Zero Hora revisita o
local depois da primeira incursão à cadeia, realizada em 2008
André Mags
Sob pressão internacional, o
Estado tem reformado pedaços do Presídio Central de Porto Alegre que até então
nunca tinham passado por obras. Zero Hora conferiu na última semana as
intervenções e comparou com a situação encontrada cinco anos atrás, na primeira
incursão à pior cadeia do Brasil. Conheça como está hoje o complexo de 26 mil
metros quadrados que se transformou em vergonha nacional.
Corredor do inferno não existe
mais
O maior símbolo da degradação do
Presídio Central de Porto Alegre não existe mais. As celas sem portas que
lembravam masmorras medievais estão sendo reformadas na terceira galeria do
pavilhão C, desativada em 2009. As paredes foram cimentadas, os buracos,
tapados.
Vazio, o espaço não exala a
podridão e o abandono de antes, registrados em imagens que correram o mundo e
motivaram uma denúncia contra o Brasil à Organização dos Estados Americanos
(OEA) por desrespeito aos direitos humanos, em janeiro deste ano. A situação
foi mostrada por Zero Hora em uma incursão pelo presídio em novembro de 2008,
em que foi confirmado o estado calamitoso da prisão.
A reforma da galeria, iniciada em
maio deste ano, é a principal modificação identificada por Zero Hora em nova
visita ao Central, realizada no final da tarde da última terça-feira. A
melhoria, feita com mão de obra prisional ao custo de R$ 50 mil, faz parte de
um rol de mudanças prometidas em resposta à OEA, para mostrar que algo está
sendo feito e evitar uma condenação internacional. Ao mesmo tempo, vigora a
mais recente promessa de desativação do presídio, para até o final de 2014.
Os últimos ocupantes da terceira
galeria foram integrantes de uma gangue cujo nome até hoje está pichado na
parede dos fundos: os Bala na Cara. Durante sua permanência, eles arrasaram o
setor. A gangue acabou transferida para a terceira galeria do pavilhão F. Como
contraste, na galeria do andar de baixo do pavilhão, a segunda do C, os presos
sempre cuidaram das instalações — "nem papel de bala eles atiram pela
janela", diz um policial. As portas, de madeira, são de 1959 (ano da
fundação do presídio) e estão inteiras.
Há cinco anos ou mais, a mescla
de maconha, urina e suor era a base olfativa das galerias do Presídio Central
de Porto Alegre, sobretudo na terceira galeria do pavilhão C. Na terça-feira,
os primeiros corredores rumo aos pavilhões C e D exalavam um cheiro fraco da
droga.
— É mais fácil ver eles fumando
no pátio — afirma um PM.
Foi com essa atmosfera que a
visita se iniciou.
Passarela torna a liberdade
perturbadora
Quem atravessa a passarela que se
estende em frente aos pavilhões C e D sente-se como parte do desfile dos livres
ante dezenas de encarcerados atrás de janelas gradeadas e cheias de trapos
pendurados. É um momento em que a liberdade se torna perturbadora. Se a
caminhada é na companhia do juiz da Vara de Execuções Criminais (VEC) de Porto
Alegre, Sidinei Brzuska, o incômodo fica mais evidente por causa da onda de
reivindicações.
— Ei, doutor Brazuska! — grita um
detento atrás das grades no início do passeio em frente ao pavilhão D,
tropeçando no sobrenome do juiz.
— Faz anos que eu tô aqui e não
me chamam para nada! Doutor, me tira desse lugar! — berra o apenado Marcelo
Rosa da Silva.
O "não me chamam para
nada" era uma referência à progressão de regime. Silva considerava que
tinha direito a ir do fechado para o semiaberto. Brzuska pediu à reportagem
para anotar o nome do rapaz, que cumpre sua pena na segunda galeria do pavilhão
D. Os gritos continuavam. A passarela tem uns 170 metros. Ida e volta parecem
uma viagem interminável.
