O início de 2017 foi marcado por
cenas trágicas de mais uma rebelião no sistema penitenciário brasileiro. Apenas
nas duas primeiras semanas do ano, ao menos 126 presos foram mortos em
conflitos entre facções criminosas ou perseguições policiais no Amazonas, na
Paraíba, em Roraima, no Rio Grande do Norte e no Paraná.
Imagem ilustrativa |
Não se trata, evidentemente, de
novidade: a história de nossas prisões é a história de sua crise. Propostas de
reforma também são recorrentes. Há mais de 40 anos, uma CPI sobre o sistema
carcerário foi instalada na Câmara dos Deputados, e concluiu que as prisões
brasileiras eram “ambientes de estufa em que a ociosidade é a regra (...); tipo
de confinamento promíscuo, definido alhures como ‘sementeira de reincidência’,
dados seus efeitos criminógenos”.(1) Hoje, diversas alterações legais e duas
CPIs depois, a aposta na prisão como resposta preferencial do sistema de
justiça criminal não foi revertida, mas apenas reforçada.
Os mais de 600 mil presos e
presas no Brasil se amontoam em pouco mais de 370 mil vagas – uma taxa de ocupação
de 161%.(2) Nessas condições, falar em ressocialização é uma ironia de mau
gosto: é simplesmente impossível desenvolver programas de educação,
profissionalização ou mesmo garantir um mínimo de dignidade às pessoas
submetidas à custódia estatal. A realidade que se impôs é bem diversa: facções
criminosas surgiram como forma de resistência à violência estatal e, hoje,
efetivamente controlam os estabelecimentos prisionais, organizando a
delinquência e disputando influência dentro e fora do cárcere.
Há vários anos são formuladas
alternativas legais para dotar o sistema jurídico-penal de ferramentas mais
criativas e eficazes do que o simples encarceramento. A própria edição da Lei
de Execução Penal, bem como da Parte Geral do Código Penal, em 1984, tiveram esse
objetivo. Nos anos seguintes, a ampliação das possibilidades de substituição da
pena de prisão por restritiva de direitos e a multiplicação das hipóteses e
modalidades de medidas cautelares diversas da prisão são apenas algumas das
alterações legais que tiveram como objetivo reduzir o ritmo do encarceramento
no país. Contudo, o movimento segue em sentido contrário: o Brasil tem a quarta
população carcerária do mundo, sendo o único desse grupo cuja taxa de
encarceramento segue crescendo.
Este Instituto tem denunciado,
desde a sua fundação, as mazelas desse estado de coisas. Mas ainda persiste a
visão majoritária que aposta na punição em geral – e na pena de prisão, em
particular – como forma de solucionar os problemas mais complexos da sociedade.
Isso significa que o primeiro desafio é consolidar um consenso mínimo na
sociedade no sentido de que o superencarceramento não é uma solução, mas sim um
grande problema.
Reconhecido o problema, é preciso
identificar as soluções adequadas. Desde o começo do ano, o agravamento da
crise penitenciária levou uma série de entidades e movimentos sociais a
apresentar uma agenda efetiva de reforma do sistema penitenciário.
O IBCCRIM participou de
articulação com a Associação Juízes para a Democracia (AJD), o Centro de Estudos
em Desigualdade e Discriminação (CEDD) e a Pastoral Carcerária Nacional,
elaborando anteprojetos de lei destinados a racionalizar a legislação penal,
processual penal e de execução penal, a fim de enfrentar o superencarceramento
como um problema sério. As propostas aumentam a exigência para que a prisão
seja decretada e equilibram as penas cominadas aos crimes que estão mais
representados nos cárceres brasileiros – na sua grande maioria, crimes
patrimoniais cometidos sem violência.
O Instituto de Defesa do Direito
de Defesa e a Conectas Direitos Humanos apresentaram medidas urgentes para
reduzir a superlotação carcerária. No início de março, o deputado federal Wadih
Damous apresentou 11 projetos de lei destinados a atualizar a legislação e
reverter a tendência explosiva que vivemos hoje.
A preocupação não é de hoje. O
próprio IBCCRIM foi criado logo depois de um dos maiores massacres prisionais
do país, o do Carandiru, em 1992. E, desde 2013, um grupo de organizações
articuladas pela Pastoral Carcerária, Mães de Maio e Justiça Global tem buscado
pautar uma agenda com propostas de desencarceramento.
Sabemos que alterações
legislativas não são suficientes para a transformação do estado de coisas
inconstitucional(3) em que vivemos. Diversas mudanças ao longo dos anos não
foram capazes de inverter a cultura encarceradora do sistema de justiça, que
tão somente replica a ansiedade punitiva da sociedade. Mas a mudança de
verdade, que é sobretudo cultural, depende de um impulso político que poderá
vir da união de forças em torno desse conjunto de medidas e de esforços.
É preciso reconhecer que um dos
principais problemas brasileiros só será resolvido com o desencarceramento em
massa.
Notas
(1) Relatório final da CPI do
Sistema Carcerário. Diário do Congresso Nacional, Seção I, 04.06.1976,
Suplemento, p. 61.
(2) Fonte: Infopen 2014.
(3) “Estado de coisas inconstitucional”
é uma expressão usada na petição inicial da ADPF 347.
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