Convencida de que a corrupção é "causa decisiva" da pobreza das cidades e está "largamente entranhada em vários setores (da vida pública), representando um risco real à democracia", a procuradora da República Raquel Elias Ferreira Dodge propõe um novo olhar do Estado na aplicação da lei penal. Ela defende que se trate a corrupção como grave violação de direitos humanos. "Engana-se quem pensa que corrupção destrói apenas a moral e o patrimônio público. Ela afeta a vida humana no que ela tem de mais precioso." A ação dos corruptos, diz, solapa os direitos humanos básicos, como saúde, educação e a livre circulação em estradas seguras.
A voz suave e os gestos discretos contrastam com a disposição implacável de Raquel quando se trata de combater corrupção e crimes do colarinho branco. Ela é responsável pelas investigações da Operação Caixa de Pandora, que levaram pela primeira vez à prisão um governador, José Roberto Arruda (DEM-DF), hoje afastado do cargo. Ela promete oferecer, até dezembro, denúncia contra os envolvidos no escândalo que engolfou a capital da República.
Procuradora desde 1987, Raquel coordena atualmente a 2.ª Câmara, uma das mais importantes do MP, responsável pelas matérias criminais e pelo controle externo da atividade policial. Com mestrado em Harvard (EUA), Raquel é detentora de uma carreira considerada exemplar, com foco nas áreas criminal e de defesa de direitos humanos. Atuou na equipe que investigou, processou e obteve condenação da quadrilha liderada pelo ex-deputado Hildebrando Paschoal, do Acre. Tem atuado também na defesa do patrimônio público, de índios e minorias e no combate ao trabalho escravo. São da sua lavra os dois primeiros inquéritos civis públicos instaurados no País para investigar violações ao direito à saúde. As iniciativas tiveram repercussão na aprovação da Emenda Constitucional 29 e na consolidação do SUS no Brasil.
A sra. tem tratado a corrupção como grave violação de direitos humanos. Em que sentido?
Essa perspectiva do direito penal não é nova, mas a ênfase sim. Atos de corrupção atingem diretamente o cidadão, uma vez que ele tem serviços e obras não concluídos pelo Estado. O que essa abordagem traz de novo é que ela invoca a perspectiva da vítima do crime. Pessoas se apropriam de verbas públicas importantes para a realização de direitos fundamentais, previstos na Constituição, como direito a saúde, educação, moradia e o de transitar livremente em estradas seguras. Quando há apropriação ilícita de verbas, esses serviços acabam não sendo prestados, ou prestados de forma ruim. Vidas humanas são ceifadas em estradas de péssima qualidade. Crianças deixam de ir para a escola, cirurgias deixam de ser feitas nos hospitais.
É um olhar novo do Ministério Público? Nós estamos propondo uma diretriz e critérios objetivos de atuação. Usaremos o direito penal para defender direitos humanos. Nas estradas brasileiras, muitas de péssima qualidade, morrem muitas pessoas. Nelas, transita a produção agrícola e industrial. Os preços dos produtos ficam prejudicados pela má qualidade das estradas. Nos hospitais também morrem muitos por falta de assistência. Há uma crônica deficiência de aparelhamento hospitalar nas pequenas cidades. Naquilo que essas deficiências estiverem relacionadas com corrupção, nós vamos agir.
O tema corrupção foi abordado superficialmente nesta campanha eleitoral. A corrupção está sob controle no País?
Não. No Brasil, nós temos a corrupção largamente entranhada em vários setores do Estado. Em 1958, Nelson Hungria, quando fez análise do Código Penal Brasileiro de 1940, ainda em vigor, anotou que já naquela época a corrupção estava disseminada no Estado. Ele dizia: a Justiça é lenta, não atinge mandantes, nem os verdadeiros beneficiários da corrupção. Ela só tem conseguido alcançar os executores e intermediários. Temos de aprimorar a atuação judicial para que ela seja célere e também responsabilize criminalmente os mandantes e os verdadeiros beneficiários da corrupção.
Que atores devem estar envolvidos nessa mobilização que a sra. propõe contra a corrupção?
