Ana Cláudia Lucas(*)
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SUMÁRIO: 1. Introdução – 2. A importância da vítima historicamente: breve relato – 3. A posição da vítima na Ciëncia Criminológica – 4. O movimento vitimológico dentro da Criminologia – 5. Um conceito de Vitimologia – 6. Efeitos do estudo vitimológico na Criminologia – 7. A Vitimologia e o Direito Penal – 8. Considerações finais
1. INTRODUÇÃO
A idéia de escrever sobre o tema Vitimologia[1] surgiu a partir da observação de que, na atualidade, em época de Garantismo Penal, as leis e, também, a doutrina, têm reservado espaço considerável para referir sobre os muitos direitos e 'garantismos' assegurados ao delinqüente, descuidando, na maior das vezes, dos direitos e 'garantismos' da vítima, colocando-a à margem de todo o processo que envolve o binômio agente criminoso e vítima do crime, no esquecimento de que o Direito Penal é um direito de dupla face: deve proteção ao delinqüente, mas também o deve à sociedade, vítima real ou potencial das agressividades daquele[2].
Baratta[3], nesse sentido, já referia que o compromisso e o cuidado do sistema de justiça criminal do Estado é dever ser coerente com seus princípios garantistas, quais sejam, Princípios da limitação da intervenção penal, de igualdade, mas também, e especialmente, o Princípio de Respeito ao direito das vítimas, dos imputados e dos condenados.
Por outro lado, a motivar o debate, está o fato de que, muito embora na doutrina nacional o tema Vitimologia/Vitimodogmática seja quase desconhecido, sendo pouca a produção doutrinária a respeito, já se percebe, na atualidade, a sua influência em algumas produções legislativas, como na Lei 9.714/98[4], com a previsão da pena pecuniária; na Lei 9099/95[5], na conciliação e na transação penal e na multa reparatória, introduzida pela Lei 9.503/97[6]. Inobstante, existe farta doutrina internacional que tem considerado, a vítima, como um dos elementos indispensáveis dentro de propostas de política criminal garantista[7].
2. A IMPORTÂNCIA DA VÍTIMA HISTORICAMENTE - BREVE RELATO
A trajetória sobre o papel da vítima nos momentos históricos mais relevantes do Direito Penal e da própria Criminologia estão a evidenciar que a mesma experimentou, no início da civilização, forte influência na punição e castigo do infrator. A existência da vingança ou justiça privada, através da qual à autoridade familiar a qual pertencia a vítima confiava-se a persecução e a punição dos crimes é exemplo de que, ainda que a vítima não ocupasse papel mais importante, ou absoluto, no exercício do jus puniendi, sem dúvida que ela estava representada nesse momento, não sendo sua vontade e influência desconsideradas[8].
Assim, se ao início, em período anterior a fixação do jus puniendi como uma atividade exclusiva do poder público, a vítima assumira uma postura relevante no processo que a envolvia e relacionava ao crime praticado, aos poucos sua participação e evidência foram sendo colocadas de lado, e a vítima foi banida, confinada a um papel secundário, lateral dentro não só do Direito Processual, mas também no âmbito do Direito Penal[9]. Quando o Estado se assume como o detentor do jus puniendi, chamando, exclusivamente para si o exercício da reação penal, na mesma medida a vítima é afastada, colocada de lado na esfera do sistema penal[10].
Outras razões históricas também podem ser elencadas para explicar esse fenômeno que fez com que a vítima passasse a desempenhar papel secundário no conflito penal. No Direito Canônico, por exemplo, a atuação dos tribunais eclesiásticos, inicialmente de procedimento acusatório, passa logo a ser inquisitorial e, nele, a vítima não tinha nenhuma participação[11]. Foucault[12] refere que a acumulação de riquezas nas mãos de uma minoria foi fator desencadeante para o afastamento da vítima da esfera do sistema penal. Segundo Foucault[13] agente criminoso e vítima perderam o direito de buscar, por sí, a solução do conflito, porque precisavam submeter-se a um poder exterior (a minoria 'rica') que se apresentava como poder judiciário, como um poder político.
Assumindo o Estado o jus puniendi, a persecução penal e a imposição das penas deixam de ser, na regra geral, iniciativa da vítima e, por isso mesmo, nem sequer estarão voltadas para atender seus próprios interesses[14].
É somente em tempos mais modernos, a partir do final da Segunda Guerra Mundial, que a vítima passa a ser objeto de estudos mais aprofundados pela Criminologia e, mais recentemente ainda, é que a ciência do Direito Penal dirigiu seu olhar para a vítima, alavancando, inclusive, o surgimento de um novo ramo da ciência penal identificado como "vitimodogmática"[15].
*Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS); Professora da Universidade Católica de Pelotas e da Universidade Federal de Pelotas, nas disciplinas de Direito Penal,Criminologia e Prática do Processo Penal.
[1] Como Vitimologia se deve entender o estudo científico da vítima; parte da Criminologia que estuda o fenômeno criminoso a partir da visão de quem sofre o ataque a bem juridicamente protegido. Nesse sentido consultar ...
[2] Anibal Bruno, Direito Penal, p.69/70;
[3] Alessandro Baratta. Funções Instrumentais e Simbólicas do Direito Penal. Lineamentos de uma Teoria do Bem Jurídico. Revista Brasileira de Ciências Criminais, Volume 5, São Paulo, IBCCrim;
[4] Lei que alterou a redação do artigo 43 e 44 do CPB, fazendo inserir, dentre outras, a chamada pena pecuniária, que reverte em benefício da vítima;
[5] Lei que instituiu os Juizados Especiais Criminais, inserindo os institutos da conciliação, transação penal e reparação de danos, reveladores de que, finalmente, o legislador penal lembrou-se das vítimas;
[6] Lei que instituiu o Código Nacional de Trânsito, nele inserindo a figura da multa reparatória;
[7] Alessandro Baratta, Funções...p. ; Winfried Hassemer, Fundamentos del Derecho Penal, p. 79; Antonio García-Pablos de Molina, Manual de Criminología, p. 92
[8] Bettiol, Direito Penal...p. 106, discorda da idéia de que o Direito Penal, em suas origens, tivesse caráter privado, em face da não constituição da autoridade do Estado para aplicação do jus puniendi. Para ele, a autoridade familiar à qual estava reservada a perseguibilidade e a punibilidade não estava enquadrada em um sistema privatístico de aplicação do direito, porque o pater familiae, nessa situação, agia não como um depositário do poder privado, mas como uma expressão de autoridade política e, portanto, pública. Mesmo parecendo correta a exposição de Bettiol, outros autores, como Antônio García-Pablos de Molina, Manual...p.79 e Winfried Hassemer, Fundamentos...p.92 concordam com o fato de que a vítima exercia, nesse momento, importante papel no exercício da persecução e da punição penais, e que a neutralização da vítima se dá na medida do nascimento e fortificação do Estado e do Direito Penal como instsituição pública;
[9] Oliveira, Ana Sofia de, A vítima e o Direito Penal, p. 32, bem ilustra o que se afirma, exemplificando a situação com três dispositivos do Código Penal Brasileiro: o artigo 25, que trata da legítima defesa, concedendo à vítima o direito de reagir, por sua própria força, a uma agressão injusta; o artigo 100, ao estabelecer a ação penal privada, de iniciativa do ofendido, portanto, exceção à regra da ação penal pública; e o artigo 345, tipificador do crime de exercício arbitrário das próprias razões, quando a vítima faz justiça pelas próprias mãos, ainda que sua pretensão esteja marcada pela legitimidade;
[10] Nesse sentido, García-Pablos de Molina, Manual...p. 80 e Winfried Hassemer, Fundamentos....p.93;
[11] Zaffaroni, Eugenio Raúl, Tratado de Derecho Penal, p. 345;
[12] Foucault, Michel, A verdade e as formas jurídicas, p.60/67;
[13] Foucault, Michel, Vigiar e Punir, p. 11/13;
[14] Não se pode esquecer dos crimes de Açao Penal Privada, em que a vítima é detentora do direito de apresentação da queixa crime, sem a qual o processo penal não ocorre. Do mesmo modo, nos crimes de ação penal pública condicionada à representação, nos quais a vítima deverá, para ocorrer o processo, representar (autorizar) ao Ministério Público.
[15] Essa expressão vem sendo utilizada, com alguma freqüência na doutrina estrangeira e, muito embora não tenha um único sentido, pode ser considerada para designar o conjunto das abordagens feitas pelos penalistas, pontuando todos os aspectos do direito penal em que a vítima é considerada. Também se pode considerar a vitimodogmática como o estudo do comportamento da vítima no âmbito da dogmática penal, especialmente no que diz respeito à responsabilidade do autor. Nesse sentido consultar, Elena Larrauri, Victimo-logía, p. 292/300; Jesús María Silva Sanchez, La víctimo-dogmática en el de-recho español, p. 197;
2 comentários:
Parabéns! excelente! gostaria de ler todo o material.
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Parabéns! muito bom!
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