Duas gaúchas estão entre os 182 juízes brasileiros com a
vida ameaçada por quadrilheiros
Sem aparições públicas. Vida restrita ao convívio familiar.
Com deslocamento vigiado. Privados do direito básico de ir e vir. Essa é a
rotina de 182 magistrados brasileiros, acossados pelo crime organizado.
Em alguns casos, por quadrilhas integradas por policiais e
outros servidores públicos.
Em outros, por facções gestadas dentro do sistema
penitenciário, como o paulista Primeiro Comando da Capital (PCC).
Em Porto Alegre, a juíza Elaine Canto da Fonseca recebeu um
recado desde uma prisão: deveria soltar presos que seriam julgados por ela.
Como se recusou se desloca desde o início do ano em carro blindado.
Em Mato Grosso do
Sul, o juiz federal Odilon de Oliveira convive com nove agentes federais de
escolta, inclusive dentro de casa.
Em Goiás, o juiz federal Paulo Augusto Moreira Lima pediu
afastamento do processo que conduzia contra o bicheiro Carlos Augusto Ramos, o
Carlinhos Cachoeira, após receber ameaças.
Cabia ao magistrado analisar denúncias contra 79 réus
supostamente vinculados ao bicheiro, entre eles 35 policiais. Em Rondônia, o
juiz trabalhista Rui Barbosa Carvalho passou a usar colete à prova de balas e
trocou de celular 12 vezes, em decorrência de ameaças recebidas após suspender
pagamento de precatórios por suspeita de fraude.
Casos como esses foram discutidos em 8 de outubro num
encontro de magistrados promovido em Manaus. O debate foi uma iniciativa do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que contabiliza este ano 182 juízes
ameaçados no país. Desses, apenas 60 contam com escolta.
Esse tipo de levantamento começou a ser feito em 2011, logo
após o assassinato da juíza fluminense Patrícia Acioli, morta com 21 tiros em
11 de agosto daquele ano. Investigações concluíram que ela foi executada por
PMs que tinha mandado prender, por integrarem milícias clandestinas.
Logo após a morte de Patrícia o CNJ contabilizou 150 juízes
brasileiros ameaçados. Mesmo com toda a comoção causada pelo assassinato da
magistrada, o número aumentou, passando aos atuais 182. Antes restritas a
magistrados criminais, agora a lista dos que estão na mira do crime inclui
também juízes trabalhistas, justamente pelas milionárias causas que costumam
julgar e os interesses que contrariam.
Zero Hora obteve uma listagem do número de ameaçados por
Estado, feita com base em relatórios dos Tribunais de Justiça. Os campeões em
magistrados jurados de morte em 2012 são Rio de Janeiro, com 29 ameaçados, e
Minas Gerais, também com 29. Alguns Estados com pequena população, como
Tocantins e Alagoas, surpreendem pelo número de magistrados em risco: 12, cada.
Apenas cinco Estados brasileiros não informam terem juízes ameaçados.
Diante desses números, o Rio Grande do Sul até parece um
paraíso. Apenas duas juízas requisitaram proteção este ano. E foram
contempladas com escolta.
– Felizmente, não temos tradição de riscos e muito menos de
ataques contra magistrados. E contamos com um Núcleo de Inteligência do
Judiciário para prevenir esse tipo de problema – explica o desembargador Tulio
Martins, do Conselho de Comunicação Social do Tribunal de Justiça-RS.
Dão apoio ao núcleo policiais militares, policiais civis e
agentes de segurança do Judiciário. Entre as providências rotineiras está
levantamento de possíveis inimigos dos juízes. Numa fase posterior, propiciar
escolta e carro blindado para qualquer magistrado sob risco, além do presidente
do TJ, sempre protegido.
O presidente da Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul
(Ajuris), Pio Dresch, diz que nem todos os casos chegam ao conhecimento do CNJ.
Um deles é a suposta contratação de pistoleiros para matar um juiz do Interior,
que acabou tirando licença para “esfriar” a ameaça.
– Um dos problemas que enfrentamos é que, devido à escassez
de magistrados, não é possível simplesmente transferir o juiz para outra
comarca, o que seria razoável. É preciso abrir vaga antes. A verdade é que
falta uma sistemática para lidar com magistrados em risco – desabafa Dresch.
Com escolta há 14 anos
O mais ameaçado juiz do país, Odilon de Oliveira, convive
com escolta desde 1998. Ele é o titular da 3ª Vara Federal de Campo Grande
(MS), especializada em narcotráfico. E já condenou mais de cem narcotraficantes
radicados na fronteira de Mato Grosso do Sul com o Paraguai e confiscou seus
bens.
– É viver com escolta ou me esconder – define Odilon, 63
anos, em entrevista a Zero Hora.
Odilon até perdeu a conta das ameaças recebidas: por
escrito, captadas em grampos telefônicos, sussurradas entre detentos
sul-mato-grossenses e até paraguaios. Por via das dúvidas, aceitou a oferta de
vigília permanente por parte de policiais federais. E ela é mesmo permanente.
Nove agentes se revezam como guarda-costas do juiz, que vai às compras com
eles, ao cinema (raras vezes) e também em viagens. Os federais ficam numa casa
contígua à do magistrado, mas dentro do mesmo terreno. Por onde se desloca, o
magistrado é seguido pelos protetores, com seus fuzis, metralhadoras e
pistolas.
