Pendurando a meia na árvore
Nesta época ficamos mais sensíveis. Fazem-se festas com “amigo oculto”, mandam-se cartões e também são elaboradas listas de pedidos ao Papai Noel. Quando menino, tinha de me ajoelhar diante do Weihnachtsmann e fazer uma pequena oração, para que, depois, pudesse fazer meus pedidos. Assim era a oração: “Ich bin Klein, mein Herz ist rein, Darf niemand drin wohnen als Jesus allein” (“sou pequeno, meu coração é puro, nele não deve morar ninguém, a não ser Jesus”). Sem pieguice, mas, repetindo isso agora, uma pequena lágrima desceu pelas rugas que já tenho. Embarguei. Mesmo. Lembrei também que, um mês antes do Natal, rezava todas as noites, como num pensamento mágico. Mesmo pobre de marré, achava que, rezando, Papai Noel viria. Mas, vamos lá. Como deveria ser a lista de um jurista para o Papai Noel? Como em um pensamento mágico “daqueles tempos”... Vai que dá certo... afinal, sou pequeno, meu coração é puro... Então:
1. Que voltemos a
ter “casos jurídicos” e não meramente “teses” discutidas abstratamente, através
de enunciados feitos em reuniões realizadas em finos hotéis litorâneos ou
produtos de ementas fabricadas por estagiários. E que os doutrinadores não
caiam na armadilha de saírem por aí comentando os tais enunciados... que, como
se sabe, Papai Noel, não são lei.
2. Que as provas
sejam examinadas pelos juízes e tribunais, e que os casos subjacentes aos
processos sejam vistos sob uma ótica normativo-constitucional e não meramente
econômico-quantitativa. De que por trás dos processos há pessoas (e na frente
deles haja também).
3. Que as partes,
querido Papai Noel, não sejam mais tratadas como requerente, requerido ou, para
nossa vergonha, suplicante e suplicado, mas como cidadãos que merecem igual
respeito e consideração, seja qual for a posição que ocupem nos polos das
relações jurídicas. Que às partes se reconheça igual dignidade,
independentemente do status ou posição financeira e social que ocupem. Que a
igualdade seja a virtude soberana e que essa igualdade transborde do discurso
para as práticas judiciais.
4. Que, quando uma
lei for aprovada pelo Parlamento e esta não for inconstitucional (e não se
enquadrar nas seis hipóteses de que falo no Verdade e
Consenso), o Judiciário simplesmente... a aplique. Sim: um faz a lei, o outro...
a aplica.
5. Que seja
proibido o uso de princípios flambadores no Direito, como o da “confiança no
juiz da causa”, da “rotatividade”, do “fato consumado”, da “amorosidade” e
similares. Querido Santa Claus: não dá mais para aguentar isso.
6. Que, por favor,
não mais se use a frase “na colisão de regras, age-se no tudo ou nada” e
colisão de princípios “usa-se a ponderação” e que não mais se escreva ou diga
que “princípios são valores”.
7. Que seja
proibido dizer que Kelsen era um positivista exegético ou legalista (Papai
Noel, não traga presentes para quem disser isso).
8. Que os
“ponderadores” não usem mais o exemplo do caso Lüth (e ainda dizendo Lut), sem
saber do que se trata.
9. Que os professores
parem de querer fazer espetáculo nas salas de aula, cantando, gritando e
fazendo charadinhas para decorar “fórmulas” jurídicas; violão e músicas da
Xuxa, nem pensar, Papai Noel.
10. Querido Santa
Claus: Que os professores que se apresentam na TV falando de prescrição e
decadência, função social da propriedade (bem novo isso, não?), erro de tipo,
direito do consumidor ou do direito dos portos (ou algo assim) usando exemplos
infames e colando de seus tablets sejam submetidos às
provas dos concursos públicos para os quais eles mesmos dizem estar “dando
dicas”; se não passarem, devem prometer não mais ir à TV.
11. Que os
advogados de todo o Brasil não mais sejam humilhados nas audiências,
principalmente na justiça do trabalho e que quando o advogado tiver uma
pergunta indeferida e pedir para consignar na ata, que o juiz não diga que o
advogado o está desrespeitando (Papai Noel, seja duro nisso, tá?).
