Por Alexandre Morais da Rosa(*)
Odefredus, professor de Direito Medieval, segundo Harold
Berman, apresentava o Digesto como livro sagrado dos juristas e, assim, havia
um método próprio de ensinar:
“Em primeiro lugar, eu fornecerei sínteses de cada um dos
títulos — do Digesto — antes de proceder ao texto. Depois, eu darei exemplos o
mais clara e explicitamente que puder, das regras individuais — contidas no
título. Em terceiro lugar, eu repetirei brevemente o texto visando corrigi-lo.
Em quarto lugar, eu repetirei sinteticamente os conteúdos dos exemplos — das
regras. Em quinto lugar, eu resolverei as contradições, adicionando princípios
gerais comumente denominados brocardia e distinções de problemas úteis e sutis,
com a sua respectiva solução, se assim me permitir a Divina Providência.”
Embora possa aparentar ser uma descrição histórica, na
verdade, esse modelo permanece sendo o padrão nas escolas de Direito espalhadas
no país, com um agravante. Muitos alunos perguntam: cai na prova da OAB?
Assim, esse texto procura dialogar, no campo do processo e
direito penal, com base na proposta de Maíra Rocha Machado e Marta Rodrigues de
Assis Machado, ou seja, do ensino conjunto do Direito e do Processo Penal no
contexto contemporâneo, sobre as possibilidades de superação do ensino
compartimentado e “oabetizado”, desde uma perspectiva que possa significar um
saber transversal e, também, fora da pedagogia padrão. Aliás, essa a pretensão
do meu Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, em segunda
e ampliadíssima edição (2014, Lumen Juris).
Roberto Lyra Filho indagava-se, na década de 1980, sobre as
(im)possibilidades do Ensino do Direito, especialmente no ambiente de pouca
atmosfera democrática que permeava o Brasil. Passados mais de 30 anos da
inquietação, pode-se apontar que na grande maioria das escolas de Direito a
manutenção do modelo medieval de ensino permanece, “como se” as questões
sociais, a nova ordem constitucional, os influxos do neoliberalismo
(eficientismo penal) não fizessem tensão, a saber, “como se” o Direito Penal
continuasse mera disciplina de tipos penais e o Processo Penal, sua
operacionalização prática, desconsiderando-se, ademais, a criminologia. Luis
Alberto Warat, na mesma época, apresentava o panorama da mesmice, bem assim a
necessidade de superação, quem sabe carnavalizando o direito ou apresentando
uma viagem inesperada. A discussão continua hoje, na UFSC, por exemplo, com
Horácio Wanderlei Rodrigues e Edmundo Lima.
A dissidência proposta
A dissidência proposta parte da necessidade de se romper com
a sedução do especialista e do saber instituído. Não raro quem pretende
escrever qualquer texto sobre processo penal busca fazer revisão bibliográfica
e estabelecer o saber monolítico assentado em premissas incontestáveis.
É
justamente ai que apresento a dissidência. Os fundamentos teóricos em que o
Processo Penal serão problematizados e não somente apresentados e/ou
rejeitados, lendo-se a partir da teoria dos jogos adaptada ao Processo Penal.
Busca-se ampliar criativamente as possibilidades de compreensão do Processo
Penal. Daí que a estrutura do ensino jurídico não pode ser linear, precisa
dialogar com a tradição e sair da mesmice, para além da prova da OAB, a qual
nos últimos tempos, é bizarra, apontam Cézar Bitencourt e Lenio Streck (ver
aqui).
Antes da viragem linguística acontecida em meados do século
passado, a maneira de pensar do mundo ocidental era baseado na possibilidade de
se encontrar essências. Daí que a hermêneutica era pensada como adequação do
mundo à razão, como se as coisas tivessem uma essência — elas existissem na
natureza — e o sujeito pudesse descobrir o verdadeiro sentido das coisas. Assim
se construía, rigorosamente, pelo paradigma científico e pela geometria
euclidiana, o mundo das ciências. Talvez por aí se possa ver o problema que nos
aguarda. Os manuais de Direito Penal e Processo Penal, na sua imensa maioria,
ouso dizer, servem para enganar. São o efeito semblante do que poderia ser.
O Processo Penal sofre, assim, de um grande déficit, dado
que procura, ainda, estabelecer as bases de seu funcionamento em face de coordenadas,
ou seja, de um mapa que não se confunde com o território. A metáfora, usada por
muitos, mostra que não se pode confundir um mapa do lugar com o seu real.
Sempre há nuances, desvios, mudanças de rumo, erros e surpresas.
