Castigo mais duro, herança dos EUA de Reagan, transforma
criminoso leve em profissional, diz professor de Bolonha
"É UM PECADO , uma ideia louca" a noção de que
penas maiores de prisão aumentem a segurança. "Acontece o contrário. Penas
maiores produzem mais insegurança", diz o italiano Massimo Pavarini, 62,
professor da Universidade de Bolonha e considerado um dos maiores penalistas da
Europa. Ele dá um exemplo: "Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais
profissional ele será quando voltar ao crime".
Ligado ao pensamento de esquerda, Massimo Pavarini diz que
essa ideia de punir mais teve como origem os EUA de Ronald Reagan, nos anos 80,
e difundiu-se pelo mundo "como uma doença". A eleição de Barack Obama
à Presidência dos EUA pode ser um sinal de que esse ideário se esgotou,
acredita. Pavarini esteve em São Paulo na última semana para participar do
congresso do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais), onde deu a
seguinte entrevista:
FOLHA - O sr. diz que o direito penal está em crise porque o
discurso pró-punição está desacreditado e a ideia de ressocialização não
funciona. O que fazer?
MASSIMO PAVARINI - O cárcere parecia um invento bom no final
de 1700, quando foi criado, mas hoje não demonstra mais êxito positivo. O que
significa êxito positivo? Significa que o Estado moderno pode justificar a pena
privativa de liberdade. Sempre se fala que o direito penal tem quatro
finalidades:
serve para educar, produzir medo, neutralizar os mais
perigosos e tem uma função simbólica, no sentido de falar para as pessoas
honestas o que é o bem, o que é o mal e castigar o mal.
Após dois séculos de investigação, todas as pesquisas dizem
que não temos provas de que a prisão efetivamente seja capaz de reabilitar.
Isso acontece em todos os lugares do mundo.
FOLHA - O que fazer, então?
PAVARINI - As prisões já não produzem suficientemente medo
para limitar a criminalidade. Todos os criminólogos são céticos. O direito
penal fracassou em todas as suas finalidades. Não conheço nenhum teórico
otimista. Isso não significa que não possa haver alternativas. Há um movimento
internacional em busca de penas alternativas. O que se imagina é que, se a
prisão fracassou, a pena alternativa pode ter êxito punitivo. Há penas
alternativas há três décadas e, se alguma pode surtir efeito, foi em algum momento
específico, que não pode ser reproduzido em um lugar com história e recursos
econômicos diferentes.
FOLHA - Numa conferência, o sr. disse que o Estado
neoliberal, que começou na Inglaterra e nos EUA, não pensa mais em
ressocializar o preso, mas em neutralizá-lo. Por que morreu a ideia de
recuperar o preso?
PAVARINI - Já se sabia que não dá para ressocializar o
preso. O problema é outro. Existe uma obra bem famosa dos anos 70, chamada
"Nothing Works" [nada funciona]. O livro foi escrito quando [Ronald]
Reagan era governador da Califórnia [1967-1975]. Ele criou uma equipe de
cientistas, de todas as cores políticas, e deu-lhes um montão de dinheiro. A
pergunta era muito simples: você pode mostrar que o modelo de ressocialização
dos presos tem um êxito positivo? Os cientistas pesquisaram muito e no final
escreveram "nothing works". A prisão não funciona nos EUA, na Europa
nem na América Latina. Nada funciona se você pensa que a prisão pode
reabilitar. Não pode. O cárcere tem o papel de neutralizar seletivamente quem
comete crimes.
FOLHA - Ele cumpre esse papel?
PAVARINI - Pode cumprir. O problema é que a neutralização do
inimigo, a forma como o neoliberal vê o delinquente, significa o fim do Estado
de direito. O primeiro problema é que você não sabe quantos são os inimigos.
Essa é a loucura.
Os EUA prendem 2,75 milhões todos os dias. Mais de 5% da
população vive nas prisões. São 750 presos por 100 mil habitantes. Há ainda os
que cumprem penas alternativas. Esses são 5 milhões. Portanto, são 7,5 milhões
na América os que estão penalmente controlados. Aqui no Brasil são 300 presos
por 100 mil habitantes.
FOLHA - Há teóricos que dizem que nos EUA as prisões se
converteram em um sistema de controle social.
PAVARINI - Sim, isso ocorre. O setor carcerário nos EUA é quase
tão forte quanto as fábricas de armas. Muitas prisões são privadas. É um bom
negócio. O paradoxo dos EUA é que em 75, quando Reagan começa a buscar a
Presidência, os EUA tinham 100 presos por 100 mil habitantes. Após 30 anos, a
taxa multiplicou-se por oito. Os EUA não tinham uma tradição de prender muito.
Prendiam menos do que a Inglaterra.
FOLHA - O senso comum diz que os presos crescem
exponencialmente porque aumentou a violência.
PAVARINI - Isso é muito complicado. Se a pergunta é
"existe uma relação direta entre aumento da criminalidade e aumento da
população presa?", qualquer criminólogo do mundo, eu creio, vai dizer não.
Os EUA não têm uma criminalidade brutal. Ela é comparável à criminalidade
europeia. Eles têm um problema específico: o número elevado de casas com armas
de fogo curtas. Um assalto vira homicídio.
FOLHA - Por que prendem tanto?
PAVARINI - Os EUA prendem não tanto pelo crime, mas por medo
social. Essa é a questão. A origem do medo social é bastante complexa, mas para
mim tem uma relação mais forte com a crise do Estado de bem-estar social do que
com o aumento da criminalidade. É um problema de inclusão social. Os
neoliberais dizem que não dá para incluir todas as pessoas que não têm
trabalho, os inválidos, os que estão fora do mercado. Os criminosos são os
primeiros dessa categoria. Uma regra que ajudou a aumentar a população
carcerária foi retirada do beisebol: três faltas e você está fora. Em direito
penal isso significa que após três delitos, que podem ser pequenos, você está preso.
