, pelo
pragmatismo e pela ética, que deveria ser a meta e a missão de autoridades
públicas, partidos políticos e profissionais da mídia.
Na campanha político-midiático-legislativa atualmente em
curso, além da redução da maioridade penal, clama-se pelo aumento do tempo
máximo de internação de adolescentes em conflito com a lei – de três para oito
anos −, medida igualmente contraindicada.
Apresento, a seguir, as dez principais razões pelas quais a
grande maioria dos especialistas e das organizações da sociedade civil que
conhecem a situação dos adolescentes infratores – como a Fundação Abrinq/Save
The Children – e trabalham por sua recuperação é contra a redução da maioridade
penal.
1) É inconstitucional. O artigo 228 da Constituição Federal
estabelece que é direito doadolescente menor de 18 anos responder por seus atos
mediante o cumprimento de medidas socioeducativas, sendo inimputávelem relação
ao sistema penal convencional. E, de acordo com o artigo 60, os direitos e as
garantias individuais estão entre as “cláusulas pétreas” de nossa Constituição,
que só podem ser modificadas por uma nova Assembleia Nacional Constituinte.
2) É uma medida inadequada para o combate à violência e à
criminalidade. Além de ser incapaz de tratar o adolescente como prevê o ECA, o
sistema carcerário brasileiro tem umainfraestrutura extremamente precária e um
déficit de mais de 262 mil vagas. Tratar o adolescente como criminoso e
aprisioná-lo com adultos condenados contribuirá para aumentar o inchaço
populacional das cadeias, favorecendo o aumento da violência e a aliciação
precoce de adolescentes pelas redes do crime organizado, dentro e fora das
prisões.
3) Inimputabilidade não é sinônimo de impunidade. O fato de
o adolescenteser inimputável penalmente não o exime de serresponsabilizado com
medidas socioeducativas,inclusive com a privação de liberdade por até trêsanos.
E, como prevê o artigo 112 do ECA, em casos de adolescentes com graves desvios
de personalidade, a internação pode ser estendida pelo tempo que se mostre
necessário à proteção da sociedade.
4) O jovem já é responsabilizado. A severidade das medidas
socioeducativas é estabelecida deacordo com a gravidade do ato infracional. O
ECA prevê seis diferentes medidas socioeducativas, sendo a mais grave delas a
restritiva de liberdade. A medida de internação só deve ser aplicada quando: 1)
tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à
pessoa; 2) por reiteração no cometimento de outras infrações graves; 3) por
descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. A
diferença entre o disposto no ECA e no Código Penal está no modo de
acompanhamento do percurso dessa pessoa em uma unidade de internação. Pelo ECA
e pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), o
acompanhamento dos adolescentes autores de atos infracionais pelo Plano Individual
de Atendimento (PIA) é o que favorece sua reintegração e a drástica diminuição
dos índices de reincidência.
5) O número de adolescentes cumprindo medidas
socioeducativas é frequentemente superdimensionado. Da população total de
adolescentes no Brasil, apenas 0,09% se encontra em cumprimento de medidas
socioeducativas. E, ao considerarmos a população total do país, esse percentual
é inferior a 0,01% da população.
6) O Sinase ainda não foi devidamente posto em prática nos
estados brasileiros. Segundo dados de 2011 do Conselho Nacional de
Justiça(CNJ), em somente 5% das ações judiciais envolvendoadolescentes existem
informações sobre o PIA. Desses processos, 77% não aplicam o plano. Alémdisso,
81% dos adolescentes autores de ato infracionalnão receberam acompanhamento
após o cumprimento demedida socioeducativa.
7) As taxas de reincidência no sistema de atendimento
socioeducativo são muito menores que no sistema prisional. Em 2010, no sistema
de atendimento da Fundação Casa, do estado de São Paulo, a reincidência foi de
12,8%. No sistema prisional convencional para adultos, essa taxa sobe para 60%.
A grande maioria dos adolescentes tem chances concretas de traçar projetos de
vida distantes da criminalidade, por isso não devem ser enviados para um sistema
que reduz essas chances. Em municípios onde as medidas socioeducativas
previstas no ECA e no Sinase são efetivamente aplicadas, como São Carlos (SP),
as taxas de reincidência são ainda menores.
8) O aumento de intensidade da punição não reduz os crimes.
Prova disso é a Lei de Crimes Hediondos, que, desde que começou a valer, em
1990, não contribuiu para a diminuição desse tipo de delito. Pelo contrário: os
crimes aumentaram.
9) As crianças e os adolescentes são as maiores vítimas de
violações de direitos. O número de adolescentes e crianças vítimas de crimes e
violências é, no Brasil, muito maior que o de jovens infratores. Grande parte
dos adolescentes infratores sofreu algum tipo de violência antes de cometer o
primeiro ato infracional. Mais de 8.600 crianças e adolescentes foram
assassinados no território brasileiro em 2010 (Mapa da Violência 2012 –
Crianças e Adolescentes do Brasil), e mais de 120 mil, vítimas de maus-tratos e
agressões, receberam atendimento via Disque 100, entre janeiro e novembro de
2012 (Relatório Disque Direitos Humanos – Disque 100, 2012).
10) As crianças e os adolescentes são sujeitos de todos os
direitos fundamentais inerentes à pessoa humana e, desde 1990, devem receber a
proteção integral prevista pelo ECA. A adolescência é uma fase da vida de
grande oportunidade para aprendizagem,socialização e desenvolvimento. Atos
infracionais cometidos por adolescentes devem ser entendidos comoresultado
decircunstâncias que podem ser transformadas e de problemas passíveis de
superação. Para aumentar as chances de recuperação e de “reinserção” (em muitos
casos, seria mais correto dizer “inserção”) social saudável, eles precisam de
reais oportunidades – e, certamente, não de sofrer novas violências, conviver
com criminosos adultos em prisões superlotadas e carregar o estigma do
encarceramento.
Diante de tantos fatos e evidências a esclarecer o engodo em
que consiste a apresentação da redução da maioridade penal e do aumento do
tempo de internação de adolescentes infratores como fórmulas eficazes para
diminuir a criminalidade e a violência, cabe aos cidadãos e eleitores exigir
que se eleve o nível do debate.
O discurso do medo e da vingança é muito fácil e marca a
história humana como promotor de enormes tragédias – algumas excepcionais e
flagrantes, como as guerras declaradas, outras cotidianas e mais veladas, como
as políticas de marginalização, punição e encarceramento em massa
(*)Rubens Naves é professor licenciado do Departamento de
Teoria Geral do Direito da PUC-SP, sócio titular de Rubens Naves, Santos Jr,
Hesketh Escritórios Associados de Advocacia.
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