Por Alexandre Morais da Rosa(*)
Nenhuma teoria do senso comum teórico (Warat) da decisão
penal é capaz de apresentar todas as variáveis intervenientes na decisão
judicial. Jorram falas, imagens, teorias, julgados, autores, recortes antigos,
a vida pregressa, as contas para pagar, a pressa para pegar os filhos no
colégio, o cheiro da sala, a temperatura do ar condicionado. Enfim, não se pode
saber quais as condições físicas e mentais do momento da coleta da informação e
muito menos no momento da prolação da sentença. E cada um desses significantes
pode alterar tudo, conforme o efeito borboleta (veja o vídeo abaixo para
entender): em síntese, uma pequena alteração pode gerar resultados
imprevisíveis.
Inexiste conhecimento direto sobre os fatos — salvo do crime
acontecido na sala de audiência, mas julgado posteriormente por outro julgador.
Todo material probatório é de segunda mão, nos autos ou fora dele: o julgador e
jogadores constroem narrativas em face de um evento passado, com as informações
que estão à disposição. Nesse articular, a forma em que os fatos serão
ajustados pode mudar o sentido.
A reconstrução do fato criminoso é sempre retratada por uma
imagem ou filme (apresentada na denúncia/queixa) e que, analisada em face do
que há antes (inquérito policial, auto de prisão em flagrante ou documentos)
indica a existência de justa causa (informação mínima de materialidade e
autoria) capaz de justificar a tipicidade aparente da conduta. Daí que se opera
com imagens superpostas e narrativas controversas. Constrói-se uma narrativa
englobante da acusação e daí em diante o jogo processual será de preencher ou
esvaziar a história/imputação.
Uma estratégia utilizada é a de colocar o mínimo de detalhes
na acusação, narrando os fatos genericamente, antecipando, com isso, as
inconsistências de informação (prova). Quanto mais detalhada for a descrição,
mais chances de inconsistência. O limite disso acontece na impossibilidade de
se defender de fatos.
Por exemplo, analise as seguintes opções: a) entre os
anos de 1998 a 2007 o acusado que atuava como empregado da vítima subtraiu para
si dois pingentes de ouro, um liquidificador e duas camisetas, avaliados em R$
800, os quais não foram recuperados; b) no dia 17 de maio de 2006, entre 19h e
20h30, na residência da vítima, o acusado subtraiu para si dois pingentes de
ouro, um liquidificador e duas camisetas, avaliados em R$ 800, os quais não
foram recuperados. Qual das duas descrições é mais fácil de ser acolhida na
sentença? Evidentemente que a primeira. O devido processo legal substancial
pressupõe que o sujeito seja acusado de uma conduta específica, no tempo e no
espaço. Acusações genéricas, com longo espaço de tempo, tornam a defesa
impossível, sendo uma trapaça processual, no que já denominei de doping
processual.
Na imagem que se forma na maneira como pensamos,
encontram-se os estereótipos. Ou seja, as representações cristalizadas que não
se baseiam naquele caso específico, mas nas experiências anteriores (lugar em
que o fato se deu, moradia dos envolvidos, profissão, beleza ou feiura, idade,
cor, sobrenome, status social, antecedentes etc.). Não me venham histericamente
dizer que isso não importa. Concordo teoricamente.
Na prática, isso acontece todos os dias e é melhor estar
preparado para esse tipo de captura psíquica do que fingir que não importa.
Parem de ser platônicos, pois estamos justamente na dobra platônica, onde o
sentido é colonizado pelo silêncio que diz. Os estereótipos simplesmente formam
parte do arsenal de sentidos e operam. Queiramos ou não. Podem se basear em
preconceitos, lugares comuns, influência da mídia etc. Se queremos ser
minimamente honestos, devemos admitir a influência de fatores externos, como
por exemplo, a leitura do jornal do dia, a conversa do almoço, do café com os
vizinhos, da lembrança de que fomos um dia furtados... Respondemos no decorrer
do processo com aquilo que nos faz sentido, seja ele qual for (louquíssimo,
muitas vezes).
Quanto mais entendermos o mecanismo aleatório de atribuição de
sentido, mais teremos credibilidade pelo que se passa no processo penal. Como
operamos com imagens, não raro tomamos uma coisa por outra, atribuímos peso
demasiado e, muitas vezes, imaginamos errado. E destruir uma imagem
cristalizada é muito complicado.