Você está fora porque não temos paciência para tratá-lo. Vamos eliminá-lo.
FOLHA - Eliminar é o papel principal das prisões, então?
PAVARINI - É um dos papéis. O direito penal é cada vez mais
duro, as sentenças são mais longas, "life sentence" [prisão perpétua]
é mais frequente, aplica-se a pena de morte.
FOLHA - Como essa ideia neoliberal funciona onde há muita
exclusão?
PAVARINI - Vou dizer algo que parece piada: quando os EUA
dizem uma coisa, essa coisa é muito importante. Podem ser coisas brutais,
grosseiras, mas quem diz são os EUA. Como imaginar que na Itália e na França,
que têm ótimos vinhos, os jovens preferem Coca-Cola?
Não se entende. É o poder dos EUA que explica isso. A ideia
de como castigar, porque castigar e quem castigar faz parte de uma visão de
mundo. Se a América tem essa visão de mundo, isso se reproduz no mundo.
FOLHA - É por essa razão que cresce o número de presos no
mundo?
PAVARINI - Isso é um absurdo.
Dos 180 e poucos países do mundo, não passam de 10, 15 os
que têm reduzido o número de presos. Na Itália, temos 100 presos por 100 mil
habitantes.
Há 30 anos, porém, eram 25 por 100 mil. Aumentou quatro
vezes em três décadas. Isso acontece na Ásia, na África, em países que não se
pode comparar com os EUA e a Europa.
Creio que é uma onda do pensamento neoliberal, que se
converte em políticas de direito penal mais severo. É engraçado que os EUA, nos
anos 50 e 60, eram os mais progressistas em política penal, gastavam um montão
de dinheiro com penas alternativas. Mas hoje as pessoas acham que o direito
penal que castiga mais tem mais eficiência. Isso é desastroso. Nos EUA, o
número de presos cresce também porque há um negócio penitenciário.
FOLHA - O que há de errado com esse tipo de negócio?
PAVARINI - Os EUA têm cerca de 15% dos presos em cárceres
privatizados. É uma ótima solução para a empresa que dirige a prisão. Ela
sempre vai querer ter um montão de presos, é claro, para ganhar mais dinheiro,
e isso nem sempre é a melhor política. É um negócio perverso.
Os empresários financiam lobistas que vão difundir o medo.
É um desastre. Mas pode ser que tudo isso mude. Obama parece
ter uma visão oposta à dos neoliberais e já demonstra isso na saúde pública, um
tema ligado à inclusão social. O difícil é que não há uma ideia suficientemente
forte para se opor ao pensamento neoliberal sobre as penas. A esquerda não tem
uma ideia para contrapor. Os políticos sabem que, se não têm um discurso duro
contra o crime, eles perdem votos.
FOLHA - No Brasil, os políticos e a população defendem o
aumento das penas. Penas maiores significam mais segurança?
PAVARINI - Isso é um pecado, uma ideia louca, absurda.
Acontece o contrário. Penas maiores produzem mais insegurança. É claro, um país
não pode neutralizar todos os criminosos. Nos EUA, eles podem colocar na prisão
o garoto que vende maconha. Prende por um, dois, cinco anos, e ele vai virar um
criminoso profissional. Quanto mais se castiga um criminoso leve, mais
profissional ele será quando voltar ao crime. Há mais de um século se diz que a
prisão é a universidade do crime. É verdade. Mas, se um político diz
"vamos buscar trabalho para esse garoto", ele não ganha nada.
FOLHA - No Estado de São Paulo, o mais rico do país, faltam
55 mil vagas nos presídios e as prisões são muito precárias. Por que um Estado
rico tem presídios tão ruins?
PAVARINI - Há uma regra econômica que diz que a prisão, em
qualquer lugar do mundo, deve ter uma qualidade de sobrevivência inferior à
pior qualidade de vida em liberdade. Como aqui há favelas, as prisões têm de
ser piores do que as piores favelas. A prisão tem de oferecer uma diferenciação
social entre o pobre bom e o pobre delinquente. Claro que São Paulo poderia
oferecer um presídio que é uma universidade, mas isso seria intolerável. O
presídio ruim tem função simbólica.
FOLHA - Em São Paulo, o número de presos cresce à razão de
6.000 por mês. Faz sentido construir um presídio novo por mês?
PAVARINI - Mais cárceres significam mais presos. Se você tem
mais presídios, você castiga mais. Por isso os países promovem moratórias,
decidem não construir mais presídios.
FOLHA - Políticos dizem que mais presídios melhoram a
segurança.
PAVARINI - A única coisa que você pode dizer é que mais
presídios significa mais população presa. Há milhões de pessoas que delinqúem
diariamente, e os presos são uma minoria. O sistema penal é seletivo, não pode
castigar todos. As pessoas dizem que o crime não compensa, mas o crime compensa
muito. O sistema não tem eficiência para castigar todos.
Quando você aumenta muito a população carcerária, algo
precisa ser feito. Na Itália, há cada cada quatro, cinco anos há anistia. Entre
os nórdicos, quando um juiz condena um preso, ele precisa saber a quantidade de
vagas na prisão. Se não há vaga, outro preso precisa sair. O juiz indica quem
sai. Porque é preciso responsabilizar o Poder Judiciário e a polícia pelos
presídios. O cárcere tem de ser destinado aos mais perigosos. Uma prisão de
merda custa 250 por dia na Itália. Não faz sentido usar algo tão caro para
qualquer criminoso.
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