Há número insuficiente de delegacias e varas especializadas e até mesmo o comportamento machista de alguns juízes e delegados dificulta o cumprimento da lei. Várias propostas tramitam no Congresso para aperfeiçoar a legislação.
Considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) a terceira melhor lei do mundo de enfrentamento à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06) ainda esbarra em alguns entraves para ser cumprida integralmente.
Em 2012, 240 relatos de violência contra a mulher foram registrados por dia pela Central de Atendimento à Mulher, o Ligue 180. Dos mais de 88 mil atendimentos, quase 57% referiam-se a casos de violência física, seguidos de denúncias de violência psicológica, moral, sexual e patrimonial. Entre os relatos, 89% tinham como agressor o companheiro, cônjuge, namorado, ex-marido ou ex-namorado da vítima.
No total, o Ligue 180 realizou mais de 700 mil atendimentos no ano passado, entre denúncias e pedidos de informação. Um aumento de 11% em comparação a 2011.
O serviço foi criado em 2005 pela Secretaria de Políticas para as Mulheres para escutar e orientar mulheres em situação de violência. Desde a sanção da Lei Maria de Penha, em 2006, essa tem sido uma das principais causas de ligação à central.
Companheiros
Apesar de não haver um sistema nacional unificado de informações sobre violência contra a mulher, dados registrados pelos sistemas de saúde e levantamentos feitos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o tema também indicam a prevalência de casos envolvendo companheiros e ex-companheiros das vítimas, bem como as ocorrências em residências dos envolvidos.
É difícil afirmar se os registros têm se mantido altos porque mais mulheres se sentem motivadas a denunciar ou se a violência, em si, continua aumentando. Uma constatação preocupante, no entanto, é que muitos dos casos relatados não chegam às delegacias e, consequentemente, não são encaminhados à Justiça. Pesquisa da Fundação Perseu Abramo, de 2010, indica que apenas um terço é levado às autoridades.
Insuficiência de equipamentos públicos
Para a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) que investigou, entre 2012 e 2013, a violência contra a mulher, o quadro é grave e demonstra a insuficiência de equipamentos públicos adequados para receber as vítimas. Segundo o relatório final do grupo, o País conta com 408 Delegacias da Mulher e 103 núcleos especializados em delegacias comuns.
A maioria está concentrada nas capitais e regiões metropolitanas.
Mesmo onde há as delegacias, a comissão constatou a situação de abandono de muitas delas, dificultando o registro de boletins de ocorrência e tomada de depoimentos das vítimas ou testemunhas. Uma das poucas exceções é a Delegacia da Mulher do Distrito Federal, que, apesar de localizada no Plano Piloto – longe das regiões com mais concentração feminina na capital –, conta com uma estrutura adequada para atendimento às mulheres.
A Delegada-chefe da delegacia do DF, Ana Cristina Melo Santiago, concorda que é fundamental um acolhimento adequado às mulheres vítimas de violência. "Nós precisamos ter conhecimento muito específico dessas questões, pois, quando uma mulher vai a uma delegacia, a gente sabe que ela rompeu vários obstáculos – internos, emocionais, sociais, culturais – até se decidir pelo registro da ocorrência. Então, quando ela chega no balcão da delegacia, ela, de forma alguma, pode ser vitimada novamente. Ela tem que encontrar profissionais capacitados e conhecedores dessa dinâmica da violência, para que ela seja acolhida, e não tratada como uma espécie de corresponsável pela violência que sofreu."
Problemas nos tribunais
Não é só nas delegacias que as vítimas podem encontrar problema. A comissão de inquérito também constatou que os Tribunais de Justiça do País não dão a devida atenção à Lei Maria da Penha. Apesar das recomendações do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), falta orçamento para a instalação de juizados e varas especializadas.
Segundo a comissão, são 66 Juizados Especializados de Violência Doméstica no Brasil.
Para a relatora da investigação, senadora Ana Rita (PT-ES), o machismo também continua forte nas instituições. "Eu diria que esta questão do machismo é muito presente nas instituições também, o que dificulta a aplicação da nossa legislação, em particular da Lei Maria da Penha. Falta capacitação dos profissionais.
Precisamos investir muito na capacitação, não só de quem atende lá na ponta, como são os policiais nas delegacias, que precisam de capacitação intensa. Mas também de promotores, de juízes, de todos aqueles que têm papel no andamento do processo."
