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sábado, abril 13

Aplicação analógica do art. 34 da Lei n. 9.249/95 no crime de descaminho (*)


A Lei n. 4.729/65, em seu art. 2º, dispunha que: “Extingue-se a punibilidade dos crimes previstos nesta lei quando o agente promover o recolhimento do tributo devido, antes de ter início, na esfera administrativa, a ação fiscal própria”. Sob essa ótica, a possibilidade de o pagamento do tributo extinguir a punibilidade dos crimes de sonegação fiscal exigia que o recolhimento teria de ser prévio à instauração da ação fiscal, o que, na prática, a inviabilizava, pois deveria, basicamente, coincidir com a descoberta formal da sonegação.

O conhecido Decreto-lei n. 157, de 10 de fevereiro de 1967, em seu art. 18, passou a assegurar a “extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo” dos crimes previstos na Lei n. 4.729/65 se, “mesmo iniciada a ação fiscal”, o agente promover o recolhimento dos tributos e multas devidos, de acordo com o Decreto-lei n. 62/66, ou depositar os respectivos valores antes do julgamento do referido processo (art. 18)14. Em seu § 2º foi mais longe determinando a “extinção da punibilidade” quando se tratar de “imputação penal de natureza diversa da Lei n. 4.729/65”, desde que o pagamento do tributo devido — nos termos do caput do art. 18 — ocorra antes de iniciada “a ação penal”15. Esse diploma legal, na verdade, como afirma Andrei Zenkner Schmidt, “ampliou a possibilidade de o pagamento ocorrer logo após o julgamento da autoridade administrativa de primeira instância. Tal regra propiciava que o contribuinte só efetuasse o pagamento após exercitar, pelo menos em primeiro grau administrativo, a sua defesa técnica, flexibilizando-se, assim, as possibilidades de exclusão da punibilidade”16.

O Decreto-lei n. 288, de 28 de fevereiro de 1967, por sua vez, equiparou ao descaminho — que definiu como “contrabando” — a saída de mercadorias da Zona Franca de Manaus, “sem autorização legal expedida pelas autoridades competentes”, ou seja, sem o pagamento dos tributos quando o valor ultrapassar a cota que cada viajante pode trazer livremente17, nos seguintes termos: “Será considerada contrabando a saída de mercadorias da Zona Franca sem a autorização legal expedida pelas autoridades competentes” (art. 39). Essa equiparação à “contrabando” de saída de mercadorias da Zona Franca, sem autorização legal, levou o Supremo Tribunal Federal, orientado pelos princípios da razoabilidade, proporcionalidade e isonomia, a estender a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido ao crime de contrabando ou descaminho, editando a Súmula 560, com o seguinte enunciado: “A extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo devido estende-se ao crime de contrabando ou descaminho, por força do art. 18, § 2º, do Decreto-lei n. 157/67”.

O legislador brasileiro, no entanto, sempre ávido e diligente na busca de meios eficazes de “rechear as Arcas do Tesouro” — para usar uma expressão de Basileu Garcia —, não concebendo o “pagamento do tributo de descaminho” como fonte próspera de arrecadação, proibiu, através da Lei n. 6.910/8118, que o pagamento do tributo extinga a punibilidade do crime de contrabando ou descaminho, nos termos previstos pela Lei n. 4.729 e Decreto-lei n. 157/67, impedindo a aplicação da Súmula 560 do STF antes citada.

No entanto, posteriormente, o art. 14 da Lei n. 8.137/90, na sua redação original, ampliou a exclusão da punibilidade, possibilitando, pela primeira vez, o pagamento do tributo sonegado até o recebimento da denúncia na ação penal, nos seguintes termos: “Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos nos arts. 1º a 3º quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”, que também acabou sendo revogada pela Lei n. 8.383/91 (art. 98). 

No ano de 1995, porém, a Lei n. 9.249 recriou a possibilidade de exclusão da punibilidade pelo pagamento do tributo, desde que promovido antes do recebimento da denúncia: “Extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei n. 8.137/90, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei n. 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do recebimento da denúncia”.