Franco Cordero chamou isso de postura paranoica, ou seja, o
primado das hipóteses sobre os fatos, como visto anteriormente, tão bem
articulada no Brasil por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, via psicanálise.
Essa ancoragem antecedente em imagens pode gerar a fixação do convencimento e
as informações trazidas no decorrer da instrução processual servem para simples
confirmação, seja de que qualidade for. Essa postura paranoica é sedutora. Em
primeiro lugar, pensando do ponto de vista histórico, o julgador é colocado
como portador da (imaginária) Verdade Real[1], potencializada pela teoria de
processo (relação jurídica) pela qual os jogadores dão os fatos e o juiz o
direito.
Em segundo, adotando-se a contribuição da psicanálise[2],
pode-se dizer que o paranoico caracteriza-se pelo delírio de perseguição
sistematizado, acrescido de delírios de ciúmes, de erotomania e de grandeza. Na
matriz contratualista e de estabelecimento da civilização encontram-se traços
paranoicos de desconfiança recíproca, sendo o Estado o terceiro que poderia
fazer laço social. No contexto atual das relações humanas, o traço paranoico se
apresenta em qualquer sensação de exclusão, colocando-se na condição de vítima
e se acreditando que a ação do outro é dirigida especialmente ao sujeito.
A manifestação paranoica se dá pela certeza do sujeito em
possuir a verdade e não qualquer verdade, mas a Verdade Real. Portador da
verdade é capaz de pontificar, apresentar a solução para todos os problemas,
indicar as causas e as soluções, enfim, postar-se no lugar de Salvador. E a
tentação de ocupar esse lugar é permanente, afinal, não seria maravilhoso poder
reparar o mundo, reformar as coisas, ajudar as pessoas a andarem no caminho
certo e do bem? A pergunta é a posta por Agostinho Ramalho Marques Neto[3]:
quem nos salva da bondade dos bons? Paranoicos, acrescento eu. A estrutura
psíquica do sujeito é singular, pois vai depender da passagem pelo traumatismo
de se perceber não mais o objeto de satisfação da mãe. Não complicarei mais, há
referências para quem quiser entender. O mais interessante, todavia, é que o
paranoico procurar ser parado, está à procura de um limite, de alguém ou algo
que o possa deter.
Se os jogadores do processo, em regra, não sabem dos fatos
que serão articulados, já que receberam a narrativa de terceiros, o que não
sabem do evento é mais importante do que sabem. Daí que se instalam duas
posições: conforto pelo que é trazido ou angústia pelo que não é trazido. Não
raro se concentra somente no que é trazido, esforçando-se para que do material
informativo tragado para o contexto do jogo se possa elaborar uma narrativa
minimante coerente, conforme a acusação.
A tendência mental é a de buscar a confirmação do narrado,
ter aversão ao argumento defensivo, construir narrativas frágeis de conforto,
rejeitar as emoções e aspectos biológicos como variáveis da decisão, fechando
os olhos para os truques, trunfos e silêncio do processo. Taleb[4] afirma que
diante da opacidade do mundo articulamos três grandes redutores de
complexidade, ou seja, nos autoenganamos de que temos: a) a ilusão da
compreensão; a certeza ingênua de que sabemos o que está acontecendo em um
mundo mais complicado do que percebemos; b) a distorção retrospectiva: como
realizamos uma tarefa de contar o fato criminoso como se estivéssemos olhando
pelo retrovisor a história aparenta ser mais clara e organizada do que o mundo
de fato é; c) supervalorização da informação factual: a deficiência das pessoas
em compreenderem a complexidade a partir de teorias simplificadoras e
platônicas.
A reconstrução do caso penal se dá pelas narrativas dos
envolvidos — vítima(s) e acusado(s) — e de terceiros (informantes, testemunhas
e peritos), bem assim por imagens (gravações em vídeo, reproduções etc.) e sons
(áudio, interceptação de conversas) e escritos (interceptação de dados, cartas,
e-mails, etc.). Busca-se compulsivamente estabelecer “A” história, recontando
como se tudo pudesse ser, efetivamente, reproduzido no futuro. Um remake do
evento.
