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segunda-feira, novembro 14

VITIMOLOGIA E VITIMODOGMÁTICA: UMA ABORDAGEM 'GARANTISTA' - Parte II

   Ana Cláudia Lucas
   Para o Blog

             3. A POSIÇÃO DA VÍTIMA NA CIËNCIA CRIMINOLÓGICA

A vítima, na Criminologia, também não mereceu, inicialmente, posição de destaque. Explica-se o fenômeno porque a Criminologia, como ciência, teve sua origem na Escola Positiva - século XIX - cujo objeto principal era o estudo do crime a partir do homem criminoso[1]. O debate criminológico, na época, envolvia as causas do comportamento criminoso, partindo-se, sempre, da pessoa de quem delinqüia.

Nas primeiras décadas do Século XX surgem tentativas no sentido da explicação do crime através da sociologia. Algumas dessas teorias sociológicas, cujas principais surgem nos Estados Unidos, buscaram caracterizar o fenômeno criminoso a partir dos movimentos sociológicos da época: surgem, por exemplo, as escolas subculturais, a escola ecológica e a teoria da anomia[2].

Mais adiante, nos anos 60, outra teoria - a da Reação Social ou do Labeling Approach - contribuiu para desviar a explicação do fenômeno criminoso da pessoa do autor do fato para a sociedade criminógena que, em última análise, fomenta a criminalidade, pois que será a partir da interpretação do fato criminoso, pela sociedade, é que se define se ele é, ou deve ser, qualificado como desviante[3]

Como conseqüência, todas as questões sobre as causas da criminalidade passam a ser discutidas, tratadas e indagadas como causas da criminalização, e podem determinar o surgimento da desviação primária - que pode Ter ampla gama de causas, podendo chegar o indivíduo às práticas criminosas por razões bio-antropológicas, psicológicas ou sociológicas - e da desviação secundária - fruto do processo de estigmatização a que submete-se o indivíduo delinqüente[4].

O grande mérito da teoria do "labelling approach" foi promover uma visão crítica da reação ao crime, especialmente por enfocar sua análise nas instâncias de controle, bem como demonstrar que o criminoso não é um ser diferente, a não ser pelo fato de Ter recebido uma "etiqueta"do sistema penal[5].

Na seqüência das teorias criminológicas, etiológico-explicativas do fenômeno criminoso, surge o movimento da Criminologia Crítica. Nela, seguindo a inspiração do "labelling approach" deixa-se de lado o enfoque sobre o autor, para avaliar as condições objetivas, estruturais e funcionais do desvio, além de buscar as causas dele nos mecanismos sociais e institucionais nos quais se constrói a realidade do desvio[6].

Em qualquer das posturas criminológicas acima citadas, o papel da vítima não tinha quase nenhuma importância. A não ser pelo fato de que ela compunha a sociedade e, por isso mesmo, poderia de algum modo contribuir para o etiquetamento - na concepção interacionista do "labelling approach", sobre a vítima não se ocupavam os movimentos criminológicos.

É somente na década de 80 que a vítima passa a ter papel destacado dentro da Criminologia, que retoma posturas etiológicas sobre o crime, buscando compreende-lo a partir do conhecimento não só de seu agente, mas também de todo o processo de reação ao crime.

A Criminologia passa a ser a "ciência empírica e interdisciplinar , que se ocupa do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida, contrastada sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime - contemplado este como problema individual e como problema social - assim como sobre os programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no homem delinqüente[7]". Ou seja, uma criminologia da ação e da reação, do delinqüente e da vítima.

Desse modo, pode-se dizer que a questão da vítima só evidenciou-se sistematizada dentro da Criminologia, em tempos modernos, podendo afirmar - se ainda que diante de certo descaso do sistema penal frente às vítimas, que não raro são deixadas de lado pelo Estado e pela sociedade civil- há, nascendo, um certo movimento vitimológico que pretende resgatar o papel da vítima dentro do processo de reação ao crime.

4. O MOVIMENTO VITIMOLÓGICO DENTRO DA CRIMINOLOGIA

O movimento vitimológico foi impulsionado em sua origem, pelos movimentos internacionais de direitos humanos, durante o período pós Segunda Guerra mundial[8]. Os programas de assistência às vítimas de crimes, que atuam principalmente diante do sofrimento humano e social dos ofendidos pela criminalidade, também emprestaram sua contribuição.

Contudo, a sistematização dos estudos envolvendo as vítimas originou-se com as aportações de dois autores: Von Hentig, professor alemão, e Mendelsohn, professor israelita[9]. Ambos autores traçaram uma concepção de vítima e de vitimologia, sendo que o segundo, de acordo com a doutrina, superou o primeiro, tendo em vista que seu conceito de vítima foi mais abrangente, não se restringindo apenas à vítima do crime, como compreendeu Von Henting[10].

Para Mendelsohn a Vitimologia era um novo ramo de investigação, independente da Criminologia, porque além da vítima de crime, existe a vítima das máquinas, da sociedade, dos homens, vítimas de deficiências, de problemas psicológicos e de problemas sociais.

No Brasil, o precursor desse ramo de investigação que é a Vitimologia foi Edgar de Moura Bitencourt, que em 1971 lançou obra intitulada "Vítima". Posteriormente, no Paraná, no ano de 1973, o I Congresso Brasileiro de Vitimologia deixou, em seus anais, o registro da necessidade de que uma reforma legislativa no Brasil atendesse os reclamos da Vitimologia[11].

