O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem colocado em prática um amplo e minucioso diagnóstico sobre a situação carcerária no Brasil, por meio de mobilizações concentradas que contam com a participação de magistrados com experiência comprovada na área de execução penal e que tenham desenvolvido projetos exitosos no que tange à ressocialização dos reeducandos. Há cerca de duas semanas, o CNJ deu início ao maior mutirão prisional já realizado até então, tendo como alvo o estado de Minas Gerais.
A população carcerária neste Estado passa a marca dos 50 mil detentos; o desafio para a comissão responsável por fazer um raio-X da situação local é imenso, e poderá alicerçar mudanças na realidade do sistema em todo o território nacional.
A juiza mato-grossense Selma Rosane Santos Arruda foi convidada para atuar como Coordenadora Geral do Mutirão em Minas Gerais, e concedeu a seguinte entrevista a respeito do trabalho que será desenvolvido.
Como a senhora resume até o momento a experiência de coordenar um mutirão de tamanha importância e que envolve um grande contingente prisional?
A experiência é única. Trata-se de um grande estado, com um número muito grande de comarcas, mais de mil magistrados, população carcerária enorme. Há também um número muito grande de unidades prisionais, tanto que provavelmente não conseguiremos inspecionar todas até o final dos trabalhos.
O que mais lhe surpreendeu ou chamou a atenção até agora?
O estado de Minas Gerais tem um ponto muito positivo no que concerne à execução penal, que é o Projeto Novos Rumos. Aqui vemos muitas Associações de Proteção e Assistência aos Condenados (APACs), entidades prisionais que realmente recuperam os condenados e que deveriam se multiplicar em todo o mundo.
Nestes locais trabalham basicamente voluntários e o próprio preso é que cuida da chave da unidade. Você é recebido pelos presos e sente que neles operou-se uma grande mudança, a mudança necessária para a reinserção social adequada. Por outro lado, Minas Gerais ainda não conta com um sistema informatizado de acompanhamento de processos que seja adequado à sua demanda, o que é um pouco preocupante.
Em Mato Grosso a realidade é diferente?
Não somente em Mato Grosso, mas na maioria dos estados as APACs são embrionárias ou nem existem, o que é uma pena. Por outro lado, há notícias de entidades semelhantes em outros países, criadas a partir do modelo mineiro. Já no que diz respeito a recursos de informática, vários estados têm sistemas mais avançados. O ideal é que se obtivesse uma junção destes vetores.
Qual o significado desse mutirão e dos outros nos quais a senhora já atuou para a sua carreira de magistrada? Houve alguma mudança na sua percepção a respeito da questão prisional no Brasil?
Qualquer magistrado se sentiria honradíssimo em receber tarefa de tamanha responsabilidade, principalmente porque esta delegação por parte do Conselho Nacional de Justiça significa também o reconhecimento à magistratura de Mato Grosso, à qualidade dos nossos serviços e a nossa competência. Além disso, trabalhar com a equipe do DMF – Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e do Sistema de Medidas Sócio-educativas do CNJ, cujo coordenador é o juiz Luciano Losekann, magistrado de carreira, vocacionado e extremamente dedicado à causa, é muito gratificante.
A mudança quanto à visão das questões prisionais no Brasil foi inevitável, principalmente quando se conhece uma APAC pessoalmente, quando se vê a diferença entre o ambiente prisional comum e uma instituição deste tipo. Chega-se à conclusão que um dos caminhos é realmente a construção de entidades como as APACs e que a humanização da pena no Brasil é o meio mais eficiente de redução da criminalidade. É preciso humanizar para prevenir a prática de novos delitos. Essa providência é urgente, vez que estamos vivendo em uma sociedade cada vez mais violenta.
De que forma a sua atuação no Projeto RecuperAÇÃO no biênio 2007/2009 contribuiu para prepará-la para esses desafios maiores?
O Projeto RecuperAÇÃO foi decisivo para que hoje eu estivesse preparada para este trabalho. Quando o desembargador Orlando Perri me convidou para trabalhar com o sistema prisional de Mato Grosso eu não tinha ideia do que se tratava. Esse problema é também o da maioria dos magistrados criminais. Trabalha-se muito com processos e muito pouco com pessoas. Combate-se o criminoso e não o crime. Isso acaba nos brutalizando um pouco. Na minha opinião, todo magistrado criminal deveria ter a obrigação de inspecionar e visitar periodicamente as cadeias públicas e penitenciárias.