12. Que os
servidores de balcão do Judiciário não tratem a “repartição” como se fosse sua
ou se estivessem fazendo favor ao jovem causídico; às vezes, é a sua primeira
causa (Papai Noel, zele pelos jovens causídicos; não deixe que os
serventuários, porteiros ou juízes os maltratem).
13. Que os
desembargadores e ministros, durante a sustentação oral das partes, não fiquem
olhando os seus tablets; prestem atenção
no esfalfelamento do causídico (ou finjam que estão prestando atenção).
14. Papai Noel –
eis um pedido sarcástico: Que os Tribunais de todo o Brasil façam licitações
(qualitativas) para comprar obras jurídicas (aquelas que ficam sobre as
bancadas e são filmadas). A Lei das Licitações veda “simplificações”,
“facilitações”, “resumões” e outros textinhos fofinhos.
15. Queridíssimo
Santa (veja a minha intimidade com Santa Claus): Que os embargos declaratórios
não sejam “despachados” com decisões padronizadas do tipo “nada há a
esclarecer” e que o causídico não necessite fazer uma preliminar ao STJ, em
sede de RESP, invocando a negativa de vigência do dispositivo que dá direito ao
uso dos embargos declaratórios.
16. E que, quando
os tais embargos forem feitos sobre outros embargos (aqueles que tiveram a
decisão dizendo “nada há a...”) não sejam “vítimas” de pesadas multas.
17. Grande Santa
Claus: incentive a que os doutrinadores façam críticas aos Tribunais quando
estes, por exemplo, editam súmulas contra-legem; e, já que estamos
falando no assunto, a doutrina poderia voltar a doutrinar e parar de ficar se
arrastando para a jurisprudência? Dê de presente um pacote de “lego”, para
montagem do significado da palavra dou-tri-na!
18. Que não mais se
fundamentem prisões com chavões como “flagrante prende por si só” ou “a
gravidade do crime prende por si” (sei, Papai Noel, que a violência está
grande, mas o STF de há muito já se pronunciou sobre isso...).
19. Lieber Weihnachtsmann (Papai Noel em
alemão), atenda esta prece: Que o juiz ou tribunal não decida conforme sua
consciência, e, sim, a partir do direito. Aproveito para deixar aqui nesta
preclara meia – pendurada nesta humilde árvore - o conceito de direito, caso o
senhor necessite usar para atender este meu pedido: Direito é um conceito
interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que
as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos
princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA
constitucional, e não na vontade individual do aplicador (mesmo que seja o
STF).
20. Que o Supremo
Tribunal e os demais órgãos do Judiciário (e também o Ministério Público, Santa
Claus) não mais usem, em 2014, argumentos metajurídicos. Isso, caro Pai Natal
(assim se diz em Portugal), pode ser problemático, porque cada juiz tem os seus
argumentos metajurídicos (portanto, morais e moralizantes), que, por acaso,
podem não ser os das partes ou da maioria da sociedade ou, ainda, daquele que
faz as leis, o legislador.
21. Que o governo
de terrae brasilis, Papai Noel, faça
indicações para o STF e depois não fique falando contra as (indicações) que
“ele-mesmo-fez”, como se estas — as indicações — fossem fruto da cegonha, do
coelhinho da páscoa ou até suas, Grande Santa Claus, que nem sei se entende
desse riscado.
22. Que em 2014
sejamos poupados do uso de ponderações pelo Brasil afora. Papai Noel: como
presente, quero que pergunte às renas ou a quem mais saiba e me responda (a mim
e ao restante dos patuleus que colocam suas meias nas árvores natalinas): um
importante jurista (bem importante), dia desses, usou o seguinte exemplo para
explicar o que é a tal da ponderação. Eis o que ele disse, Santa Claus (está gravado):
“um velho Opala desce uma ladeira e o motorista vê um velório passando lá na
parte debaixo e se percebe sem freio... então o motorista pensa ‘vou mirar no
caixão’”. Isso é ponderar, escolher o menos pior... E digo eu, então: Caro
Santa, onde estaria, aí, a regra adstrita de Direito Fundamental? Onde estão os
passos da formula? Afinal, quem pondera é quem decide ou quem dirige o
automóvel? O motorista é um “ponderador”?