Com a criação, em 1984, no Rio de Janeiro, da Sociedade Brasileira de Vitimologia, impulsiona-se fortemente o estudo e o desenvolvimento da matéria no Brasil[12].

Em 1995, novo marco para a Vitimologia: a obra de José Scarance Fernandes, O papel da vítima no processo criminal, rompe o silêncio até então existente, para enfrentar, em definitivo, a questão da vítima no direito penal e processual penal.

Muito embora a posição de Mendelsohn, para quem a vitimologia era um ramo independente da Criminologia, não há dúvidas sobre a relação existente entre ambas. Neste particular muitos criminólogos incluem a vitimologia como um objeto da criminologia. Diante dessa questão, existem duas posições: a que considera a vitimologia como ciência independente e autônoma e, outra, que considera a vitimologia dentre do campo da investigação criminológica, sem lhe reconhecer independência alguma[13].

Desse modo, o estudo da vítima faz parte da criminologia atual, pois não há como imaginar uma ciência que tenha por objeto estudar empiricamente o fenômeno criminoso e da reação social que ele provoca, sem introduzir o estudo da vítima.


[1] Antônio García-Pablos de Molina, Manual...p. 76; 
[2] Superadas as idéias lombrosianas próprias da Escola Positiva, novas concepções surgiram na intenção de dissecar o fenômeno do crime. As principais correntes sociológicas são: A "ecologia criminal", desenvolvida com a Escola de Chicago, que entendia que o crescimento desordenado das cidades era importante fator criminógeno. Por outro lado, as "teorias subculturais" relacionavam o surgimento do crime pelo aprendizado do comportamento criminoso - a chamada subcultura delinqüente – identificada com o dito popular "dize-me com quem andas e dir-te-ei quem és", ou seja, este indivíduo é um bom homem mas envolveu-se com uma turma "da pesada" é já se meteu em problemas..." e, também explicada, no que diz respeito à delinqüência juvenil, a partir da reação do jovem que, diante da frustração em não poder alcançar aquilo que deseja ( bens materiais ), acaba por criminar. Estas duas posturas buscam explicar, assim, as causas do desvio, na bio-antropologia. Além destas, a "teoria da anomia", representanda por Durkheim, para qual as causas do desvio não são antropológicas, e nem representam uma situação doentia da estrutura social, mas se constituem num fenômeno normal de toda a estrutura social. Para Merton, que desenvolveu a tese da anomia, o crime é parte integrante da sociedade e a reação social provocada por ele cumpre uma importante função, qual seja, a de estabilizar e manter vivo o sentimento coletivo dos cidadãos da necessidade de conformar-se com as normas, sendo, portanto, o delinqüente, um agente regulador da vida em sociedade. As causas do comportamento criminoso, assim, não está no próprio homem que delinqüe, mas nas estruturas da sociedade. Nesse sentido consultar Alessandro Baratta, Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, p. 54; Eugenio Raúl Zaffaroni, Manual...p.311; Francisco Muñoz Conde, La resocialización del delincuente, analisis y crítica de un mito, p. 93; Helena Larrauri, La Herencia de la criminología crítica, p. 5; Clifford R. Shaw, Delinqüência Juvenil e desorganização social, p. 383.  
[3] Nessa concepção a conduta não é considerada intrinsicamente criminosa porque o ser crime é uma qualidade, uma etiqueta criada pelas instâncias formais de controle. A criminalidade vai sendo originada pela incapacidade de assimilação de um sistema sócio-econômico que tem de recorrer a processos de etiquetamento do sujeito delinqüente, para poder seguir mantendo a origem desigual que interessa aos que detém o poder. Desse modo, a responsabilidade pelos processos de criminalização é da ordem social. Para esta postura, o indivíduo sempre se comporta a partir das expectativas que tem sobre os demais, uma vez que nada tem valor por si só, mas adquire valor pela interação simbólica frente as outras coisas. Consultar, Alessandro Baratta, Criminología...p.89/96; Borja Mapelli Caffarena, Des-viacíon Social y Resocialización, p. 374; 
[4] Alessandro Baratta, Criminología...p. 97; Mapelli Caffarena, Desviación....p. 378; 
[5] Alessandro Baratta, Criminología...p. 177; 
[6] Alessandro Baratta, Criminología...p. 176;  
[7] García- Pablos, Momento atual da reflexão criminológica. Revista Brasileira de Ciëncias Criminais, p. 7/22; 
[8] Oliveira, Ana Sofia S., A Vítima ...p. 19; Beristain, Antonio. Victimología-Nueve Palabras Claves. Tirant lo Blanch Libros. Valencia, 2002; 
[9] Neuman, Elias. Victimología y control social. Las víctimas del sistema penal. Buenos Aires: Universidad, 1994; 
[10] Neuman, Elias. Victimología: el rol de la víctima em los delitos convenciona-les y no convencionales. Buenos Aires: Universidad, 1994; 
[11] Bitencourt, Edgar de Moura. Vítima- Vitimologia. Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo, 1977; 
[12] Piedade Júnior, Heitor. Vtimologia: evolução no tempo e no espaço. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1993; 
[13] Antônio Garcia Pablos de Molina, Manual ... p.85;  

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