(*) Por Gamil Föppel El Hireche e Rudá Santos Figueiredo
Homicídio qualificado
§ 2° Se o homicídio é cometido:
VI - contra a mulher por razões
da condição de sexo feminino:
(Incluído pela Lei 13.104, de 2015)
Pena - reclusão, de doze a trinta
anos.
Vê-se que a nova lei tratou,
também, de inserir a nova figura incriminadora no rol dos crimes hediondos, ao
estabelecer:
Art. 2º O art. 1o da Lei no
8.072, de 25 de julho de 1990, passa a vigorar com a seguinte alteração:
Art. 1º
I - homicídio (art. 121), quando
praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um
só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, I, II, III, IV, V e VI).
A nova lei, certamente louvada
por diversos segmentos da sociedade, decerto, resultará mais uma vez de uma
manifestação simbólica do direito penal, através da qual o Estado veicular
novas leis, sem que com isso produza medidas efetivas para conter o cometimento
de infrações. Não se ignora a necessidade de proteger a vida de todos os seres
humanos, indistintamente, bem como não se ignora e nem se quer esconder a
necessidade de proteger vítimas de violência doméstica que, no mais das vezes,
são mulheres. Não se pense que os autores deste texto ignoram a necessidade
desta proteção. Mas o questionamento é se é lícito, se é constitucional, criar
uma pseudoproteção, com inconstitucionalidades manifestas, para atender à
(pseudo)função simbólica da pena.
Releva notar que o tipo penal é
excessivamente aberto, veiculando uma motivação específica como elementar. É
dizer, para que haja o delito de “feminicídio” o crime de ser motivado “por
razões da condição do sexo feminino”. Um primeiro registro, além da corruptela
pelo cacófato no tipo penal, é da questionável constitucionalidade, por direta
violação ao princípio da taxatividade, desdobramento lógico do princípio da
legalidade. De nada adianta haver legalidade se os tipos penais puderem ser
permeados de elementos abertos ou normativos. A legalidade somente cumpre a sua
garantia quando acompanhada da indissociável taxatividade.
A novel legislação transforma a
mulher em uma elementar objetiva do novo delito qualificado, resultando em
tipificação de duvidosa constitucionalidade. Isso porque, efetivamente,
trata-se de disposição que viola frontalmente os princípios da igualdade, da legalidade
e da lesividade. Com efeito, se a condição de mulher do sujeito passivo do
delito é uma elementar objetiva do tipo penal, premente notar que deve ser a
expressão “sexo feminino” interpretada taxativamente, não sendo enquadrados
pela nova figura qualificada os delitos praticados contra travestis,
transexuais e transgêneros. Também não serão enquadrados pelo tipo penal os
homicídios praticados, no âmbito de uma relação homoafetiva, por um homem
contra o outro, ou, ainda, em um crime praticado por uma mulher contra um
homem. Intoleráveis violações constitucionais, levadas a cabo,
injustificadamente, para atender a símbolos de proteções inexistentes. Por se
tratar de novatio legis in pejus, por ser novo tipo incriminador, imperioso que
se tenha em mente que a única interpretação possível do tipo é a restritiva,
considerando, decorrentemente, que mulher é um elemento objetivo (invariável)
do tipo penal.
Efetivamente, não parece legítimo
examinar a constitucionalidade de uma norma sob o prisma do número de delitos
cometido, para afirmar que a lei se faz necessária em razão de, no mais das
vezes, a violência doméstica ser praticada por um homem contra uma mulher. Isso
porque: 1) a quaisquer pessoas, no âmbito do direito penal, deve ser outorgada
proteção igualitária; 2) o número de delitos não pode justificar a maior pena,
devendo ser estar proporcional ao bem-jurídico penal tutelado, como bem observa
Claus Roxin[1]. E, adite-se, não se pode, a partir de dados estatísticos,
buscar a constitucionalidade da norma penal. O tipo inconstitucional não passa
a respeitar a Constituição porque a incidência é maior ou menor.
Efetivamente, nessa linha, se tem
alteração legislativa que viola o princípio da lesividade, porquanto, sem que
haja qualquer referência efetiva a um maior desvalor da conduta ou do
resultado, qualifica o homicídio praticado contra mulher, pelo fato de ser do
sexo feminino, e não em razão de demais circunstâncias. Na prática, como se verá, as razões de menosprezo
à condição do sexo feminino terminarão por ser pressupostos, de sorte que todo
homicídio praticado contra mulher implicará em incidência do tipo penal de
feminicídio. Destarte, será assim violado o princípio do ne bis in idem, pois a
violação à vida será duplamente valorada (a configurar hipótese qualificada de
homicídio), sem que haja supedâneo para a elevação da pena cominada para a
figura simples.
