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terça-feira, setembro 29

Princípio de Não Auto-incriminação ou “Nemo tenetur se detegere”.

Li na edição escrita do Diário Popular de hoje que o Superior Tribunal de Justiça negou pedido de Habeas Corpus ajuizado por motorista que contestava a obrigatoriedade do teste do bafômetro em caso de abordagem policial, sob o argumento de que a Lei é inconstitucional, por obrigar à produção de prova contra si mesmo.

Referida notícia, assim, motivou-me a escrever sobre o Princípio “nemo tenetur se detegere”, ou seja, o princípio da não auto-incriminação, muitas vezes objeto de indagações que me são feitas pelos alunos.

Pois bem, referido princípio, dentro das mais diversas classificações que podemos adotar, está inserido nos chamados princípios de garantia, porque através dele se concede ao cidadão uma garantia, sendo, ao mesmo tempo, um princípio fundamental, um direito do homem, juridicamente e institucionalmente garantido, inclusive por Convenções e Tratados Internacionais. Cite-se, à titulo ilustrativo, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da Assembléia Geral das Nações Unidas, ambos declarando que todo o cidadão tem “direito de não ser obrigado a depor contra si mesmo, nem a confessar-se culpado”.

O princípio “nemo tenetur se detegere” tem origem nos Princípios da Dignidade Humana, da Ampla Defesa e da Presunção de Inocência, residindo neste último, talvez, sua mais evidente fundamentação.

A Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LVII inscreveu, em definitivo, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, assegurando, assim, a presunção da não culpabilidade, ou da inocência.

Ora, a conseqüência imediata de presumir-se o acusado como inocente está na atribuição do ônus da prova à acusação, pois que se a Constituição Federal, e a lei presumem essa inocência, até que transite em julgado a sentença condenatória, não é o acusado que deve provar ser inocente mas, ao contrário, a acusação deverá indicar-lhe a culpa. Extrai-se, portanto, do princípio da inocência o direito a não auto-incriminar-se, próprio do “nemo tenetur se detegere”.

Assim, a garantia da não auto-incriminação está presente na necessária afirmação do Princípio de Presunção de Inocência.

Por outro lado, no Princípio da Ampla Defesa pode-se identificar a origem principiológica do “nemo tenetur se detegere” . O artigo 5º, inciso LV da Constituição Federal estabelece que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e ampla defesa, como meios e recursos a ela inerentes”. Assim, através deste postulado, se concede importante garantia do processo penal, tanto no que respeita à autodefesa, quanto no que pertine à defesa técnica. Ora, o direito ao silêncio, forma de autodefesa, é decorrência do “nemo tenetur se detegere”.

E, por fim, o Princípio da Não Auto-incriminação encontra forte amparo no Princípio da Dignidade Humana, já que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, conforme insculpiu o artigo 1º., inciso III da Carta Constitucional. Por isso mesmo, ainda que não houvesse previsão do princípio “nemo tenetur se detegere” na seara processual penal, estaria contemplado no âmbito jurídico-constitucional em face da proteção à dignidade humana.

No âmbito processual penal, as conseqüências do Princípio do “nemo tenetur se detegere” se apresentam de várias formas, e em diversos momentos processuais.

No interrogatório do acusado, por exemplo, está garantido o direito ao silêncio – que pode se estender a todas as fases do processo – assim como também estarão proibidas as perguntas obscuras, dúbias, tendentes a perseguir a confissão do acusado, assim também a utilização de formas inescrupulosas, torturantes, inclusive no que pertine ao tempo de duração do interrogatório. Além disso, para o interrogando inexiste o dever de dizer a verdade, pelo simples fato de que, para a sua mentira, não há qualquer sanção.

Já no âmbito da prova, há limites, por certo, que decorrem do princípio em comento.

Veja-se, por exemplo, como o princípio pode ser atacado diante das chamadas provas invasivas, aquelas que demandam intervenção corporal no acusado (perícias, exames de sangue, exame ginecológico, identificação dentária etc), ou outras, não invasivas, como os reconhecimentos, as reconstituições, acareações, exames grafotécnicos, do etilômetro (bafômetro), o clínico de embriaguez etc.

Ora, parece decorrência do “nemo tenetur se detegere” a inexistência de obrigação, para o acusado, de contribuir na produção da prova e, portanto, negar-se a realização de qualquer destes meios de prova é direito que se impõem.

Do ponto de vista jurisprudencial não são poucas as decisões, tanto no Supremo Tribunal Federal, como nos Tribunais de Justiça, inclusive o do Rio Grande do Sul, que vem reconhecendo que a prova não pode ser obtida sem a permissão da pessoa, porque, de outro modo, seria obrigá-la a se auto-incriminar, o que tornaria, inclusive, ilícita a produção probatória. Do mesmo modo a negativa do acusado em colaborar com a produção da prova, a fim de não se auto-incriminar, não pode importar prejuízo a si mesmo.

Não obstante, se por um lado fica a garantia do cidadão em não se auto-incriminar, por outro se pode experimentar um sentimento de que, deste postulado, resulte, sempre, impunidade. Não é isso que se quer; não é isso que se deseja. E é evidência disto o fato de que, o princípio em comento, embora venha sendo adotado, reconhecido e assegurado seja sempre aplicado com limitações, e essas não devem ser mal acolhidas, desde que não interfiram no equilíbrio que deve existir na relação do Estado que acusa com o indivíduo que tem direito a defesa ampla.

(Observação: Para quem se interessar particularmente pelo assunto, sugiro a leitura de: Elizabeth Queijo, Maria. O Direito de não produzir prova contra si mesmo. Editora Saraiva, 2003).

2 comentários:

regcaldas disse...

Estou fazendo um artigo sobre o tema, e a qualidade deste artigo me chamou a atenção e queria fazer algumas perguntas, e tenho percebido que esse direito, na verdade, é direcionado, tão somente, ao infrator de norma legal, a minha pergunta é se ele tem formas de mitigação, ou é absoluto?

Ana Cláudia Lucas disse...

Reginaldo,
Os princípios não são absolutos, eis que precisam ser considerados na medida dos demais Princípios de Direito e de Processo Penal. O P. do nemo tenetur se detegere é considerado um direito fundamental, eis que previsto na Constituição Federal,de forma implícita e explícita, no capítulo dos direitos e garantias individuais. Ele se constitui num limite, ante a inexistência de norma limitadora da prova, por exemplo, ou da investigação e se estende, na atualidade sobre todos os meios probatórios, ou seja, no interrogatório, por meio do direito ao silêncio (art. 5º, LXIII, da CF), e nas modalidades probatórias (acareação, reconstituição do evento criminoso, bafômetro, exame de DNA, etc.) que requerem a colaboração do acusado. Não se trata, contudo, de um direito absoluto, pois se levado às últimas conseqüências poderá inviabilizar o interesse público no cumprimento da lei penal. Será necessário harmonizá-lo com os demais princípios garantidores mediante um juízo de ponderação, executado pelo Poder Judiciário, quando invocado num caso concreto, por meio do método do princípio da proporcionalidade, composto pelo subprincípios adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito.