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quinta-feira, dezembro 12

Uma lista de pedidos de um jurista para o Papai Noel (*)


Pendurando a meia na árvore

Nesta época ficamos mais sensíveis. Fazem-se festas com “amigo oculto”, mandam-se cartões e também são elaboradas listas de pedidos ao Papai Noel. Quando menino, tinha de me ajoelhar diante do Weihnachtsmann e fazer uma pequena oração, para que, depois, pudesse fazer meus pedidos. Assim era a oração: “Ich bin Klein, mein Herz ist rein, Darf niemand drin wohnen als Jesus allein” (“sou pequeno, meu coração é puro, nele não deve morar ninguém, a não ser Jesus”). Sem pieguice, mas, repetindo isso agora, uma pequena lágrima desceu pelas rugas que já tenho. Embarguei. Mesmo. Lembrei também que, um mês antes do Natal, rezava todas as noites, como num pensamento mágico. Mesmo pobre de marré, achava que, rezando, Papai Noel viria. Mas, vamos lá. Como deveria ser a lista de um jurista para o Papai Noel? Como em um pensamento mágico “daqueles tempos”... Vai que dá certo... afinal, sou pequeno, meu coração é puro... Então:
1. Que voltemos a ter “casos jurídicos” e não meramente “teses” discutidas abstratamente, através de enunciados feitos em reuniões realizadas em finos hotéis litorâneos ou produtos de ementas fabricadas por estagiários. E que os doutrinadores não caiam na armadilha de saírem por aí comentando os tais enunciados... que, como se sabe, Papai Noel, não são lei.
2. Que as provas sejam examinadas pelos juízes e tribunais, e que os casos subjacentes aos processos sejam vistos sob uma ótica normativo-constitucional e não meramente econômico-quantitativa. De que por trás dos processos há pessoas (e na frente deles haja também).
3. Que as partes, querido Papai Noel, não sejam mais tratadas como requerente, requerido ou, para nossa vergonha, suplicante e suplicado, mas como cidadãos que merecem igual respeito e consideração, seja qual for a posição que ocupem nos polos das relações jurídicas. Que às partes se reconheça igual dignidade, independentemente do status ou posição financeira e social que ocupem. Que a igualdade seja a virtude soberana e que essa igualdade transborde do discurso para as práticas judiciais.
4. Que, quando uma lei for aprovada pelo Parlamento e esta não for inconstitucional (e não se enquadrar nas seis hipóteses de que falo no Verdade e Consenso), o Judiciário simplesmente... a aplique. Sim: um faz a lei, o outro... a aplica.
5. Que seja proibido o uso de princípios flambadores no Direito, como o da “confiança no juiz da causa”, da “rotatividade”, do “fato consumado”, da “amorosidade” e similares. Querido Santa Claus: não dá mais para aguentar isso.
6. Que, por favor, não mais se use a frase “na colisão de regras, age-se no tudo ou nada” e colisão de princípios “usa-se a ponderação” e que não mais se escreva ou diga que “princípios são valores”.
7. Que seja proibido dizer que Kelsen era um positivista exegético ou legalista (Papai Noel, não traga presentes para quem disser isso).
8. Que os “ponderadores” não usem mais o exemplo do caso Lüth (e ainda dizendo Lut), sem saber do que se trata.
9. Que os professores parem de querer fazer espetáculo nas salas de aula, cantando, gritando e fazendo charadinhas para decorar “fórmulas” jurídicas; violão e músicas da Xuxa, nem pensar, Papai Noel.
10. Querido Santa Claus: Que os professores que se apresentam na TV falando de prescrição e decadência, função social da propriedade (bem novo isso, não?), erro de tipo, direito do consumidor ou do direito dos portos (ou algo assim) usando exemplos infames e colando de seus tablets sejam submetidos às provas dos concursos públicos para os quais eles mesmos dizem estar “dando dicas”; se não passarem, devem prometer não mais ir à TV.