Um dos que Odilon condenou é o gaúcho Erineu Domingos Soligo,
o Pingo, traficante radicado na fronteira Brasil-Paraguai, considerado um dos
chefes das máfias da região. Há um ano Odilon recebeu um e-mail, lembrando que
fará 70 anos em 25 de fevereiro de 2019 “e prejudicou muita gente.” Nesta data,
ele será obrigado a se aposentar e, em tese, perderá direito à escolta.
A família (mulher e dois filhos adultos) gostaria de ver
Odilon aposentado e em outro lugar, mas ele não tem pressa. Questionado se vale
à pena, responde rápido.
– Quem escolhe ser juiz ou policial não faz isso para ser
feliz. Faz porque pretende dar um retorno à sociedade. Criei-me na roça, trabalho desde os 10 anos de idade, poderia
estar aposentado. Mas ainda tenho muito a contribuir. Assumo o risco – conclui.
Carro blindado dia e noite
Juíza em Porto Alegre, Elaine Maria Canto da Fonseca julgava
homicídios (na 2ª Vara do Júri) quando começou a receber ligações anônimas, em
fevereiro deste ano. Ao telefone, pessoas informavam seus dados pessoais,
mostrando conhecimento de sua vida pessoal. Em março a situação piorou:
criminosos ligaram de uma penitenciária, exigindo que todos os pedidos de
relaxamento de prisão (libertação) feitos à juíza num período de 10 dias fossem
deferidos pela magistrada.
A ideia dos bandidos era liberar algumas pessoas, sem que os
culpados fossem identificados. Caso não fossem obedecidos, um dos dois filhos
da juíza seria morto.
Um dos telefonemas foi rastreado. Saiu do celular de um
preso paulista encarcerado no Presídio Central, embora ele negue ter feito a
ligação. O Ministério Público descobriu também que um PM ligou para um colega
do Centro integrado de Operações de Segurança Pública (Ciosp), pedindo para
levantar dados pessoais da juíza. Os dois policiais são investigados.
Elaine pediu afastamento do cargo e ganhou escolta. Estão à
disposição dela três carros blindados: um para ela, outro para familiares e o
terceiro para os seguranças. A juíza está agora trabalhando como auxiliar numa
Câmara Cível do Tribunal de Justiça. Bem longe da área criminal.
“A angústia é permanente”
Juíza gaúcha ameaçada
Uma juíza federal de
Pelotas enfrenta desde 2010 uma vida pautada por restrições. Evita sair
muito, cuida sempre quando entra ou sai do carro, repara em estranhos nas
esquinas. Providências que jamais imaginou tomar, antes de mandar 68 pessoas
para a cadeia num único dia. Foi em 2009, quando ela decretou a prisão
preventiva de suspeitos de envolvimento com uma rede internacional de
narcotráfico.
Denominada Operação Castelo, a ação desencadeada pela
Polícia Federal a partir dos mandados expedidos pela juíza (que prefere não ter
o nome divulgado) desbaratou um grupo que trazia drogas da Bolívia e do
Paraguai. Nesta entrevista, por telefone, a magistrada – casada, 38 anos, sem
filhos – detalha sua rotina desde que começou a julgar os envolvidos:
Zero Hora – No que consistia exatamente a Operação Castelo?
Juíza – O inquérito aponta que os criminosos movimentavam
mais de R$ 250 mil por semana, não só com tráfico, mas também com furtos e
assaltos a banco usados para financiar a compra de drogas. As investigações
identificaram 12 grupos que manipulavam cerca de cem quilos de crack e cocaína
por mês. A droga, boliviana, entrava no Brasil desde o território paraguaio.
Chegava a Porto Alegre e, dali, era enviada a Pelotas. Os crimes investigados
foram comprovados por meio de 18 flagrantes que resultaram na apreensão de,
aproximadamente, 40kg de crack, além de veículos e valores.
ZH – Quando a senhora acreditou que estava em momento de
risco?
Juíza – Quando começou a se aproximar o momento de julgar os
chefes do esquema. Comecei a receber recados de que os réus estavam
desconfortáveis. Advogados começaram a comentar que seria bom eu não julgar o
caso. Surgiram também rumores de que eu era seguida. Não foram ameaças diretas,
mas sinais, bastante perceptíveis, de que era bom tomar cuidado. E tomei. A
Justiça Federal me propiciou escolta do Grupo Especial de Segurança. Tenho
sempre agentes nas audiências e cuidando minha residência. E carro blindado, à
disposição. Vivo isso desde dezembro de 2010.
ZH – Os réus da Castelo têm motivo para se sentirem
desconfortáveis?
Juíza – Olha, o processo não terminou, mas 25 acusados foram
condenados a regime fechado (presídio). Alguns, a penas superiores a 20 anos. É
claro que preciso me cuidar, até porque muitos dos réus eram policiais ou
traficantes de renome. A angústia é permanente, até porque alguns réus estão
foragidos. Cuido-me e tenho porte de arma, o que ameniza. Afinal, escolhi essa
profissão.
ZH – O que a senhora acha da ideia de “juízes sem rosto”
apreciarem os processos?
Juíza – É uma ideia. Mas prefiro uma outra, que virou lei
este ano, no qual algumas sentenças podem ser assinadas por três juízes. Aí não
deixa tão pessoal a decisão de condenar.
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