Amarrados ao pensamento causalista (causa e efeito), avessos
à complexidade das versões paralelas e coerentes ao mesmo tempo, remontam a
história com uma boa dose de imaginário. Isso promove a sensação de compreensão
do ocorrido, “como se” os jogadores e o julgador passassem, daí em diante, a
ser testemunhas diretas do ocorrido. Não se trata mais do evento histórico, mas
do que se fala dele, perdendo, assim, a sua singularidade. Somos treinados a
dar sentido, explicar os fenômenos, acoplando tipos penais, incapazes de
aceitar o não saber.
Recordar eventos passados exige que o sujeito (testemunha,
informante, acusado, vítima, perito) possa dar sentido ao fragmento de momentos
que teve conhecimento. Daí que a memória é filtrada e limitada, relegando o que
não faz sentido e se focando naquilo que possa explicar o “caso penal”. Não
raro se quer que a prova responda simplesmente: (não) aconteceu. Como se as
demais circunstâncias fossem irrelevantes.
O esforço narrativo do declarante é sempre retrospectivo.
Daí que uma das táticas dos jogadores é inverter a ordem das perguntas, a
saber, ao invés de indagar o sujeito na lógica linear, pede-se para que conte
do final para o início. A história decorada e prenhe de sentidos pode ficar em
curto-circuito. Mas sempre é arriscado e depende qual a estratégia
utilizada[5]. Especialmente quando há interesses na condenação/absolvição, a
seleção dos eventos relevantes ao lado que se pretende favorecer não deixa de
ser uma modalidade de doping processual, de certa forma de trapaça.
Além disso, as informações trazidas pelos depoentes são
articuladas em arrazoados que buscam (des)confirmar as teses apresentadas pelos
jogadores e como linguagem que são, servem à manipulação. Daí que significantes
abertos (perto, longe, medo, parecido, alto, baixo, etc.) são matreiramente
utilizados para depois servirem de material confirmatório. E o mundo, todavia,
é vago. Ademais, quando mais articulado o narrador, melhor aparentará a
sedutora narrativa, a qual junta materiais de informação e costura um sentido
que joga com o imaginário de jogadores e especialmente julgador, lembram José
Calvo González e André Karam Trindade. E depois há o efeito semblante de que a
decisão é o retrato retrospectivo do que se passou, isento de ausências e
inconsistências. E isso preocupa, bem sabem Lenio Streck e Aury Lopes Jr. Mas
seria muito complicado aos julgadores admitir que julgam sem saber, salvo aos
honestos. A situação poderia ser diferente se tivéssemos dado o salto de
qualidade em face da resposta correta, como defende Dworkin e, no Brasil, Lenio
Streck. Enquanto as decisões forem inautênticas do ponto de vista hermenêutico,
a borboleta está solta.
[1] KHALED JR, Salah H. A busca da verdade no processo
penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2013, p. 361:
“Dizer que a verdade é contigencial significa abrir mão desse fim – a busca da
verdade – e assumir outro horizonte, no qual o juiz deverá estar predisposto a
absolver, por exigência da presunção de inocência: em outras palavras, o valor
inocência deve ser estruturante e fundador do processo penal, inclusive no que
se refere à missão e função do juiz, possibilitando dessa forma o rompimento
com a epistemologia inquisitória orientada à persecução do inimigo.”
[2] MELMAN, Charles. Como alguém se torna paranoico?. Trad.
Telma Queiroz. Porto Alegre: CMC, 2008.
[3] MARQUES NETO, Agostinho Ramalho. O Poder Judiciário na
Perspectiva da Sociedade Democrática: O Juiz Cidadão. In: Revista ANAMATRA. São
Paulo, n. 21, p. 30-50, 1994: “Uma vez perguntei: quem nos protege da bondade
dos bons? Do ponto de vista do cidadão comum, nada nos garante, ‘a priori’, que
nas mãos do Juiz estamos em boas mãos, mesmo que essas mãos sejam boas. (...)
Enfim, é necessário, parece-me, que a sociedade, na medida em que o lugar do
Juiz é um lugar que aponta para o grande Outro, para o simbólico, para o
terceiro.”.
[4] TALEB, Nassim Nicholas. A Lógica do Cisne Negro: o
impacto do altamente improvável. Trad. Marcelo Schild. São Paulo: Best Seller,
2012, p. 37.
[5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo
Penal conforme a Teoria dos Jogos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.
(*)Juiz de Direito em Santa Catarina
Fonte: CONJUR
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