11. Que os advogados de todo o Brasil não mais sejam humilhados nas audiências, principalmente na justiça do trabalho e que quando o advogado tiver uma pergunta indeferida e pedir para consignar na ata, que o juiz não diga que o advogado o está desrespeitando (Papai Noel, seja duro nisso, tá?).
12. Que os servidores de balcão do Judiciário não tratem a “repartição” como se fosse sua ou se estivessem fazendo favor ao jovem causídico; às vezes, é a sua primeira causa (Papai Noel, zele pelos jovens causídicos; não deixe que os serventuários, porteiros ou juízes os maltratem).
13. Que os desembargadores e ministros, durante a sustentação oral das partes, não fiquem olhando os seus tablets; prestem atenção no esfalfelamento do causídico (ou finjam que estão prestando atenção).
14. Papai Noel – eis um pedido sarcástico: Que os Tribunais de todo o Brasil façam licitações (qualitativas) para comprar obras jurídicas (aquelas que ficam sobre as bancadas e são filmadas). A Lei das Licitações veda “simplificações”, “facilitações”, “resumões” e outros textinhos fofinhos.
15. Queridíssimo Santa (veja a minha intimidade com Santa Claus): Que os embargos declaratórios não sejam “despachados” com decisões padronizadas do tipo “nada há a esclarecer” e que o causídico não necessite fazer uma preliminar ao STJ, em sede de RESP, invocando a negativa de vigência do dispositivo que dá direito ao uso dos embargos declaratórios.
16. E que, quando os tais embargos forem feitos sobre outros embargos (aqueles que tiveram a decisão dizendo “nada há a...”) não sejam “vítimas” de pesadas multas.
17. Grande Santa Claus: incentive a que os doutrinadores façam críticas aos Tribunais quando estes, por exemplo, editam súmulas contra-legem; e, já que estamos falando no assunto, a doutrina poderia voltar a doutrinar e parar de ficar se arrastando para a jurisprudência? Dê de presente um pacote de “lego”, para montagem do significado da palavra dou-tri-na!
18. Que não mais se fundamentem prisões com chavões como “flagrante prende por si só” ou “a gravidade do crime prende por si” (sei, Papai Noel, que a violência está grande, mas o STF de há muito já se pronunciou sobre isso...).
19. Lieber Weihnachtsmann (Papai Noel em alemão), atenda esta prece: Que o juiz ou tribunal não decida conforme sua consciência, e, sim, a partir do direito. Aproveito para deixar aqui nesta preclara meia – pendurada nesta humilde árvore - o conceito de direito, caso o senhor necessite usar para atender este meu pedido: Direito é um conceito interpretativo e é aquilo que é emanado pelas instituições jurídicas, sendo que as questões e ele relativas encontram, necessariamente, respostas nas leis, nos princípios constitucionais, nos regulamentos e nos precedentes que tenham DNA constitucional, e não na vontade individual do aplicador (mesmo que seja o STF).
20. Que o Supremo Tribunal e os demais órgãos do Judiciário (e também o Ministério Público, Santa Claus) não mais usem, em 2014, argumentos metajurídicos. Isso, caro Pai Natal (assim se diz em Portugal), pode ser problemático, porque cada juiz tem os seus argumentos metajurídicos (portanto, morais e moralizantes), que, por acaso, podem não ser os das partes ou da maioria da sociedade ou, ainda, daquele que faz as leis, o legislador.
21. Que o governo de terrae brasilis, Papai Noel, faça indicações para o STF e depois não fique falando contra as (indicações) que “ele-mesmo-fez”, como se estas — as indicações — fossem fruto da cegonha, do coelhinho da páscoa ou até suas, Grande Santa Claus, que nem sei se entende desse riscado.
