Decisão do Supremo que proíbe imobilização de presos diante
de juízes e jurados sem fortes razões de segurança abre portas para anulação de
condenações e provoca debate entre especialistas.
Agosto de 2008.
O Supremo Tribunal Federal (STF) julga
pedido de habeas corpus no qual o pedreiro Antônio Sérgio da Silva, do interior
de São Paulo, reclama ter sido algemado durante a sessão que o condenou a 13
anos de prisão por homicídio qualificado. Por unanimidade, o STF anula o
julgamento, entendendo que, algemado, Silva pode ter predisposto o júri a uma
avaliação negativa. O entendimento passa a ser obrigatório para os magistrados
de grau inferior.
Maio de 2014. Paulo Ricardo Santos da Silva, o Paulão, 55
anos, e Anderson da Silva, o Tetão, 26 anos, presos por tentativa de homicídio
e outros crimes, chegam escoltados à sala de audiências da 1ª Vara do Júri de
Porto Alegre. Assim que entra, Paulão, temido chefe do tráfico na Capital,
parte para cima do ex-aliado e chuta sua perna. No final da audiência, na qual
foi ouvida a vítima da tentativa de homicídio, os dois voltam a se engalfinhar.
Paulão e Tetão estavam sem algemas.
Num intervalo de seis anos, esses dois episódios marcam os
extremos de uma polêmica. A prática de algemar presos durante audiências e
julgamentos divide magistrados, promotores e especialistas. Um dos epicentros
da controvérsia é o Tribunal de Justiça do Estado (TJ-RS), que tem adotado
visões distintas.
Parte dos desembargadores entende que a contenção de presos
sem justificativa é ilegal, gerando anulações de processos e de condenações,
com reflexos na segurança pública.
Entre maio e junho, foram oito impugnações parciais ou
totais de processos, livrando 12 criminosos das grades, entre traficantes de
drogas e homicida. Seis casos envolvem exclusivamente o uso supostamente
indevido de algemas. Em outros dois, além desse item, as decisões ocorreram por
ausência do Ministério Público nas audiências.
Ministério Público instrui promotores
A raiz da polêmica jurídica advém da edição da súmula
vinculante nº 11 do STF, de agosto de 2008. Dias antes, personalidades
conhecidas da política e da economia nacional tinham sido presas pela Polícia
Federal e expostas na mídia com punhos imobilizados. Entre as polícias, o tema
parece ter esfriado, mas no âmbito judicial, vem aquecendo divergências no TJ
gaúcho, fomentadas por conta da 3ª Câmara Criminal.
Doutor em direito penal, Aury Lopes Junior defende a posição
dos magistrados da 3ª Câmara:
– Não está proibida a algema, apenas deve ser justificada,
pois, inegavelmente, causa uma impressão negativa frente aos jurados e, ainda,
às testemunhas do processo. Isso é muito prejudicial à defesa. Ademais é
extremamente constrangedor e humilhante.
Esse entendimento beneficiou Jorge Scherer, 44 anos, preso
em agosto de 2013, em Santa Maria, após apreensão de 12 quilos de crack.
Scherer permaneceu algemado em uma audiência sem justificativa, e o processo
acabou parcialmente anulado. Ele, que cumpre penas em regime semiaberto por
outros crimes, recebeu tornozeleira eletrônica em junho e responde ao processo
em casa.
O Ministério Público tem recorrido dessas decisões aos
tribunais superiores em Brasília, incluindo as anulações de audiências por
falta de promotores, uma vez que o Código de Processo Penal permite ao juiz
inquirir réus e testemunhas na produção de provas, conforme decisões do STJ.
Além disso, para evitar anulações de processos, a
Corregedoria-Geral do MP, emitiu, em março, memorando alertando promotores para
lembrar magistrados de registrar justificativas em ata.
A causa: súmula vinculante nº 11
A origem
Em julho de 2008, foram presos o banqueiro Daniel Dantas e o
ex-prefeito paulistano Celso Pitta, algemados publicamente, provocando críticas
à conduta da Polícia Federal, inclusive, pelo então presidente Luiz Inácio Lula
da Silva.
No mês seguinte, o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou um
habeas corpus no qual um pedreiro do interior de São Paulo reclamava ter sido
algemado durante a sessão que o condenou. Por unanimidade, o STF anulou o
julgamento. A partir daí, o STF aprovou a súmula vinculante nº 11, para evitar
prejuízo aos réus.
O que prevê
Só é lícito uso de algemas em casos de resistência e de
receio de fuga ou de perigo à integridade física, por parte do preso ou de
terceiros, justificada a excepcionalidade por escrito, sob pena de
responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade e de
nulidade da prisão ou do ato processual, sem prejuízo da responsabilidade civil
do Estado.
As consequências: casos de anulações de sentenças
Tráfico de drogas
Depois de condenação a sete anos de prisão por tráfico, o
julgamento foi anulado porque o réu foi algemado durante audiência. A
justificativa do juiz foi considerada inconsistente. Além disso, o processo
também foi impugnado pela ausência de promotor de Justiça na sessão, em Santa
Cruz do Sul.
Tentativa de homicídio
Em caso de tentativa de matar a mãe a facada, em Viamão, o
interrogatório foi anulado e o réu solto porque ele foi algemado durante
audiência sem justificativa do juiz. A mulher foi agredida porque teria
repreendido o filho.
Tráfico de drogas
Em um bar, homem vendeu quatro vezes porções de cocaína para
um policial civil, em Sarandi. Foi condenado a nove anos de prisão, mas foi
solto e a sentença anulada porque permaneceu algemado em audiência.
