Ana Cláudia Lucas Para o Blog |
O procedimento para apuração da responsabilidade penal por prática de crimes dolosos contra a vida, e seus conexos – o conhecido rito do Tribunal do Júri – é, na concepção brasileira, bipartido. Comporta uma primeira parte, chamada de “judicium accusationis” e outra, a segunda, identificada como “judicium causae”.
O ‘judicium accusationis’ tem início com o recebimento da denúncia (ou, se for o caso, nas situações excepcionais, com a queixa), e extingue-se com a sentença de pronúncia, que determinará se o réu deve ser, ou não, submetido à segunda parte do procedimento, o ‘judicium causae’, que corresponde ao Plenário do Júri, junto ao Conselho de Sentença (Jurados).
A primeira etapa – judicium accusationis – desenvolve-se na presença do juiz singular – o magistrado que Preside a Vara do Tribunal do Júri - e que, por isso mesmo, será o responsável pela presidência dos trabalhos na sessão plenária do Tribunal do Júri.
Segundo a legislação processual penal vigente, o procedimento a ser obedecido é regulado pelos artigos 406 a 421 do CPP.
Já a instrução em Plenário – ‘judicium causae’, rege-se pelos artigos 473 a 493 do Código de Processo Penal.
Durante a primeira etapa do procedimento, o juiz deverá oportunizar ao acusado a apresentação de resposta à acusação - artigo 406 – e, determinará, na seqüência, depois de ouvido o Ministério Público ou o Querelante, na realização de audiência de instrução. Nela, será ouvida a vítima (quando possível), e as testemunhas de acusação e as de defesa, bem como proceder-se-á nos esclarecimentos de peritos, acareações, reconhecimento de pessoas e coisas, interrogando-se, por fim, o acusado, seguindo-se os debates, com alegações orais ou, escritas (memoriais). O juiz deverá, então, proferir sua decisão, pronunciando, impronunciando ou absolvendo o acusado.
Interessa-nos, particularmente, a decisão de pronúncia, sentença através da qual o juiz, fundamentadamente, indicará o acusado para submissão ao ’judicium causae’, se convencido da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação (vide artigo 413 do CPP).
Nessa decisão, a fundamentação dada pelo magistrado deve limitar-se à indicação da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria ou de participação, devendo o juiz declarar o dispositivo legal em que julgar incurso o acusado e especificar as circunstâncias qualificadoras e as causas de aumento de pena, tudo conforme estabelece, expressamente, o parágrafo primeiro do mesmo artigo 413 do CPP.
Sustenta-se, com alguma freqüência, que o verdadeiro julgamento em Procedimento do Tribunal do Júri ocorre apenas no segundo período, momento em que os jurados decidirão sobre a culpa do réu. Além disso, afirma-se que a primeira etapa constitui-se momento de mero juízo de admissibilidade da acusação.
Tem sido comum, contudo, que os juizes adotem, por ocasião da decisão de pronúncia, um comportamento de ‘lava mãos’, negando-se enfrentar a situações em que há indicação de fato diverso dos referidos no artigo 74, parágrafo primeiro do CPP, que atribui competência ao Tribunal do Júri para os crimes dolosos contra a vida, e seus conexos, justificando, a pronúncia, no ‘in dúbio pro societate’.
Assim, quando há dúvida sobre a existência de crime doloso contra a vida – especialmente na discussão sobre dolo eventual versus culpa – e as circunstâncias provadas durante o ‘jus accusationis’ não indicam certa a ocorrência de dolo, os juizes, em decisões desacertadas, optam por pronunciar o acusado sob o argumento de que, nesse momento, prevalece o ‘in dúbio pro societate’.
Ora, é absolutamente inadequada essa postura adotada por alguns juízes. Se o magistrado precisa indicar o dispositivo legal em que julga incurso o acusado ele, obviamente, não poderá escapar do enfrentamento da matéria, indicando, sim, de forma induvidosa, a respeito da presença do dolo, apto a justificar o julgamento do tribunal do júri.