Analisando, com muita propriedade, todo esse aparato legislativo, além de outras leis (igualmente de natureza tributária), Andrei Schmidt conclui: “Conjugando-se todo este emaranhado legislativo chegamos a uma primeira conclusão — não definitiva, frise-se — a respeito do tratamento desta modalidade de exclusão da punibilidade para os delitos de sonegação fiscal. Considerando-se que diversas são as modalidades de tributos e contribuições sociais, bem como o fato de as contribuições previdenciárias terem recebido um tratamento diferenciado no Código Penal, pode-se afirmar o seguinte: a) o pagamento de qualquer tributo sonegado (menos a contribuição previdenciária) exclui a punibilidade se realizado antes do recebimento da denúncia, na forma do art. 34 da Lei n. 9.249/95; b) se o tributo sonegado for a contribuição previdenciária, na modalidade apropriação indébita (art. 168-A), a extinção da punibilidade só ocorre obrigatoriamente se o pagamento for prévio ao início da ação fiscal (art. 168-A, § 2º), sendo discricionária a extinção se precedente ao oferecimento da denúncia (art. 168-A, § 3º, inc. I); c) se o tributo sonegado for a contribuição previdenciária, na modalidade supressão ou redução (art. 337-A), a extinção da punibilidade ocorre obrigatoriamente se a ação fiscal é precedida de confissão e declarações necessárias pelo contribuinte, independentemente do pagamento da exação”19.

De todo o exposto, impõe-se o seguinte questionamento: os crimes mencionados nos diplomas referidos serão os únicos que podem beneficiar-se com o disposto no art. 34 da Lei n. 9.249/95? Seria legítimo, a um Estado igualitário, social e democrático de direito privilegiar determinadas categorias de pessoas, determinadas camadas sociais, determinadas ideologias, assim como determinados bens jurídicos, e, particularmente, determinadas espécies de tributos, em detrimento de outros?

Nesse contexto, a unidade e harmonia do sistema jurídico como um todo recomendam a aplicação do mesmo tratamento a todas modalidades de sonegação fiscal “lato sensu”. E como afirmamos inicialmente, no descaminho, ao contrário do contrabando, há um ilícito fiscal, com a omissão ou supressão de tributo, sendo, portanto, perfeitamente possível estender-lhe o benefício insculpido no art. 34 da Lei n. 9.249, como chegou a entender no passado nossa Corte Suprema. Com efeito, a partir de 1970, o Supremo Tribunal Federal passou a entender que, em razão do disposto no art. 18, § 2º, do Decreto-lei n. 157/67 e, principalmente, do Decreto--lei n. 288/67, que a extinção da punibilidade pelo pagamento do tributo também se aplicaria ao crime de contrabando ou descaminho, como já destacamos, acabando por sumular esse entendimento de 1976 (Súmula 560), que acabou inviabilizada pela Lei n. 6.910/81.

Atualmente, o entendimento jurisprudencial tem sido francamente desfavorável à aplicação do art. 34 da Lei n. 9.249/95 ao crime de descaminho20, ressalvado uma ou outra decisão isolada21. No entanto, como enfatiza Andrei Schmidt, “boa parte dos fundamentos utilizados para negar-se a aplicação analógica do art. 34 da Lei n. 9.249/95 ao art. 334 do CPB vale-se das mesmas hipóteses à época da edição da Lei n. 6.910/81. De nada vale argumentar, contudo, que esta lei prejudicou a aplicação da Súmula 560 do STF se, em 1995, foi editada a Lei n. 9.249, conferindo novo tratamento à matéria. Assim é que eventual argumentação acerca da aplicação desta lei ao art. 334 do CPB não pode levar em consideração a revogação de uma Súmula ocorrida há mais de 20 anos. A pergunta que se há de fazer, na verdade, é a seguinte: é possível a aplicação da analogia in bonam partem entre uma lei extravagante e o Código Penal?”22. A resposta é, evidentemente, afirmativa, posto não existir razão alguma, lógica, política ou jurídica, para afastar essa espécie de analogia pelos simples fato de tratar-se de diplomas legais codificados e não codificados, especialmente num país como o nosso, em que vicejam, diariamente, quantidade insuportável de novas leis, disciplinando contraditoriamente as mesmas áreas de diversas matérias, ou diversas matérias das mesmas áreas e vice-versa. São equivocados, como observa Andrei Schmidt, os argumentos que partem da ideia de que a diversidade de bens impediria a analogia, pois esse aspecto, por si só, não poderia impedir a colmatação da lacuna legal, mesmo porque o sistema tributário encontra-se inserto nos crimes contra a administração, como ocorre com as previsões dos arts. 168-A, 337-A e do próprio art. 334, que disciplina o contrabando ou descaminho, que tratam, ainda que lato sensu, de crime de sonegação fiscal.