— Ei! Doutor!
— Ei! Justiça!
— Quero ir embora!
O juiz tenta acenar com algum
alento, mas não pode atender a todos. Responde alto, ainda que sem gritar.
— Agora não tenho como ver isso —
avisa aos presos apoiados nas grades.
No chão do pátio abaixo das
janelas dos presos foi construída uma espécie de calçada em que ninguém
caminha. Apenados não têm acesso ao local, e os guardas também passam longe
dali. Serviria mais aos deslocamentos das ratazanas king size que antes se
refestelavam no lixo amontoado sob as janelas. A população de roedores, antigos
habitués do Central, reduziu em cerca de 80% com as recentes desratizações,
calcula o assessor de logística do presídio, capitão Hermes Volker.
— Durante o dia, em cinco minutos
se enxergava uns 10 ratos. Nunca chegou a ter centenas de uma vez só, mas tinha
bastante — compara o capitão.
Já o lixo jogado pelas janelas
continua amontoado no pátio, assim como o fedor onipresente de esgoto
extravasado — o sistema não comporta os dejetos de 4,3 mil presos em um lugar
onde deveria haver 2 mil.
Entre os pavilhões C e D, um som
vindo do interior dos prédios fica perfeitamente audível. Uma música brega de
amor em volume altíssimo embala o tédio dentro do D. É sempre assim, como se
fosse uma festa? O diretor operacional do presídio, major Guatemi Echart,
responde laconicamente:
— Não.
De volta ao interior da cadeia,
as tentativas de entregar papeizinhos com pedidos não cessam nas celas. O juiz
recolhe um. Depois, pede para anotar outro nome, o de Geverson Eduardo
Gonçalves Silvino. Questionado se as reivindicações são factíveis, Brzuska é
sucinto:
— Às vezes, sim. Às vezes, não.
O juiz analisou os casos de Silva
e de Silvino. O primeiro terá de aguardar talvez mais do que imaginava, pois só
ganhará direito ao semiaberto em 2016. Já Silvino estava com a razão ao chamar
a atenção de Brzuska. Ele tem um exame criminológico pendente. É esse exame que
pode permitir a passagem para um regime mais brando.
Na galeria esvaziada, um gato
preto
O "pior presídio do
Brasil" ou a "masmorra do século 21" — definições dadas pela CPI
do Sistema Carcerário, em 2009 —, ganha um banho quando é véspera de visita. No
pavilhão B, a massa carcerária fazia uma faxina para receber familiares no dia
seguinte com a casa arrumada. Como efeito da limpeza, uma nuvem de moscas de
espalhou, perdida, pelos corredores mais próximos. Quando a reportagem passou
pelos presidiários, separados por uma tela, eles viravam as costas. O major
explicou que o comportamento faz parte de um acordo tácito: vocês não mexem com
as nossas visitas e nós não mexemos com as de vocês.
No pavilhão A, uma galeria foi
esvaziada para que pudesse ser visitada. Porém, parecia que os presos ainda
estavam presentes. O ar, com jeito de ter sido muitas vezes respirado até
poucos instantes antes de a equipe de ZH entrar na galeria, se mantinha quente
e pesado, e o cheiro de suor se misturava com o de massa cozida, a provável
boia que os detentos preparavam em fogareiros improvisados quando tiveram de
sair do local.
As más condições e a superlotação
são responsáveis pela disseminação de doenças — broncopneumonia, pneumonia e
tuberculose são as principais. Na comparação com 2008, percebe-se que algumas
paredes foram rebocadas. A estrutura dos banheiros está um pouco melhor. No
entanto, passados cinco anos, o aspecto geral é de deterioração ainda maior,
observou Brzuska.
Uma geladeira estava isolada, no
meio do corredor. O som de dezenas de TVs e rádios deixados ligados, talvez por
causa da rapidez com que os presos foram obrigados a abandonar as celas sem
portas, chamava a atenção.