22. Que em 2014 sejamos poupados do uso de ponderações pelo Brasil afora. Papai Noel: como presente, quero que pergunte às renas ou a quem mais saiba e me responda (a mim e ao restante dos patuleus que colocam suas meias nas árvores natalinas): um importante jurista (bem importante), dia desses, usou o seguinte exemplo para explicar o que é a tal da ponderação. Eis o que ele disse, Santa Claus (está gravado): “um velho Opala desce uma ladeira e o motorista vê um velório passando lá na parte debaixo e se percebe sem freio... então o motorista pensa ‘vou mirar no caixão’”. Isso é ponderar, escolher o menos pior... E digo eu, então: Caro Santa, onde estaria, aí, a regra adstrita de Direito Fundamental? Onde estão os passos da formula? Afinal, quem pondera é quem decide ou quem dirige o automóvel? O motorista é um “ponderador”?
23. Que no próximo ano, querido Santa, a comunidade jurídica não tenha que ler, em livro de Direito Constitucional, que o controle concentrado (sic) poderá ocorrer pela via incidental (sic) nos casos do artigo 102, I, alínea “d”, o qual estabelece a competência originária do STF para julgar HC, MS e HD de determinadas pessoas. É sempre bom lembrar, generoso Papai Noel, que o controle concentrado possui condições estruturais específicas, tais quais o processo objetivo e a “abstração” do pedido, objeto da ação. Não se trata, simplesmente, de ser concentrado porque “concentrado” em um único tribunal...
24. Que todos tribunais tenham uma plataforma de i-process que seja comunicável; se passamos pelo estado moderno — que era um poder unitário — não podemos agora regredir ao medievo, com pequenos reinos, ducados, principados, cada Estado ou Tribunal com suas regras próprias... Ah: se minha defesa tiver mais que 30 mb, seja-me permitido explicar meu direito, que, por vezes, não cabe em um leito de procusto, querido Santa.
25. Que os administradores não se safem de seus malfeitos sob o argumento (do século XIX) de que “ato foi imoral...mas foi legal”. Dear Santa, quem está ensinando Direito Administrativo para o corpo jurídico que protege a Viúva?
26. Que o governo pare de incentivar que o povo compre automóveis em 60 meses. Isso vai dar subprime. Cuidado com suas renas, Papai Noel. Como não mais haverá lugar para andar de automóvel, serão requisitados seus trenós e suas renas. Algo como: Ministro usa as renas da FAB para visitar sua família... no Natal (compreende a ironia, Lieber Weihnachtsmann?)
27. Pai Natal, agora um pedido relacionado à academia jurídica: que não mais sejam feitas dissertações e teses — mormente se for com dinheiro da combalida Viúva (se for em Universidade privada e sem bolsa, por mim o nativo pode estudar o que quiser) — sobre embargos, agravos, tipo penal, poder do árbitro, a origem do cheque, Constituição como ordem de valores, afetividade no Brasil, ponderação, etc. Invistamos esse dinheiro em soro e leitos hospitalares. Ah: e que não sejam concedidas bolsas para fazer tese sobre temas como “o papel dos trabalhadores rurais brasileiros”... a serem estudados em algum país europeu ou latino-americano; ou uniões homoafetivas ou ECA em Burgos, Espanha (nem existe ECA na Espanha); ou violência contra a mulher no Brasil em... Sevilha. Peço isso, Pai Natal, porque se os temas são estritamente daqui, qual é a razão para desprezarmos mais de 30 programas de doutorado em direito de terrae brasilis? Sei que é chique estudar lá fora. Muito. Mas tese sobre Lei Maria da Penha... na Inglaterra? Também quero! Ajude-nos a nos livrar da síndrome de caramuru, papalis noelis brasiliensis. E do complexo de vira-lata.
28. Que Dworkin (que não é Dworking, por favor), em aulas, palestras e livros não seja mais epitetado de jusnaturalista. Respeitemos a sua alma. Ajuda nisso, Santa? Ah: e dê zero para quem misturar Alexy com Habermas.
29. Que não mais necessitamos nos deparar com a invocação do “princípio” da verdade real. Na verdade, Papai Noel, se quem invoca isso soubesse um pouco de filosofia, dar-se-ia (boa mesóclise, não? — quero presente em dobro... afinal, Ich bin Klein...) conta de que está na pré-modernidade.