Sabe-se que, no passado, a Lei
Maria da Penha, por motivações de gênero, realizou mudanças no ordenamento
penal e processual penal. No âmbito penal, contudo, certo é que a alteração
promovida não criou ou sobrelevou a pena da violência praticada contra a
mulher, mas em relação a qualquer violência doméstica.
O anteprojeto de Código Penal,
por sua vez, propõe semelhante à ora efetivada, sem, contudo, distinguir homens
e mulheres, a tornar qualificado o homicídio praticado por motivo de identidade
de gênero, independentemente da qualidade do autor ou da vítima, a respeitar o
princípio da isonomia. No particular, muito melhor andou o Projeto de Lei do
Senado 236, porquanto tratou de uma proteção efetiva, sem uma resposta não
contingente — como bastante criticado por Ferrajoli — sem que se atenda a essa
ou aquela pressão, sem que se criasse um tipo inconstitucional, enfim.
O que se quer dizer através da
expressão, “por razões da condição do sexo feminino”, não fica claro em tal
enunciado, daí porque o legislador ainda tentou positivar ainda o §2º-A, também
inserido no Código Penal, que configura tipo penal pretensamente explicativo,
com o seguinte o conteúdo:
§ 2º-A Considera-se que há razões
de condição de sexo feminino quando o crime envolve:
I - violência doméstica e
familiar;
II - menosprezo ou discriminação
à condição de mulher.
Diante de tal dispositivo, se
observa que apenas existirá “feminicídio”, acaso preenchidas uma das duas
seguintes condições: a) hipótese de violência doméstica e familiar; b) a
violência deve decorrer de menosprezo ou discriminação à condição de mulher.
De toda sorte, premente observar
que a rigor não será qualquer homicídio praticado contra uma mulher que
implicará a incidência do dispositivo, muito embora se tenha a expectativa de
que a tendência na prática caminhe em sentido diverso, pois o tempo demonstrará
que, ordinariamente, todo crime de homicídio contra a mulher será tratado como
feminicídio. O homicídio deve ser praticado contra a mulher, no contexto de
violência doméstica e familiar, o que denota a necessidade de que haja
coabitação e relação familiar ou o homicídio deve derivar de menosprezo ou discriminação
à condição de mulher. A vexata questio interpretativa residirá neste segundo
inciso.
O legislador, como se vê, tentou
(em vão) esclarecer o que pretende firmar através da criação do feminicídio,
mas termina por ocasionar ainda maior confusão.
Primeiro, dizer que há “razões de
condição de sexo feminino” quando o crime envolver “discriminação à condição de
mulher” é tomar seis por meia dúzia. Ou seja, através de tal norma explicativa
o legislador nada de novo diz. Trata-se de insuperável tautologia.
Segundo, considerar que há
“razões de condição de sexo feminino” quando o crime envolver “menosprezo à
condição de mulher” é mais uma redundância, que tem o deletério efeito de
deixar totalmente ao cargo do magistrado definir quais seriam tais condições,
pois “menosprezo” é elemento normativo do tipo, cujo sentido será dado pelo
aplicador do direito.
Menosprezar é o mesmo que
menoscabar, ultrajar, escarnecer, subestimar, tomar por pior, expressões que
podem ser sinônimas de discriminar, o que implica dizer que além da violência
doméstica, para que haja “feminicídio”, deve ser identificada a existência, no
autor do delito, da (equivocada e insustentável) percepção da mulher como
inferior ao homem.
Nessa linha de raciocínio,
considerando os contornos legais do delito, observa-se que os homicídios
motivados por ciúme, não necessariamente, ainda que envolvam violência
doméstica, poderão ser enquadrados enquanto “feminicídio”, sendo imprescindível
a presença das razões da condição de sexo feminino, que são identificadas se há
“violência doméstica e familiar” ou “menosprezo ou discriminação à condição de
mulher”.