23. Que no próximo
ano, querido Santa, a comunidade jurídica não tenha que ler, em livro de
Direito Constitucional, que o controle concentrado (sic) poderá ocorrer pela via incidental (sic) nos casos do artigo 102, I, alínea “d”, o qual estabelece a
competência originária do STF para julgar HC, MS e HD de determinadas pessoas.
É sempre bom lembrar, generoso Papai Noel, que o controle concentrado possui
condições estruturais específicas, tais quais o processo objetivo e a
“abstração” do pedido, objeto da ação. Não se trata, simplesmente, de ser
concentrado porque “concentrado” em um único tribunal...
24. Que todos
tribunais tenham uma plataforma de i-process que seja
comunicável; se passamos pelo estado moderno — que era um poder unitário — não
podemos agora regredir ao medievo, com pequenos reinos, ducados, principados,
cada Estado ou Tribunal com suas regras próprias... Ah: se minha defesa tiver
mais que 30 mb, seja-me permitido explicar meu direito, que, por vezes, não
cabe em um leito de procusto, querido Santa.
25. Que os
administradores não se safem de seus malfeitos sob o argumento (do século XIX)
de que “ato foi imoral...mas foi legal”. Dear Santa, quem está
ensinando Direito Administrativo para o corpo jurídico que protege a Viúva?
26. Que o governo
pare de incentivar que o povo compre automóveis em 60 meses. Isso vai dar
subprime. Cuidado com suas renas, Papai Noel. Como não mais haverá lugar para
andar de automóvel, serão requisitados seus trenós e suas renas. Algo como:
Ministro usa as renas da FAB para visitar sua família... no Natal (compreende a
ironia, Lieber Weihnachtsmann?)
27. Pai Natal,
agora um pedido relacionado à academia jurídica: que não mais sejam feitas
dissertações e teses — mormente se for com dinheiro da combalida Viúva (se for
em Universidade privada e sem bolsa, por mim o nativo pode estudar o que
quiser) — sobre embargos, agravos, tipo penal, poder do árbitro, a origem do
cheque, Constituição como ordem de valores, afetividade no Brasil, ponderação,
etc. Invistamos esse dinheiro em soro e leitos hospitalares. Ah: e que não
sejam concedidas bolsas para fazer tese sobre temas como “o papel dos
trabalhadores rurais brasileiros”... a serem estudados em algum país europeu ou
latino-americano; ou uniões homoafetivas ou ECA em Burgos, Espanha (nem existe
ECA na Espanha); ou violência contra a mulher no Brasil em... Sevilha. Peço
isso, Pai Natal, porque se os temas são estritamente daqui, qual é a razão para
desprezarmos mais de 30 programas de doutorado em direito de terrae brasilis? Sei que é chique estudar lá fora.
Muito. Mas tese sobre Lei Maria da Penha... na Inglaterra? Também quero!
Ajude-nos a nos livrar da síndrome de caramuru, papalis noelis brasiliensis. E do complexo de
vira-lata.
28. Que Dworkin
(que não é Dworking, por favor), em aulas, palestras e livros não seja mais
epitetado de jusnaturalista. Respeitemos a sua alma. Ajuda nisso, Santa? Ah: e
dê zero para quem misturar Alexy com Habermas.
29. Que não mais
necessitamos nos deparar com a invocação do “princípio” da verdade real. Na
verdade, Papai Noel, se quem invoca isso soubesse um pouco de filosofia,
dar-se-ia (boa mesóclise, não? — quero presente em dobro... afinal, Ich bin Klein...) conta de que está
na pré-modernidade.
30. Que as
companhias de telefonia móvel parem de nos enganar e que retransfiram os seus call centers do Judiciário de volta para as suas
próprias sedes...
31. Que as
companhias aéreas respeitem os direitos humanos-fundamentais dos utentes e
parem com a picaretagem (pilantragem, vigarice, proxenetismo) de encolher os
espaços entre as poltronas; não dá nem para ler um livro. Querido Santa: o
senhor pode dar umas varadas de marmelo nos caras da Anac?