A CPMI constatou, por exemplo, que juízes em diferentes estados continuam aplicando a Lei Maria da Penha como lhes convêm, usando, inclusive, instrumentos já proibidos pelo Supremo Tribunal Federal, como a suspensão do processo pela admissão de que lesões decorrentes de violência doméstica e familiar podem ser de menor potencial ofensivo.
A
Agressão a Luana Piovani
A comissão criticou, ainda, decisão recente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em não considerar como passível de análise pelo juizado especializado o caso de agressão envolvendo o ator Dado Dolabella e sua ex-namorada, a atriz Luana Piovani.
O argumento é de que eles não eram casados e de que não havia relação de vulnerabilidade entre a atriz e o namorado à época da agressão. O caso está agora no Superior Tribunal de Justiça e, na avaliação do advogado de Piovani, Marcelo Salomão, pode se tornar um divisor de águas na aplicação da Lei Maria da Penha.
"Se prevalecer esse entendimento desta Câmara do Tribunal de Justiça do RJ, praticamente, em todos os casos envolvendo violência doméstica, será exigida a produção de uma prova inicial quanto a essa vulnerabilidade, dependência quanto à situação de opressão da mulher”, afirma o advogado.
“Não havendo a caracterização de opressão da mulher – e isso é um conceito até subjetivo –, a lei não é aplicada.”
Na avaliação de Marcelo Salomão, “a decisão do tribunal contraria o espírito da lei e interpreta de uma maneira praticamente espúria a sua aplicação em relação à maioria dos casos. A pessoa famosa e autônoma, como essa vítima de quem estamos falando, ela não pode ser vítima de violência doméstica? E outra coisa: violência doméstica só pode acontecer em casa?"
Mudança na cultura de tolerância
O juiz Álvaro Kálix Ferro, conselheiro do CNJ, reconhece que há problemas na aplicação da Lei Maria da Penha, mas diz que, em sete anos, a norma tem motivado aos poucos uma mudança na cultura de tolerância à violência.
"Essa questão da violência contra a mulher é de uma complexidade ímpar”, afirma o juiz. “Além da penalização, existe todo um trabalho que é preciso fazer, seja com a mulher, seus familiares e até com o agressor, como a própria lei diz no seu art. 30, que pode ser encaminhado para cursos, compreensão da questão de gênero, para a questão da violência.
Há necessidade dessa interdisciplinaridade e ela só ocorrerá se cada um dos órgãos, incluído o Poder Judiciário, atue bem com equipes multidisciplinares."
Aperfeiçoamento da lei
Para a comissão do Congresso que investigou a violência contra a mulher, é possível aperfeiçoar a legislação. Entre as mudanças propostas à Lei Maria da Penha, está a obrigação de o juiz, ao encaminhar mulheres para um abrigo, analisar necessariamente os requisitos da prisão preventiva do agressor, para evitar que o réu permaneça solto enquanto a vítima se mantenha com a liberdade restringida em uma casa-abrigo.
Outra proposta é para que esteja explícita na lei a impossibilidade de se perguntar à vítima o interesse em desistir do processo penal.
Na luta pelo rompimento do ciclo de agressões, não pode haver brecha para a impunidade, segundo Lourdes Maria Bandeira, da Secretaria de Políticas para as Mulheres. "Quando uma mulher denuncia que foi agredida, ela tem que ser encaminhada ao sistema de Saúde, ao Instituto Médico Legal (IML), ao Ministério Público.
Isso tem que ser investigado, se tornar um processo”, ressalta Lourdes Bandeira. “Há uma complexidade grande, que muitas vezes, dada a ausência e condição de recursos, muitas vezes pela própria falta de equipamento desses órgãos, acaba que o processo se perde no meio do caminho.
E, sem contar também que nem sempre a sensibilidade de todos os agentes públicos está voltada para este problema."
Na tentativa de tornar mais eficaz o atendimento às vítimas, o governo federal lançou recentemente o programa "Mulher, Viver sem Violência", com previsão de verba de R$ 265 milhões. Entre as medidas, está a construção das chamadas Casas da Mulher Brasileira nas 27 capitais, com serviços integrados de delegacia, juizado especializado, Ministério Público, Defensoria, abrigo temporário, espaço de convivência, sala de capacitação e brinquedoteca.
Fonte: Agência Câmara de Notícias
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