A lei, assim, gera mais confusão
do que solução no âmbito penal. Efetivamente, trata-se de manifestação
legislativa meramente simbólica. A respeito deste “simbolismo” penal, premente
colacionar as lições de Juarez Cirino dos Santos:
Assim, o direito penal simbólico
não teria função instrumental — ou seja, não existiria para ser efetivo —, mas
teria função meramente política, através da criação de imagens ou de símbolos
que atuariam na psicologia do povo, produzindo determinados efeitos úteis. O
crescente uso simbólico do direito penal teria por objetivo produzir uma dupla
legitimação: a) legitimação do poder político, facilmente conversível em votos
— o que explica, por exemplo, o açodado apoio de partidos populares a
legislações repressivas no Brasil; b) legitimação do direito penal, cada vez
mais um programa desigual e seletivo de controle social das periferias urbanas
e da força de trabalho marginalizada do mercado, com as vantagens da redução
ou, mesmo, da exclusão de garantias constitucionais como a liberdade, a
igualdade, a presunção de inocência etc., cuja supressão ameaça converter o
Estado democrático de direito em Estado policial. O conceito de
integração-prevenção, introduzido pelo direito penal simbólico na moderna
teoria da pena, cumpriria o papel complementar de escamotear a relação da
criminalidade com as estruturas sociais desiguais das sociedades modernas,
instituídas pelo direito e, em última instância, garantidas pelo poder político
do Estado.[2]
Deveras, um homicídio motivado
“por razões de ódio à mulher”, menosprezo, discriminação de gênero, já poderia
ser considerado qualificado em razão da motivação torpe, sendo desnecessário um
tipo autônomo (a rigor, o desprezo configuraria a torpeza do motivo
independentemente da identidade sexual da vítima). Considerando que o delito de
feminicídio, para existir, demandará a concretização de elementar de difícil
análise, qual seja, “razões de condição do sexo feminino”, com a necessidade de
verificação da existência de violência doméstica ou de menosprezo ao sexo
feminino, é possível supor que a definição de que houve menosprezo ou discriminação
à condição de mulher tornar-se-á pressuposta sempre que houver um homicídio
praticado no âmbito doméstico, por um homem contra uma mulher.
Haverá, por assim dizer, na
prática, uma inversão do ônus da prova, de sorte que ao acusado incumbirá
demonstra que não agiu com desprezo à condição de mulher. Na prática, todo
crime praticado contra a mulher, no âmbito da violência doméstica, será
considerada, a priori, como tendo por fundamentação o menosprezo à condição
feminina. Ter-se-á, assim, ou a necessidade de o acusado produzir prova
diabólica, ou seja, de que ele produza prova de que não fez algo ou de que algo
não ocorreu, a violar a presunção de inocência. Possivelmente, essa não deveria
ser a intenção originaria do legislador, mas esse nefasto efeito se revelará,
inevitavelmente.
Ainda que não ocorra tal (ilegal)
presunção de ocorrência da elementar típica, fato é que os acusadores
simplesmente poderão imputar o delito de homicídio qualificado por motivo
torpe, acaso haja dificuldade em enquadrar a conduta no tipo de feminicídio.
Assim, a nova lei veicula tipo penal que se afigura inconstitucional ou inócuo.
Trata-se de clara representação do simbolismo.
Além da qualificadora relacionada
ao feminicídio, o legislador ainda trouxe outra novatio legis in pejus no
tocante à possibilidade de aplicação de uma causa de aumento de pena que se
refere apenas ao novo crime, positivada pelo artigo 121, parágrafo 7º, inciso
I:
§ 7º A pena do feminicídio é
aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime for praticado:
I - durante a gestação ou nos 3
(três) meses posteriores ao parto;
II - contra pessoa menor de 14
(catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos ou com deficiência;
III - na presença de descendente
ou de ascendente da vítima.
Vê-se que o inciso II replica
disposição que, anteriormente, já majorava a pena de homicídios dolosos. Quanto
ao inciso III, se observa o caráter seletivo e violador da isonomia da nova
legislação: um homicídio praticado contra a mulher, em contexto de violência
doméstica e em condições de menosprezo de gênero, na presença do cônjuge ou
companheiro, não majora o crime.
Quanto ao inciso I, vê-se que
viola o princípio da proporcionalidade ao veicular um aumento de pena
injustificada em relação a pessoas do sexo feminino que se encontrem nos três
meses após o parto. Razoabilidade alguma há nisso, além do que o período (três
meses e não seis meses ou um ano) foi arbitrariamente escolhido.