Se o juiz precisa se convencer da materialidade do fato e da existência de indícios suficientes de autoria para pronunciar o acusado, é certo que ele deve fundamentar sua decisão de pronúncia no convencimento da existência do crime, isto, de um fato típico, ilícito e culpável, de um injusto típico. E, se o dolo e a culpa integram o tipo penal, e só aos crimes dolosos contra a vida deve ser garantida a instituição do júri, não pode o julgador togado furtar-se a análise conceitual desses institutos. Ele precisa indicar aquele que está presente no fato típico verificado, pois somente assim será razoável a pronúncia: o juiz pronuncia porque, nesse caso, entende, sem dúvida, existir crime doloso contra a vida.
Ao contrário, se houver dúvida, se o juiz togado, a partir do ‘jus accusationis’ não pode indicar, seguramente, que haja dolo ou culpa, haverá crime culposo, não cabendo, assim, a pronúncia.
O juiz togado não pode deixar de avaliar a presença do elemento subjetivo, de modo a entregar o acusado (que ele não poderia condenar, pela dúvida) aos azares de um julgamento pelos jurados, que só têm competência para julgarem os crimes contra a vida, sendo dolosos, havendo prova indicativa da materialidade e da autoria. O papel da sentença de pronúncia, fundamentada e justificada, é impedir a que um inocente seja submetido aos riscos do julgamento social, muitas vezes absoluto e incensurável.
Exatamente por isso não se pode escamotear a fundamentação necessária da pronúncia no brocardo do’in dúbio pro societate’.
O atributo dos indícios que devem subsidiar a decisão de pronúncia – suficientes – não está colocado na lei por mero adereço. Suficiente é o bastante apto, o capaz, o apropriado, no caso, para pronunciar (diga-se, condenar).
Assim, o princípio (?) in dúbio pro societate não passa de uma frase de efeito, sem laços de parentesco ou adequação com um sistema jurídico garantista. Não é aceitável a tese, sob qualquer argumentação, de que na fase da pronúncia vigore tal princípio.
O julgamento pelo Tribunal do Júri, para além de estar assegurado na legislação infraconstitucional é direito e garantia fundamental. Por isso, tem por função proteger os cidadãos, e não pode ser usado, assim, contra o interesse de cidadania.
Com a inserção do Tribunal do Júri no artigo 5º da Constituição Federal quis o constituinte dizer que ninguém pode ser condenado por juiz togado em se tratando de crime doloso contra a vida. Mas, absolvido, pode. Ou seja, existindo as mesmas condições em que seria absolvido se fosse outra a natureza do delito – presença da dúvida (in dúbio pro reo) – deve o acusado ser absolvido.
Ora, se em casos de julgamento monocrático, restando dúvida, o juiz deve absolver o réu, por ser princípio de direito penal e processual penal (in dúbio pro reo), por que não se deveria aplicar o mesmo tratamento em versando a acusação por crime, apenas aparentemente, doloso contra a vida?
Não é compreensível a tese de que fosse o crime de natureza diversa dos dolosos contra a vida – significa dizer, naqueles que o cidadão não tem a garantia de ser julgado por seus pares – na dúvida, o juiz deva absolvê-lo; mas, naquele em que o acusado tem essa prerrogativa – de ser julgado por seus iguais – ele perca esse direito.
É preciso incrementar uma nova tendência no momento atual – tanto na doutrina quanto na jurisprudência – sobre a inadequação da decisão de pronúncia fundada no 'in dúbio pro societate', porque se assim não suceder, se diante da simples possibilidade de ter havido crime doloso contra a vida o acusado for submetido à Júri popular, ter-se-á por aberto uma duvidosa surpresa jurídica: a garantia contra condenação arbitrária transformada em exposição ao ímpeto de uma condenação discricionária.
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