Enfim, o argumento da diferença de bens jurídicos protegidos é absolutamente inconsistente, pois, como demonstramos em tópicos anteriores deste capítulo — na essência — a criminalizaçao do descaminho objetiva tutelar, “acima de tudo, a salvaguarda dos interesses do erário público, diretamente atingido pela evasão de renda resultante dessas operações clandestinas ou fraudulentas”. Com isso, fazemos coro com a conclusão de Andrei Schmidt: “trata-se, pois, de norma que regula a sonegação fiscal de tributos devidos na importação de mercadorias de acesso permitido em nosso País, ao contrário do contrabando, onde a mercadoria é proibida. Assim, trata-se de modalidade específica de sonegação fiscal, que afasta a incidência da Lei n. 8.137/90 pela simples razão de haver norma especial a respeito do assunto (art. 334 do CPB)”23.
Concluindo, como o crime de descaminho viola, de modo geral, o sistema tributário nacional, não há razão alguma, voltamos a repetir, para impedir a aplicação analógica do art. 34 da Lei n. 9.249/95, como forma de restabelecer o princípio da isonomia (onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de direito), assegurando-se a aplicação do disposto no art. 34 da Lei n. 9.249/95 a todos os crimes fiscais, inclusive ao descaminho24.

Atualmente, podemos festejar o entendimento jurisprudencial que finalmente acolheu a possiblidade de aplicação do art. 34 da Lei n. 9.249/95 ao crime de descaminho. O STJ no julgamento do HC nº 48.805 - SP (2005/0169350-9) decidiu, com base no aforismo ubi eadem ratio ibi idem ius, que “não há razão lógica para se tratar o crime de descaminho de maneira distinta daquela dispensada aos crimes tributários em geral”.

Também merece aplausos o entendimento do STJ no que diz respeito à aplicabilidade da Súmula 24 do STF ao crime de descaminho. O posicionamento foi fixado no julgamento do HC nº 139.998 - RS (2009/0121507-4) onde restou decidido que: “1. Tal como nos crimes contra a ordem tributária, o início da persecução penal no delito de descaminho pressupõe o esgotamento da via administrativa, com a constituição definitiva do crédito tributário. Doutrina. Precedentes. 2. Embora o delito de descaminho esteja descrito na parte destinada aos crimes contra a Administração Pública no Código Penal, motivo pelo qual alguns doutrinadores afirmam que o bem jurídico primário por ele tutelado seria, como em todos os demais ilícitos previstos no Título IX do Estatuto Repressivo, a Administração Pública, predomina o entendimento de que com a sua tipificação busca-se tutelar, em primeiro plano, o erário, diretamente atingido pela ilusão do pagamento de direito ou imposto devido pela entrada, pela saída ou pelo consumo de mercadoria. 3. O delito previsto na segunda parte do caput do artigo 334 do Código Penal configura crime material, que se consuma com a liberação da mercadoria pela alfândega, logrando o agente ludibriar as autoridades e ingressar no território nacional em posse das mercadorias sem o pagamento dos tributos devidos, não havendo, por conseguinte, qualquer razão jurídica para não se lhe aplicar o mesmo entendimento já pacificado no que se refere aos crimes materiais contra a ordem tributária, cuja caracterização só ocorre após o lançamento definitivo do crédito fiscal. 4. A confirmar a compreensão de que a persecução penal no crime de descaminho pressupõe a constituição definitiva do crédito tributário, tem-se, ainda, que a própria legislação sobre o tema reclama a existência de decisão final na esfera administrativa para que se possa investigar criminalmente a ilusão total ou parcial do pagamento de direito ou imposto devidos (artigo 83 da Lei 9.430/1996, artigo 1º, inciso II, do Decreto 2.730/1998 e artigos 1º e 3º, § 7º, da Portaria SRF 326/2005). 5. Na hipótese vertente, ainda não houve a conclusão do processo administrativo por meio do qual se apura a suposta ilusão do pagamento de tributos incidentes sobre operações de importação por parte dos pacientes, pelo que não se pode falar, ainda, em investigação criminal para examinar a ocorrência do crime de descaminho. 6. Ordem concedida para trancar o inquérito policial instaurado contra os pacientes.”

O entendimento do STJ vem sendo mantido em seus mais recentes julgados, como é o caso da decisão proferida no RHC 31368 / PR (2011/0254155-2), onde se reafirma que: “Não é possível a instauração de ação penal quanto ao crime de descaminho na hipótese em que o crédito tributário não está devidamente constituído no âmbito administrativo, pois, de acordo com os princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa, o contribuinte tem o direito de discutir a existência do tributo administrativamente, além do que, mesmo no caso de ser vencido no processo administrativo, o contribuinte será intimado para efetuar o pagamento do tributo, salvo disposição legal em contrário, no prazo de trinta dias.

Não é possível a instauração de ação penal quanto ao crime de descaminho na hipótese em que o crédito tributário não está devidamente constituído no âmbito administrativo, pois, caso se admita a instauração da ação penal antes da conclusão final do procedimento administrativo, o processo penal, que possui a função de proteção dos direitos fundamentais, se transmudará em instrumento de cobrança, suprimindo o direito do contribuinte de ver a sua punibilidade extinta pelo pagamento ou, ainda, cerceando a possibilidade do suposto devedor do tributo de demonstrar que não ocorreu o fato gerador”.

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