O primeiro estímulo é dirigido aos procuradores da República, que têm o poder de requisitar investigações contra os diferentes tipos de corrupção que ocorrem no País. Defenderemos uma boa aplicação dos recursos públicos na saúde, na educação e nas estradas.
A sra. é um dos responsáveis por colocar na prisão, pela primeira vez, um governador de Estado envolvido em corrupção. Foi um fato isolado?
É uma sinalização aos altos dirigentes do País sobre os novos tempos no combate à impunidade. O ano de 2010 é um ano feliz no sentido da maior eficiência do direito penal. Tivemos a prisão de um governador no exercício do cargo e também condenações pioneiras pelo STF. Caminhamos para a consolidação do Estado democrático de direito em que a lei passa a valer para todos. Quando necessário, usaremos sim a lei, como fizemos no caso do governador do DF, uma prisão necessária para facilitar a instrução penal. O caso sinaliza para governantes e a população que uma nova etapa se inicia no País.
Que conselhos a sra. dá aos novos dirigentes que saem das urnas?
O dirigente público deve ficar atento a esse novo olhar do MP. Faço um alerta ao administrador, para que ele tenha zelo com o que acontece no âmbito da instituição que ele dirige, para que faça auditorias, adote mecanismos de controle e não permita a prática da corrupção. São atitudes preventivas. Os crimes acontecem sempre que há a tentação e, apesar do risco, não haja alguém exercendo essa vigilância.
Quais os maiores entraves à aplicação da lei penal de forma igualitária?
O foro privilegiado é um fator grave. Dificulta o combate à corrupção por várias questões. Uma delas é a mudança frequente da condição do acusado. Ora ele é autoridade com foro, ora perde a condição. Isso acaba dificultando a prestação jurisdicional. Mudança de mandato altera o foro que vai julgar a pessoa, interrompendo bruscamente o curso da ação penal. O privilégio é baseado numa desconfiança, a de que juízes singulares, que julgam qualquer um de nós, não têm isenção necessária para julgar quem tem foro especial. Acredito que a confiança é o maior ativo social e nós temos de confiar que os juízes que são aptos para julgar qualquer cidadão do povo também são aptos para julgar com isenção e qualidade técnica qualquer pessoa acusada de crime no País. Chega de foro privilegiado.
Sua preocupação faz supor que o Brasil está perdendo a guerra contra a corrupção. Há riscos para a democracia no horizonte?
Há riscos, mas acredito que estamos andando numa trilha favorável à superação do que muitos estudiosos chamam de transição democrática. Saímos de uma fase de ditadura, repressão e menos garantias individuais. Acredito que caminhamos para uma democracia mais madura, onde o foco da atenção institucional esteja na aplicação da lei. As instituições estão cada vez mais tendo suas funções exercidas por profissionais qualificados, sejam policiais, promotores, juízes, que têm conseguido exercer bem sua atribuição e fazendo a lei sair do papel.
Como está a qualidade da prova produzida no País pela polícia e o MP?
Precisamos melhorar muito. A prescrição penal ainda é um dos grandes fatores de arquivamento de investigações e, portanto, um dos grandes fatores de impunidade. Há demora na elaboração do inquérito. Mas precisamos também melhorar a qualidade da prova pericial e documental para que as condenações dependam menos das provas testemunhais. Hoje é um fardo enorme para o brasileiro ser testemunha de algum crime. Nós precisamos equilibrar isso, melhorando a qualidade dos documentos e das perícias que são feitas nas investigações.
E no Judiciário, quais são os nós que precisam ser desatados?
Um dos mais importantes consiste em definir critérios objetivos sobre os casos que entram na pauta de julgamentos. É uma questão relevante porque nos tribunais não há critério objetivo e claro a respeito de qual caso será julgado antes do outro. Não se sabe se é o que foi ajuizado primeiro, se entra o caso mais relevante por causa de sua repercussão, ou outro fator objetivo. A questão da prescrição é importante como fator de encerramento prematuro da ação penal. Esse é um diálogo importante que temos de abrir com o Judiciário, para ver como é possível aumentar a velocidade dos julgamentos sem comprometer nenhuma das garantias que a Constituição oferece ao cidadão. (Fonte: O Estadão)
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