Acrescente-se
a isso que com o fenômeno da mundialização do Direito, as diversas tradições —
para ficarmos apenas entre civil law e common Law —, implicaram, nos últimos
tempos, na importação de diversos institutos pensados com base em fundamentos
teóricos diferenciados, cabendo destacar a delação premiada, leniência, justiça
restaurativa, agente infiltrado, compreensão de processo, etc. Nesse quadro,
portanto, as situações de perplexidade são cada vez maiores.
Superando o Direito Processual do Conforto
A sedução pela simplicidade faz com que muitos se abracem
nos resumos que prometem o Direito fácil, esquematizado, simplificado e tenho
lá minhas desconfianças de que seja assim mesmo, até porque se fosse tão
simples, esquematizado ou fácil, não precisaríamos de tantas publicações. O
caminho é mais contingente, longo e complexo. Quem atua na realidade do
Processo Penal sabe que esses manuais pouco ajudam no momento do jogo
processual e o direito do conforto precisa ser superado.
De plano afirmo que não existe lugar fácil no Processo
Penal, nem que se pode seguir um check-list processual, mas sim que atividade
processual, como jogo, exige preparação, estudo, perspicácia, paciência,
estratégia e tática. Precisamos saber lidar com as nossas limitações, sobre os
impasses e paradoxos, para somente então podermos nos posicionar. Sobrará um
resto de sorte, sempre. Não será, contudo, uma surpresa, dado que poderemos
antecipar as jogadas, as táticas, enfim, realinhar a estratégia e funcionar
melhor.
Em vez de esperar o que irá sair da cabeça do juiz, do jogador,
possamos gerar expectativas factíveis de comportamento. Por um lado se terá
maior responsabilidade e, por outro, as surpresas podem ser mitigadas,
aumentando, todavia, a responsabilidade do jogador.
Exerço a função de juiz de Direito estadual — há vários anos
em uma Vara Criminal —, bem como a de professor adjunto de Processo Penal na
UFSC. O desconforto e a angústia decorrem do fato de que o ensino do direito
acabou se focando no estudo para prova da OAB.
E a prova da OAB não prepara
para o mundo da vida. A disciplina — Processo Penal —, embora seja obrigatória,
deveria ser uma fusão de horizontes entre o que se passa no mundo forense e a
teoria do Direito. E o professor encontra-se num dilema. Se procura dotar os
acadêmicos de meios mínimos para poderem pensar, não raro, é acusado de querer
dar aula no mestrado/doutorado. Por outro lado, caso seja uma decoreba da
legislação, deixa de ser professor universitário para se tornar professor de
cursinho preparatório.
A propaganda das faculdades/universidades é: tantos por
cento de aprovação na prova da OAB, fenômeno que transformou a graduação em um
curso preparatório. É a pressão do mercado. Resistir a tudo isso é complicado.
O que aparece, muitas vezes, depois, são sujeitos que precisam descobrir o que
a Jane fez com o carro, sendo que o único que poderia resolver a questão é o
jurista Tarzan, o que sempre salva a Jane. Mas o Tarzan mora na fantasia. A
resposta oficial era equivocada e foi sustentada pelo Conselho Federal da OAB
de maneira inacreditável.
Quem sabe possamos fazer a prova da OAB no primeiro
ano do curso e depois estudar direito. Vivemos a fase da oabtização dos cursos
de Direito (ver aqui). Uma última advertência, com L.F. Barros, qualquer dessemelhança
com a bizarra realidade deve-se, exclusivamente, à incapacidade descritiva do
autor.
(*)Alexandre Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em
Direito pela UFPR e professor de Processo Penal na UFSC.
Fonte: Conjur
Um comentário:
Caro professor. Gostei muito do texto, e concordo com ele até certo ponto. É fato que a graduação em Direito tem, como um dos principais focos, a aprovação de seus alunos na prova da OAB. Eu mesmo já passei por isso em diversas ocasiões. Tive um professor, por exemplo, cujas provas eram tão somente questões do exame.
Penso, contudo, que a principal função do professor seja mais do que ensinar a pensar o direito. Como um aluno que nunca teve contato com os meandros do processo penal pode pensar esse mesmo direito?
Neste ponto, penso a figura do professor, não como aquele que dá "o caminho das pedras", porém, como aquele que dá a diretriz e deixa ao aluno a opção de seguir aquele caminho e, consequentemente, ir atrás das respostas, ou não.
Fecho o raciocínio com o dizer de um amigo, educador de longa data: "o professor só "ensina" mesmo da primeira à quarta série".
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