As vidas de 330 encarcerados
estavam ali, expostas e remediadas em pedaços de pano colorido que compunham
uma espécie de papel de parede em alguns cubículos, em colchões ralos e sujos
ainda amassados pelo peso dos corpos, em cobertores desarrumados bruscamente,
chinelos largados em cantos e tênis enfiados em buracos nas paredes de 42 celas
que deveriam conter 84 homens. No cárcere mais próximo da entrada da galeria, a
surpresa: um gato preto. Deitado sobre uma pilha de cobertores, o filhote
aguardava pacientemente o retorno do seu dono.
Evangélicos na cozinha remodelada
A cozinha nunca foi o pior lugar
do Central. Ainda assim, era uma sauna para a tropa de cozinheiros-detentos
porque alcançava os 40ºC. No final de julho de 2012, a área foi reinaugurada em
um novo local, ao custo de R$ 1,2 milhão, incluindo a colocação de 145 metros
de piso de basalto, bancadas, cinco panelões com capacidade para acondicionar
500 quilos de comida, instalações de coifas e reformas na rede de esgoto. O
ambiente é um pouco mais arejado do que o anterior, mas a maior alteração foi a
aposentadoria das antigas caldeiras, que funcionavam desde a inauguração do
presídio, em 1959. O sistema atual é a gás, e em breve uma cozinha experimental
do Senac deve começar a operar ali.
Na última terça-feira, o trabalho
dos cozinheiros era orquestrado por uma música evangélica. Religião e comida
estão juntas no Central porque os 60 presos que trabalham na cozinha foram
inseridos em um projeto evangélico de recuperação de detentos. O clima mudou, o
odor de gordura ainda não impregnou totalmente no novo espaço, mas as
exigências continuam as mesmas — é preciso contar com o carregamento de pães já
às 3h e aprontar o café da manhã de toda a população carcerária do Central até
as 5h. Não é recomendável falhar no fornecimento do rango aos presos.
Investimentos antes da implosão
O titular da Superintendência dos
Serviços Penitenciários (Susepe), Gelson Treiesleben, prefere não ligar os
investimentos de cerca de R$ 1,25 milhão no pavilhão C (o mais destruído) e na
cozinha à denúncia feita à OEA, e sim à urgência ante as péssimas condições de
habitabilidade do presídio. Sobre as reformas em um estabelecimento com prazo
para ser desativado, ele lançou uma metáfora:
— Vou usar um jargão da medicina.
Nós sabemos que o paciente está doente, porém, não vamos deixar de medicá-lo,
mesmo que futuramente ele possa morrer.
A Susepe pretende reduzir
gradualmente a superlotação do Central, limitando a cadeia à capacidade máxima
de 2.069 detentos — na última quarta-feira, havia 4.367 presos. Aos poucos, os
presidiários devem ser transferidos para outras penitenciárias em construção, à
medida que ficarem prontas. A meta é contar com oito novos estabelecimentos
prisionais para onde serão encaminhados os detentos do Central até o final de
2014 — data em que se estipula uma possível desativação do pior presídio do
Brasil.
As cadeias em construção
- Canoas 1 (393 vagas): previsão
de entrega em abril ou maio de 2014
- Canoas 2, 3 e 4 (2.415 vagas):
até metade de 2014
- Guaíba (672 vagas): final de
2014
- Modulada de Montenegro (500
vagas em um novo módulo): dezembro de 2013 ou janeiro de 2014
- Modulada de Charqueadas (250 em
um novo módulo): falta construir guarita e passarela
- Venâncio Aires (529 vagas):
final de 2013
Total de vagas: 4.759
ANTES E DEPOIS: o Presídio
Central, cinco anos depois
(Imagens)
Daniel Marenco, em 07/11/2008 e Lauro Alves, em 30/10/2013 |
Daniel Marenco, em 07/11/2008 e Lauro Alves, 30/10/2013 |
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