A majorante cria ainda um
problema concernente ao princípio do ne bis in idem, uma vez que veicula uma
valoração negativa em relação à conduta de praticar homicídio durante a
gestação de alguém. Sucede que, atualmente, em uma situação deste tipo, se
teria concurso entre o crime de homicídio e o delito de aborto, o que,
entretanto, deixa de existir com o advento da causa de aumento de pena. Na
prática, o legislador inseriu no feminicídio majorado o desvalor do
abortamento, de sorte que não será possível aplicar a majorante e o tipo penal
de aborto, sob pena de haver dupla valoração negativa de um mesmo comportamento.
Destarte, o legislador não gerou
qualquer inovação real do ponto de vista político-criminal para a contenção da
violência contra a mulher, tendo, no entanto, atendido a vontade da plateia
sedenta por novas leis mais duras e novos crimes, sem se aperceber da
falibilidade do sistema penal, da inocuidade das alterações legislativas e da
inexistência de medidas efetivas de enfrentamento do crime.
Como se sabe, o simbolismo penal
consiste na utilização de normas penais para realizar finalidades meramente
representativa, sem se afigurar enquanto medidas efetivamente voltadas a
impactar na redução dos índices de criminalidade. No mais das vezes, o
simbolismo penal é resultado da necessidade de atender a denominada opinião
pública. Como bem observa Alessandro Barata, vive-se um tempo da tecnocracia,
em que os poderes, a fim de se manter, costumam buscar agradar tal
pretensamente pública opinião, ao revés de solucionar, efetivamente, os
problemas[3].
Tem-se, então, nesse sentido, a
chamada legislação simbólica, na medida em que a legislação penal surge não
para solucionar os problemas, mas como mero símbolo. Como um signo de que algo
foi feito em relação a uma demanda social, muito embora não se tenha que esse
algo seria efetivo ou até legítimo, de acordo com o ordenamento e os contornos
de um Estado Democrático de Direito.
Um dos muitos efeitos deletérios
do simbolismo penal é a sensação de impunidade e de ineficiência do sistema
penal, pois não importa quantas leis novas advêm, a criminalidade não cede, de
sorte que o atendimento à opinião pública é temporário: o direito penal
simbólico é apenas um paliativo. Assim, de tempos em tempos, o paliativo é
administrado, pois se afigura mais fácil alterar um tipo penal, do que adotar
modificações estruturais na política de segurança pública.
A Lei 13.104/2015, como se viu,
diante de seus contornos, pouco de novo apresenta ao direito penal,
afigurando-se, em verdade, como medida claramente simbólica, haja vista que
incongruente com um real escopo de diminuir a ocorrência de delitos. Assim,
simplificadamente, a nova lei padece de algumas inconstitucionalidades: 1)
viola a isonomia ao criar um homicídio qualificado por “razões de condição do
sexo feminino”; 2) viola a taxatividade, ao referir-se às razões de condição do
sexo feminino como situações de em que há “menosprezo ou discriminação à
condição de mulher”; 3) viola a lesividade, ao apresentar-se com conteúdo
meramente simbólico; 4) pode violar a presunção de inocência, pois ocasiona o
problema prático de se ter de afastar o menosprezo ao sexo feminino; 5) poderá
violar o princípio do ne bis in idem, ao veicular majorante concernente ao
feminicídio praticado contra mulher grávida e ao valorar, sem fundamento, como
qualificado, o homicídio praticado contra pessoa do sexo feminino.
[1] ROXIN, Claus. Problemas
fundamentais de direito penal. Lisboa, Vega Universidade, 1997, p. 27.
[2] SANTOS, Juarez Cirino dos.
Política Criminal: Realidades e Ilusões do Discurso Pena. In: Discursos
Sediciosos Crime, Direito e Sociedade. ano 7, n. 12, 2º semestre de 2002. Rio
de Janeiro: Revan, 2002, p. 56.
[3] BARATTA, Alessandro. Funções
instrumentais e simbólicas do direito penal. Lineamentos de uma teoria do bem
jurídico. In: Revista do IBCCrim, ano 2, 1994, p. 22.
(*)Gamil Föppel El Hireche é
advogado e professor. Doutor em Direito Penal Econômico (UFPE). Membro da
Comissão de Juristas para atualização do Código Penal e da Comissão de Juristas
para atualização da Lei de Execuções Penais;
(*)Rudá Santos Figueiredo é advogado
e professor. Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista
em Ciências Criminais pelo Juspodivm-IELF.
Fonte: Revista Consultor Jurídico
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