Trabalhar no Projeto RecuperAÇÃO me fez ver o quanto é carente esta área, como são necessárias ações para melhorá-la e como é necessário o esforço conjunto do estado com a sociedade para se obter resultados satisfatórios. Por isso tenho profunda admiração pelo desembargador Perri, que foi um homem que anteviu a necessidade de conferir especial atenção ao sistema prisional, à execução penal e à recuperação do indivíduo que comete crimes.
Mutirões semelhantes serão realizados em outros grandes estados?
Com certeza. Há previsão para que nenhum estado brasileiro fique fora dos mutirões. Além disso, vários estados já estão repetindo este trabalho. É de extrema importância que todos os estados passem por mutirões, já que além da otimização dos trabalhos e da verificação da regularidade das prisões, o CNJ está disseminando boas práticas, eliminando problemas e falhas que são encontradas e, com isso, todo o País sai ganhando, em produtividade e eficiência e em uniformização de procedimentos.
O que a sra pensa sobre o fato de contar com o apoio de uma servidora do Poder Judiciário de Mato Grosso nesse trabalho?
É outro motivo de honra. É um sinal de que os servidores de Mato Grosso são competentes, dedicados, probos. Merecem todo o nosso respeito e precisam ser homenageados por seus méritos. A servidora Ismaela atualmente está prestando serviços no Pólo do município mineiro de Governador Valadares e tem demonstrado excelente produtividade. Além disso, poderá trazer para Mato Grosso o conhecimento que adquiriu, melhorando, assim, a qualidade dos serviços prestados na Secretaria da Vara de Execução Penal da Capital.
Em sua opinião, o que é preciso ser feito no Brasil para que a reinserção do reeducando na sociedade possa ser algo efetivo?
Uma das saídas é a multiplicação das APACs, com certeza. Mas não é só isso. É preciso tratar o problema de modo científico, atacá-lo de frente, investir maciçamente no aparelhamento, em pessoal qualificado, em medicina psiquiátrica, em assistência social, religiosa, material e psicológica de fato. É necessário o efetivo combate à droga, lícita e ilícita, a implantação de centros de tratamento para desintoxicação, a conscientização da população a respeito. Não basta investir na construção de estabelecimentos penais, simplesmente. Não haverá cadeia suficiente se não ajustarmos as pessoas criminosas para o convívio pacífico.
Também é necessário que se obedeçam as leis vigentes, que prevêem maneiras de ressocialização impraticáveis atualmente, porque simplesmente o Estado não cumpre a Lei. Isso vem desde a problemática da Infância e Juventude. Vejo também que em locais onde a sociedade está mais envolvida com o problema, os resultados são bem melhores. Já nas localidades em que isso não acontece, a criminalidade é maior, mais violenta e sempre crescente. Outro ponto a ser trabalhado com mais eficiência pelo estado é a aplicação das penas e medidas alternativas, em substituição às prisões, quando é possível fazê-lo.
A correção de antigas distorções no sistema também é uma bandeira defendida pelo CNJ. Qual é a maior dificuldade enfrentada para resolver ou ao menos reduzir a intensidade desses problemas?
O Conselho Nacional de Justiça tem procurado colaborar para a resolução de alguns problemas, como por exemplo, a questão da problemática da mulher encarcerada, especialmente quanto aos aspectos de suas especificidades de gênero e muito especialmente em face daquelas que têm filhos pequenos, que dependem da convivência materna.
Veja que esta preocupação é de extrema importância, já que se sabe que grande parte dos delinqüentes que hoje cumprem pena no sistema prisional brasileiro já foram crianças maltratadas ou abandonadas. Assim, o CNJ criou um grupo de estudos para o enfrentamento da questão, do qual também honrosamente faço parte, que já criou inclusive sugestões legislativas para inserção na próxima Lei de Indultos e também pretende inserir mudanças na Lei de Execuções Penais, que não visualiza adequadamente estas questões de gênero.
Além dessas iniciativas, o grupo de estudos tem programadas outras ações, como por exemplo, a edição de uma cartilha para mulheres encarceradas, que visa instruir estas pessoas sobre seus deveres e direitos. O Conselho Nacional de Justiça tem várias outras frentes de trabalho para o enfrentamento destas questões e não tem poupado esforços. Porém, o Brasil é um país de dimensões continentais e esta seara é muito pouco explorada, muito pouco se fez até hoje para solucionar o problema, o que me leva a crer que ainda há muito trabalho pela frente.
(Fonte: TJMG)
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