Em abordagem alinhada a
estudo recente da Fiocruz, polícia impõe menos rigor no combate aos usuários de
crack
A porta de metal do condomínio na Cohab-Cavalhada, na zona
sul de Porto Alegre, resistiu por alguns segundos, até finalmente ceder ao
alicate dos policiais do Departamento Estadual de Investigação do Narcotráfico
(Denarc). Enfim, eles ingressaram no prédio – de acesso complicado mesmo para
agentes experientes, principalmente à noite, por causa da arquitetura
labiríntica e da presença de grupos de traficantes na região. Passava das 6h de
sexta-feira, a área estava calma, e a maioria dos moradores levantava,
sonolenta, com o barulho dos chutes na porta de madeira de um apartamento
térreo, enquanto uma informante dos traficantes alardeava na esquina, por
celular, a chegada da polícia. Com o mandado de busca e apreensão em mãos, os
policiais entraram no ambiente escuro. Até que um grito veio do quarto:
– O que é isso?
Era uma garota de 15 anos. Ela estava sozinha em um imóvel
onde um suspeito poderia estar escondendo drogas. Ele não foi localizado. O que
fazer com a jovem, que poderia estar sendo usada pelos traficantes? A situação
tende a deixar os policiais sem ação. Mas, naquela manhã, o delegado Mario
Souza sacou um documento e começou a preenchê-lo, à medida que interrogava a
jovem. Tratava-se de uma novidade usada pela polícia gaúcha no combate ao
crack: o Relatório de Risco Social (RRS).
Em ações como a do Denarc, é comum os agentes toparem com
mulheres grávidas, crianças, depen- dentes químicos e deficientes habitando o
mesmo ambiente dos traficantes. Normalmente, com a prisão do criminoso, alguém
acaba envolvido no tráfico, a mando do dono da boca ou por iniciativa própria,
para tentar manter o sustento da família. E, nesses casos, mais cedo ou mais
tarde, a polícia precisa voltar ao local para fazer novas prisões.
Ideia é facilitar a aproximação de outros órgãos, que
auxiliariam na luta contra o crack
De tanto “enxugar gelo”, o delegado Heliomar Franco, diretor
de investigação do Denarc, criou um projeto-piloto que tem visa a informar
outras secretarias sobre o que encontra em locais às vezes acessíveis somente à
polícia. A ideia é permitir que órgãos voltados ao acolhimento de crianças e
adolescentes, à saúde e ao emprego, entre outros, possam se envolver e
colaborar na luta contra as drogas – especialmente o crack. Assim, surgiu o
RRS.
A nova forma de tratar o assunto mostra-se alinhada a
recente pesquisa apresentada pela Fundação Oswaldo Cruz (leia ao lado).
– A gente não gostaria de voltar a alguns locais. Prendemos
o traficante e deixamos lá alguém que vai assumir o lugar dele. O policial tem
o olhar para identificar essa situação, e preenche o relatório. A direção
avalia o risco social e encaminha a alguma secretaria do Estado. Esperamos que
elas participem para que essas pessoas não sejam cooptadas pelo tráfico –
explica o delegado, que espera testar um pouco mais a novidade antes de
envolver outras secretarias no projeto.
Pesquisa propõe menos rigor
Se até o braço repressor do Estado tem buscado alternativas
na guerra contra o crack, é possível concluir que a atual política não tem dado
resultado. Com outro viés, na semana passada foi divulgada uma pesquisa sobre o
perfil de usuários de crack no Brasil, feita pela Fundação Oswaldo Cruz
(Fiocruz).
O estudo, que tem sido visto como prova de que o problema
nasce das mazelas sociais, se tornou o bastião dos críticos das estratégias
mais duras, como o tratamento compulsório.
– O principal achado é o perfil de exclusão social dos
usuários. Isso é muito forte. A pesquisa esvazia o debate sobre internação
compulsória – diz o secretário Nacional de Políticas sobre Drogas, Vitore
Maximiano.
O estudo, porém, virou alvo da ira dos defensores da
repressão. O número de usuários de estimado na pesquisa (370 mil nas capitais e
no Distrito Federal) foi considerado baixo.
“Não temos a união de família. É cada um por si”
Há duas semanas e três dias internado, o microempresário de
34 anos, olhos azuis e cabelos loiros arrumados com gel diverge do estereótipo
do viciado em crack, normalmente não branco. Mas uma característica o
identifica com os demais usuários: a família desestabilizada.
A droga ocupou o vazio deixado pelo pai, internado em uma
clínica geriátrica, por dois irmãos alcoólatras, outro irmão foragido e outro
internado para tratamento do vício em crack.
– Não temos a união de família. É difícil ter na família um
churrasco ou uma ceia de Natal agradável. É cada um por si – lamenta o
microempresário.
Ao longo dos quatro primeiros anos de vício, manteve-se
trabalhando – fumava até três vezes por semana, mas evitava quando tinha
serviço. A postura contradiz a teoria do usuário “zumbi”, dominado pela droga e
sem forças para se manter centrado em atividades que exijam maior dedicação.
– O usuário tende a se focar no hoje – diz o chefe da
Unidade de Psiquiatria de Adição do Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
psiquiatra Felix Kessler.
Fonte: Zero Hora
Nenhum comentário:
Postar um comentário