32. Que os
concursos públicos e os exames de ordem não mais sejam quiz shows. Questões como as da “ladra Jane”
serão punidas com palmadas... (desculpe, Papai Noel, mas sou politicamente
incorreto). E que os néscios que manipulam essas questões (ou o modelo de
questões) sejam colocados em uma roda e sejam submetidos aos concursandos, que
lhes fariam perguntas do mesmo estilo que eles fazem ou defendem. E, claro, se
for necessário, vara de marmelo neles, Santa.
33. Que não receba
presente quem faça afirmações como “o Direito é aquilo que os tribunais dizem
que é” ou “o texto é apenas a ponta do iceberg”, ou, ainda, “além
do texto existem os valores que são ‘condição de possibilidade do texto’”.
34. Que nas
audiências criminais o juiz não assuma a posição de inquisidor nos
interrogatórios, nem conduza os depoimentos orais, a despeito da previsão do
artigo 212 do CPP, nem inicie a redação da sentença condenatória antes mesmo do
fim das alegações finais orais da defesa (embora que, muitas vezes, ela nem
perceba isso). Podes ajudar nisso, bom velhinho?
35. Que o
Judiciário não fundamente suas decisões com base em ementas de precedentes, sem
a averiguação da pertinência entre a ementa e o caso concreto que lhe deu
origem (a facticidade ou o senhor fato), bem como não haja mais julgamento por
adesão a uma das teses, sem abordagem da antítese, para julgar mais rápido (referencial bias). Ah, queria pedir também que o legislador aprove
o novo CPC com as emendas que tentam fazer com que as decisões tenham coerência
e integridade, para que cada um pare de decidir como quer.
36. Que os
tribunais não implantem ou, se já o fizeram, ponham fim aos chamados “Gabinetes
Criminais de Crise”, instituídos por meio de uma Portaria, um vício de
inconstitucionalidade de origem, sem falar, claro do ferimento do princípio do
Juiz Natural.
37. Que os
juristas, principalmente os jovens ainda sem curriculum, quando escreverem
seus artigos, antes se inteirem bem sobre o que estão falando (por exemplo, o
que quer dizer cada conceito), para evitar algaravias conceituais. E interceda
para que os neófitos, mormente eles, façam críticas honestas e não escamoteiem
fatos e circunstâncias (com gracinhas “tipo” Kant-Descartes,
Aristóteles-Leibniz, com o uso de hifens a la 171 do Código
Penal, como se se tratasse da mesma coisa...). E, na crítica, não ataquem o
autor, mas as ideias. Com isso, Papai Noel, o senhor estará ajudando a academia
de terrae brasilis.
Numa palavra
Pois é, Papai Noel. O senhor me deve um monte. Quantas vezes tive que repetir o Ich bin Klein... e o senhor... nada. Comigo o senhor está como o Eike Batista: devendo os tubos. Pois é chegada a hora de se recuperar. Atenda aos pedidos acima. Afinal, eu acredito em Papai Noel... (se me entende a ironia, querido Santa!).
Pois é, Papai Noel. O senhor me deve um monte. Quantas vezes tive que repetir o Ich bin Klein... e o senhor... nada. Comigo o senhor está como o Eike Batista: devendo os tubos. Pois é chegada a hora de se recuperar. Atenda aos pedidos acima. Afinal, eu acredito em Papai Noel... (se me entende a ironia, querido Santa!).
Parafraseando a
oração que fazia quando menino na esperança de ganhar presentes, diria, hoje,
que sou um jurista que continua estudando todos os dias, que meu coração ainda
é puro depois de 26 anos de MP, e que nele não deve morar ninguém, a não ser o
amor, a esperança... e, é claro, a indignação contra o autoritarismo, enfim, os
solipsistas![1] Feliz Natal a todos!
[1] Mesmo que alguns neófitos não
entendam o sentido da palavra “solipsismo”. Mas, enfim, o que fazer?
Fonte: Revista Consultor Jurídico
Um comentário:
Que assim seja, AMÉM!
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