30. Que as companhias de telefonia móvel parem de nos enganar e que retransfiram os seus call centers do Judiciário de volta para as suas próprias sedes...
31. Que as companhias aéreas respeitem os direitos humanos-fundamentais dos utentes e parem com a picaretagem (pilantragem, vigarice, proxenetismo) de encolher os espaços entre as poltronas; não dá nem para ler um livro. Querido Santa: o senhor pode dar umas varadas de marmelo nos caras da Anac?
32. Que os concursos públicos e os exames de ordem não mais sejam quiz shows. Questões como as da “ladra Jane” serão punidas com palmadas... (desculpe, Papai Noel, mas sou politicamente incorreto). E que os néscios que manipulam essas questões (ou o modelo de questões) sejam colocados em uma roda e sejam submetidos aos concursandos, que lhes fariam perguntas do mesmo estilo que eles fazem ou defendem. E, claro, se for necessário, vara de marmelo neles, Santa.
33. Que não receba presente quem faça afirmações como “o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é” ou “o texto é apenas a ponta do iceberg”, ou, ainda, “além do texto existem os valores que são ‘condição de possibilidade do texto’”.
34. Que nas audiências criminais o juiz não assuma a posição de inquisidor nos interrogatórios, nem conduza os depoimentos orais, a despeito da previsão do artigo 212 do CPP, nem inicie a redação da sentença condenatória antes mesmo do fim das alegações finais orais da defesa (embora que, muitas vezes, ela nem perceba isso). Podes ajudar nisso, bom velhinho?
35. Que o Judiciário não fundamente suas decisões com base em ementas de precedentes, sem a averiguação da pertinência entre a ementa e o caso concreto que lhe deu origem (a facticidade ou o senhor fato), bem como não haja mais julgamento por adesão a uma das teses, sem abordagem da antítese, para julgar mais rápido (referencial bias). Ah, queria pedir também que o legislador aprove o novo CPC com as emendas que tentam fazer com que as decisões tenham coerência e integridade, para que cada um pare de decidir como quer.
36. Que os tribunais não implantem ou, se já o fizeram, ponham fim aos chamados “Gabinetes Criminais de Crise”, instituídos por meio de uma Portaria, um vício de inconstitucionalidade de origem, sem falar, claro do ferimento do princípio do Juiz Natural.
37. Que os juristas, principalmente os jovens ainda sem curriculum, quando escreverem seus artigos, antes se inteirem bem sobre o que estão falando (por exemplo, o que quer dizer cada conceito), para evitar algaravias conceituais. E interceda para que os neófitos, mormente eles, façam críticas honestas e não escamoteiem fatos e circunstâncias (com gracinhas “tipo” Kant-Descartes, Aristóteles-Leibniz, com o uso de hifens a la 171 do Código Penal, como se se tratasse da mesma coisa...). E, na crítica, não ataquem o autor, mas as ideias. Com isso, Papai Noel, o senhor estará ajudando a academia de terrae brasilis.
Numa palavra
Pois é, Papai Noel. O senhor me deve um monte. Quantas vezes tive que repetir o Ich bin Klein... e o senhor... nada. Comigo o senhor está como o Eike Batista: devendo os tubos. Pois é chegada a hora de se recuperar. Atenda aos pedidos acima. Afinal, eu acredito em Papai Noel... (se me entende a ironia, querido Santa!).
Parafraseando a oração que fazia quando menino na esperança de ganhar presentes, diria, hoje, que sou um jurista que continua estudando todos os dias, que meu coração ainda é puro depois de 26 anos de MP, e que nele não deve morar ninguém, a não ser o amor, a esperança... e, é claro, a indignação contra o autoritarismo, enfim, os solipsistas![1] Feliz Natal a todos!

[1] Mesmo que alguns neófitos não entendam o sentido da palavra “solipsismo”. Mas, enfim, o que fazer?