Homicídio e ocultação de cadáver
Por ter sido mantido algemado durante julgamento, o júri foi
anulado e o réu solto. O acusado tinha sido condenado a 16 anos e três meses de
prisão por homicídio e ocultação de cadáver, em Viamão. Após discussão por
causa do empréstimo de armas, o réu atirou na vítima e chamou três encapuzados
para desovar o corpo coberto por um saco plástico em um local ermo.
Mesmo o juiz, explicando que manteve o réu algemado por ter
ocorrido tentativas de fugas anteriores no fórum e ser imprevisível a reação do
réu diante de depoimentos desfavoráveis, o julgamento foi anulado porque a
explicação foi considerada insuficiente.
Tráfico de drogas
Anulada sentença e soltura de três réus algemados em
audiência sem justificativa do juiz. Em primeiro grau, o trio havia sido
condenado a penas entre oito e nove anos de prisão por tráfico de drogas, em
Passo Fundo.
Tráfico de drogas
Em São Gabriel, o julgamento de um homem condenado a 14 anos
de prisão por tráfico de drogas, foi anulado e determinado a soltura dele por
estar algemado durante audiência sem justificativa do juiz.
Tráfico de drogas
Em Santo Augusto, processo que condenou três homens a penas
entre oito e 17 anos por tráfico de drogas – dois deles com antecedentes
criminais – foi anulado porque os réus ficaram algemados em audiência e também
pela falta de promotor de Justiça na sessão.
Outros casos
Em outros nove processos – sete por tráfico e os demais por
ameaça e lesão corporal leve –, os réus foram absolvidos por insuficiência de
provas. Se isso não tivesse acontecido, possivelmente, também teriam o mesmo
benefício porque foram mantidos algemados durante as audiências sem
justificativa.
"Não devo fazer juízo de valor", diz o
desembargador Diógenes Vicente Hassan Ribeiro
Integrante da 3ª Câmara Criminal do TJ-RS, o desembargador
Diógenes Vicente Hassan Ribeiro recebeu Zero Hora semana passada em seu
gabinete para falar sobre anulações de processos por uso de algemas.
Decisões da 3ª Câmara do Tribunal de Justiça anulando
processos por uso de algemas são consideradas minoritárias nas demais câmaras
criminais. Por que a divergência?
Tenho que dizer que existe uma súmula vinculante (a nº 11) e
que as decisões comportam recursos a tribunais superiores. As decisões quando
eu profiro, procuro fundamentar e acertar na decisão. Não posso e não devo fazer
juízo de valor sobre o entendimento dos meus colegas.
Há decisões no STJ e no STF de que não devem ser anulados
processos por falta de justificativa do uso de algemas?
São pontuais e totalmente isoladas. Para quem conhece o teor
da súmula, sabe que ela não admite restrição. Se não tem fundamentação, a
própria súmula diz que o ato processual é nulo.
Há decisões do 2º Grupo Criminal (que reúne desembargadores
da 3ª e da 4ª câmaras do TJ) mantendo processos mesmo com réus algemados sem
justificativa. O argumento é de que não se pode anular uma condenação por
"mera formalidade".
Tenho de respeitar o entendimento dos colegas. Se eles
entendem dessa forma, podem continuar entendendo. Eu também me permito
continuar entendendo amparado na Constituição e no teor da súmula vinculante.
Se o STF revogar essa súmula, estará revogada.
Qual prejuízo para um réu algemado?
No caso do tribunal do júri, existe um simbolismo dos atos
que se processam ali. Os jurados são juízes leigos, não são preparados
tecnicamente a fazer grandes discernimentos entre o legal e o constitucional.
Se deixar uma pessoa algemada sem justificar, eventualmente, isso pode incutir
nas demais pessoas que o réu é uma pessoa extremamente perigosa.
"A algema é só um adereço", diz a desembargadora
Fabianne Breton Baisch
A desembargadora Fabianne Breton Baisch, da 8ª Câmara
Criminal do TJ-RS, falou por telefone a Zero Hora sobre a polêmica da
utilização de algemas sem razões fortes de segurança em audiências ou júris.
É exagero anular uma decisão por um questão formal diante de
fatos graves como homicídio ou tráfico de drogas?
Com certeza, acho um exagero. É a forma se sobrepondo à
substância. Por isso que nós, na 8ª Câmara, não anulamos. A menos que tenha
ocorrido uma situação vexatória. Não existe nulidade sem prejuízo. Qual
prejuízo para a defesa se o réu ficou algemado? Não se decreta nulidade sem
prejuízo. Até o STF está entendendo que mesmo em caso de nulidade absoluta, ela
prescindi de comprovação de prejuízo.
Uma pessoa que pega em arma para assaltar, matar ou traficar
vai se sentir constrangida com algemas nas mãos?
Evidentemente que não. Um indivíduo que pratica ato contra o
patrimônio ou contra a vida, ele é presumidamente perigoso. Então, tem de usar
algemas.
Às vezes, o réu é primário e pode se sentir constrangido,
mas há casos de reincidente.
Se a pessoa está sentado no banco dos réus, a situação já é
humilhante. A algema é só um adereço, mais para a proteção de quem está ali.
A senhora acredita que esse tipo de decisão aumenta a
sensação de impunidade e insegurança da população?
Com certeza. Às vezes, o processo tem de voltar para fazer
toda a instrução de novo. Imagina as vítimas sendo expostas novamente, colocar
o rosto para todos verem. Tem que movimentar a engrenagem do Judiciário tudo de
novo. Vai contra a busca da celeridade, de dar resposta o mais rápido possível
para a sociedade. Há formas de vencer essa ilegalidade.
Fonte: Zero Hora
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